sábado, 27 de janeiro de 2024

Isabel Furini (Poema 54): Ladear o passado

Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook.

Mensagem na Garrafa = 90 =

Maria José de Queiroz
Belo Horizonte/MG, 1934 – 2023, Lagoa Santa/MG

Gratidão

Diariamente eu chego a simples conclusão de que a vida é tão maravilhosa porque também é feita de colos, de feridas que cicatrizam, de amigos que celebram ou choram junto, de café coado com coador de pano, de gente que pega ônibus ou faz caminhada pela manhã, de quem planta o que se pode comer, de vizinhos que alimentam seus gatos com comida de gente. 

Que a vida é feita de algumas pessoas que direcionam todo o seu potencial criativo para melhorar a qualidade de vida de gente que eles nem conhecem. 

Que é feita de e-mails que chegam recheados de saudade e de cartas extraviadas solitárias numa gaveta de um correio qualquer. 

De muros e pontes e cais. 

De aviões que suprimem distâncias e de barcos que chegam. 

De bicicletas que atravessam cidades. 

De redes que balançam gente. 

De rostos que recebem beijos. 

De bocas que beijam. 

De mãos que se dão. 

Que existem pessoas altamente gostáveis, altamente rabugentas, altamente generosas, pessoas distraídas que perdem as coisas, mal-educadas que buzinam sem necessidade, pessoas conectadas que se preocupam com o lixo, pessoas sedutoras e seduzíveis, possíveis e impossíveis, pessoas que se entregam, pessoas que se privam, pessoas que machucam, pessoas que chegam pra curar desencadeadores de poemas, de sorrisos, de lições de vida que ficarão guardadas para sempre… 

A vida é tão maravilhosa porque ela nos compensa com ela mesma.

A. A. de Assis (As marcas de Maringá)

Toda cidade tem sua marca. Paris tem a torre Eiffel, Nova Iorque tem a estátua da Liberdade, Curitiba tem o Jardim Botânico, o Rio de Janeiro tem o Pão-de-Açúcar, São Paulo tem a Avenida Paulista… Em Maringá, na sua opinião, que marca mais se destaca?

A catedral, obviamente, é o símbolo maior da cidade. Podemos mencionar também a fartura do verde, os parques, as universidades, o belo traçado das ruas, praças e avenidas, a moderna e avançada arquitetura das edificações, o dinamismo do povo.

Mas, pensando bem, pelo menos em termos mercadológicos, a grande marca de Maringá, desde a fundação, foi sempre, e muito fortemente, seu próprio nome – Maringá. A cidade já nasceu famosa, graças à imortal canção de Joubert de Carvalho.

Para os antigos corretores da Companhia Melhoramentos foi moleza vender lotes rurais e urbanos num lugar com um nome tão bonito e que estava no ouvido de todo mundo, no Brasil e lá fora.  Não era um nominho qualquer. Era um poema concentrado em três sílabas: Ma-rin-gá.

 Nos anos 1930 e 1940 o Brasil inteiro ouvia no rádio e cantarolava: “Foi numa leva que a cabocla Maringá…”. Consta que a esposa do presidente da empresa colonizadora ouviu a pioneirada entoar a canção, e de tal modo se encantou que sugeriu ao marido propor aos demais diretores dar esse nome à cidade.

De certo Dona Elisabeth, na ocasião, não estava pensando em marketing. Moveu-a um impulso poético. Mas os diretores da empresa perceberam de imediato a força da marca “Maringá” como facilitadora das vendas dos seus sítios e datas. E assim se batizou a cidade, que em poucos anos viria a ser um maná para o mercado imobiliário. 

Não vamos citar exemplos aqui, mas há muitos lugares que têm nomes tão estranhos que seus moradores ficam até encabulados de dizer que são de lá. Já o maringaense sente vaidade e orgulho em dizer onde mora. As pessoas reagem com uma pitada de inveja: “Puxa, que lugar bacana!…” e não raro emendam: “Maringá, Maringá…”

O nome é a primeira marca de cada um. Feliz Maringá, que já nasceu marcada para ser famosa. Valeu, Joubert. Que nome lindo você inventou para a sua canção, da qual nos tornamos xarás.

(Crônica publicada no Jornal do Povo, em 14 set 2023)

Baú de Trovas LXXVII


Acaso fizeste a Lua?
Acaso fizeste a rosa?
Então que ciência é a tua,
tão solene e presunçosa?…
A. A. de Assis
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A saudade é uma andorinha,
que ao morrer do sol a chama,
as asas tristes aninha
no coração de quem ama…
Adelmar Tavares +
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Quem ama tem de sofrer.
É de todos já sabido.
Pois de gozo e padecer
fez-se o reino de Cupido.
Antônio José de Vellasco Jr.
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O tempo é bom funcionário!
Fiel, não cede a pressões,..
Velho agente alfandegário,
confiscador de ilusões!
Antonio de Oliveira
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Se estás sempre me esperando,
sempre te espero também;
e, sempre, encontros marcando,
um não vai e outro não vem...
Antonio Orlando +
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Vou carregando meu fardo
sem praguejar nos caminhos,
pois sou feito a flor do cardo
que desabrocha entre espinhos.
Antonio Juraci Siqueira
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Na guitarra chora o fado
que imortalizas na voz...
No teu xale bem bordado
tem saudade presa aos nós,..
Antonio Morgado Pinto
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No grande circo da vida,
eu me finjo prazenteiro,
oculto a alma ferida,
e vibro no picadeiro.
Arlindo Castor de Lima +
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O resplendor deste olhar
ilumina o meu caminho.
Pássaro errante a voar,
volto sempre ao nosso ninho.
Arthur Thomaz
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Quisera que minhas rugas
que os anos em mim marcaram,
fossem só marcas, que em fugas,
lindos sorrisos deixaram!
Arturita Teixeira Pinto
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Tantos disseram: cuidado
com as setas de cupido.
Bolas!... só fui avisado
quando já fora atingido.
Ary de Oliveira +
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Velha foto esmaecida
deixou lágrima de herança!
Hoje a vejo colorida
pelo cristal da lembrança.
Atila Silveira Brasil +
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Colhi, entre amigos meus,
este conceito profundo:
– Mãe é um sorriso de Deus
nos sofrimentos do mundo.
Auta de Souza +
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O trovador que se preza,
só faz a trova contrito,
na postura de quem reza,
de olhos postos no infinito.,.
Batista Soares
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A lua beija a favela...
A estrela no céu reluz...
- Meu bem, apaga essa vela,
o amor não quer tanta luz!…
Carolina Ramos
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Quando no outono da vida
eu me perco em devaneio,
vejo uma luz colorida
e em sonhos, eu veraneio.
Cecy Barbosa Campos
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Ai de quem foge, no mundo,
dos caminhos da verdade
que a fuga dura um segundo
e o remorso... a eternidade.
Célio Grunewald +
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Certo bispo ouve uma “história”
de um padre chamado Hilário
e grava, assim, na memória
um bom “Conto do Vigário”.
Cláudio de Cápua +
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Senhor, neste amanhecer,
louvo a tua criação;
da aurora ao entardecer,
eu te encontro em meu irmão!
Cônego Benedito Vieira Telles +
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Espaço que dá saber,
que abole manipulados,
estimula o bem-querer:
Escola, abre cadeados...
Cristina Cacossi
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A silhueta da santa
pintada em nobre capela
também vinga que nem planta
em barracão de favela.
Cristina Leite
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Da vida aceito o convite:
tomo nas mãos um compasso ,
e o mundo não tem limite
quando meus sonhos eu traço..,
Djalda Winter Santos +
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Sentimos tanta alegria
quando estamos abraçados,
que, para nós, qualquer dia
é Dia dos Namorados!
Divenei Boseli +
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A favela à luz da lua
é um presépio em miniatura.
Mas, ante o sol, triste e nua
tem de um calvário a estatura.
Domitila Borges Beltrame
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Ao deparar com a cena
de uma boa escorregada,
confesso que tenho pena,
mas não seguro a risada.
Edy Soares
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Na linha da nossa vida,
nós temos a curva e a reta;
encontramos a guarida
quando a dor a inveja injeta.
Elisa Alderani
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Fui por vós, senhora minha,
o que não fui por ninguém;
é que a conta vós não tinha
de pagar com o mal o bem.
Emiliano Perneta + 
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Eu te quero às escondidas
e, se esta espera durar,
te esperarei quantas vidas
for necessário esperar!
Eugênia Maria Rodrigues +
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Há um renovar de energia
e um futuro de esperança,
ao sentir, na mão macia,
o carinho da criança!
Eulinda Barreto Fernandes
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Eu sinto nos braços teus,
um carinho, um aconchego,
e me torno um semideus
vivendo em paz, no sossego.
Filemon Francisco Martins
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Os meus amigos são tantos
de uma bondade sem fim,
que não preciso ter prantos,
pois eles choram por mim!
Francisco José Pessoa +
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Diante do altar, rezando,
minha mãe chorava e ria...
Era a ternura aflorando
no cálice da poesia!
Giselda Medeiros
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Sozinhas nas madrugadas,
donas do mundo e da lua,
nossas mãos entrelaçadas
seguem juntas pela rua!
Gislaine Canales +
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Esta chuvinha danada,
que bate aqui na "moringa"!
Clama o bêbado na estrada:
por que é que não pinga "pinga"?...
Giva da Rocha
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"Adeus, meu sonho perdido,
belo, imponente, palpável!",
disse a mulher ao marido
e ao seu "lixo reciclável"!
Héron Patrício +
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A sorte, esquiva e malvada,
não dá “chance”, só trabalho...
Eu a sigo pela estrada,
e ela foge pelo atalho!…
Izo Goldman +
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Candelabro, iluminaste
meus dias! Que glória viste!
Agora és um velho traste
nas noites de um velho triste!
Jacy Pacheco +
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Você me chamou de "pão"...
uma carinha tão meiga
que fez do meu coração
um potinho de manteiga...
Jaime Pina da Silveira
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A fuga não leva a nada,
meu caminho eu sigo em frente,
Em toda e qualquer estrada,
há um anjo guardando a gente.
Jaqueline Machado
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Mesmo após tua partida,
te busco na multidão…
Sem você, não tenho vida,
levaste o meu coração!
José Feldman
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Sinto inveja dos ponteiros
de hora em hora se encontrando,
pois gasto meses inteiros,
sem sucesso, te buscando…
Lacy José Raymundi +
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A paz é conquista interna,
pura ausência de ansiedade,
tranquilidade que externa
prazer e felicidade.
Lairton Trovão de Andrade
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Nas tristes tardes de outono,
entre as folhas, sem meu bem,
vago a esmo, no abandono...
sou folha seca também!
Lucélia Santos
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Quisera ter um amor
tão lindo como cristal;
e repleto de esplendor,
livre de bruma fatal.
Luiza Nelma Fillus
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A mentira, então solteira,
foi juntar-se ao desrespeito
e a traição, filha primeira,
fez nascer um lar desfeito.
Luiz Damo
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Quis pintar em aquarela
a história do nosso amor;
não pintei nada na tela;
como é que se pinta a dor?
Luiz Poeta
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Quando o verso é costurado
com sentimento e magia,
parece vir cravejado
de ternura e de poesia.
Maria Luiza Walendowsky
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Se de amor, em asas plenas,
um "sim" disseres, discreto,
com as três letras apenas
me darás o céu completo.
Miguel Russowsky +
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Mal termina a serenata,
um silêncio, sorrateiro,
derrama gotas de prata
nos olhos do seresteiro...
Milton Souza +
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Sem ter fé, és indefeso 
no estirão para o futuro; 
Igual não teres aceso 
nenhum fósforo no escuro.
Naiker Dálmaso
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Esperar muito da vida,
das pessoas, é ilusão.
É um beco sem saída
que termina em decepção.
Nilsa Alves de Melo
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Fogueira em festa junina...
Eu me queimei um bocado!
Na quadrilha eu vi menina
e saí de lá casado!
Paulo Roberto de Oliveira Caruso
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A existência é dividida
em dois extremos da idade:
- um, alvorada da vida,
outro, arrebol de saudade!
Professor Garcia
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Ao te encontrar, velha agenda,
lá no fundo da gaveta,
meu passado se desvenda...
És a minha “caixa-preta”!
Renato Alves
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Não temo quedas, barreiras,
por mais que a tristeza insista.
Águas que são cachoeiras
não tem lodo que resista!
Rita Mourão
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O rancho de tantos causos
alegres, sempre bravios
desperta muitos aplausos
e afasta os dias sombrios.
Sinclair Pozza Casemiro
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As águas em calmaria
brotando em tua nascente,
são rios em romaria
em um queixume doente.
Solange Colombara
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Ao pai dela, o cafajeste
explica: "Foi num pagode"...
O velho é um "cabra da peste"
e a moça explica: "Deu bode!”
Therezinha Dieguez Brisolla
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Ao vento não lances praga,
pensa, repensa e medita,
pois a boca sempre paga
pela frase que foi dita!
Vanda Alves da Silva
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Velha viola, na orfandade,
calou-se, pois seus segredos
não suportam a saudade
nem o toque de outros dedos!
Zaé Júnior
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Hans Christian Anderssen (O príncipe malvado)

Era uma vez um príncipe muito perverso, que só pensava em conquistar todos os países do mundo e inspirar medo às criaturas humanas. Por onde passava, ia assolando a terra a ferro e fogo. Seus soldados pisoteavam as sementeiras, incendiavam as casas dos camponeses, deixando as chamas vermelhas lamberem a folhagem do pomar, de tal maneira que as frutas ficavam assadas nas árvores enegrecidas e estorricadas. 

Quantas mães não procuraram refúgio, com os filhinhos nos braços, atrás das paredes ainda fumegantes da casa incendiada! Mas lá mesmo iam os soldados descobri-las, e, dando, com as infelizes, ainda achavam maior estímulo para seus diabólicos instintos! O próprio gênio do mal não poderia proceder com maior maldade do que aquela soldadesca. Mas o príncipe entendia que assim devia ser, que aquilo era regular e lícito.

Aumentava dia a dia o seu poder. Seu nome era de todos temido, e sempre se saía bem de todas as façanhas. Possuía grandes tesouros, que levara das cidades conquistadas para o seu país, e na capital acumulavam-se riquezas que não tinham rival em parte alguma. Mandou construir castelos suntuosos, igrejas, salões de recepção; e quem via aquelas magníficas construções e os tesouros que continham, não podia deixar de exclamar, tomando de respeito:

- Que grande príncipe!

Mas é porque não se lembrava então da miséria que ele andara espalhando pelas outras terras; é porque não ouvia os suspiros e os gemidos que erguiam das cidades reduzidas a cinzas.

Contemplando todo o seu ouro e seus esplêndidos edifícios, o príncipe também pensava como a multidão: " Que grande príncipe sou eu!" Mas vinha-lhe logo outro pensamento: - É preciso que tenha mais ainda, muito mais! Nenhum poder deve igualar ao meu e menos ainda ultrapassá-lo!

E, assim pensando, moveu guerra aos vizinhos, vencendo-os a todos. Jungiu ao seu carro, com cadeias de ouro, os reis vencidos, e assim se exibiu pelas ruas da capital. Quando se regalava à mesa, os reis vencidos tinham de se ajoelhar aos pés e dos cortesãos, e só podiam comer os restos que lhes atiravam.

Acabou por fazer erigir a própria estátua nas praças públicas e nos castelos reais; e se não a instalou também nas igrejas, diante do altar do Senhor, foi porque os sacerdotes se lhe opuseram, dizendo:

- Vossa Alteza é grande, mas Deus é maior. E nós não obedeceremos a semelhante ordem.

- Pois então - bradou o príncipe- vencerei também a Deus!

E na sua arrogância e estúpida impiedade, mandou construir um suntuoso navio, para nele sulcar os ares,

Era um navio de magnífico aspecto e todo pintado de cores variegadas. Parecia salpicado de milhares de olhos, mas na verdade, cada olho era um cano de fuzil. Sentado no centro da nave, bastava-lhe calcar uma alavanca para que mil balas disparassem de todos o lados, enquanto as bocas de fogo eram imediatamente carregadas de novo. Centenas de águias foram atreladas ao navio e, rápidas como flechas, subiram em direção ao sol.

Como a terra se estendia lá embaixo! Com suas montanhas e florestas, parecia apenas uma lavoura cheia dos sulcos do arado. Mas dali a pouco já se assemelhava a um mapa raso, de traços não muito distintos; e por fim aparecia toda envolta em névoas e nuvens.

E as águias voavam cada vez mais alto, mais alto nos ares...

Mas eis que Deus mandou um dos seus inúmeros anjos - um único. O príncipe malvado lançou contra ele milhares de balas; elas porém, ricocheteavam, sem ferir as asas brilhantes do anjo, e caíam como simples grãos de granizo. Contudo, uma gota de sangue, uma só gota, brotou de uma das alvas penas e foi cair no navio do príncipe. E essa gota única corroeu o navio, pesou sobre ele como milhares de quintais de chumbo e arrastou-o para baixo, em uma queda precipitada. Partiram-se as robustas asas das águias. 

O vento uivava ao redor da cabeça do príncipe e as nuvens formadas pela fumaça das labaredas das cidades incendiadas transformavam-se em vultos ameaçadores - caranguejos marinhos, de milhas de comprimento, que estendiam para ele garras e pinças; e amontoavam-se formando imensos penedos. E desses penedos rolavam blocos, que se convertiam logo em dragões a cuspir fogo...

E o príncipe jazia semimorto no bojo do navio, que ficou afinal suspenso, depois de um baque tremendo, sobre uma floresta.

- Quero vencer a Deus! - bradava o príncipe. - Jurei-o e hei de fazer o que quero!

E sete anos se passarem na construção de artísticos navios que haviam de singrar os ares, como veleiros. O príncipe mandou cortar raios do aço mais resistentes para despedaçar as fortificações do céu. Concentrou guerreiros de todos os países que conquistara: formavam filas de milhas de extensão. Embarcaram esses exércitos nos navios engenhosamente construídos; o príncipe aproximou-se do que lhe era destinado...

Mas eis que Deus enviou um enxame de mosquitos - um único enxame, não muito grande, de mosquitos que dançavam em redor do príncipe, picando-lhe o rosto e as mãos. 

Enraivecido, desembainhou a espada e deu golpes no ar. Mas era só no ar que acertava mesmo: não apanhava um só mosquito. Mandou então buscar tapetes preciosos e enrolou-se neles, para se livrar dos insetos. Os criados executaram todas as suas ordens. Mas um mosquito - um único mosquito - ficou no interior do tapete e introduziu-se no ouvido do príncipe. Picou-o e a picada ardia como fogo que queima. O veneno do mosquito infiltrou-se-lhe no cérebro e o príncipe, como um louco, lançou longe os tapetes em que se envolvia. Despedaçando as roupas, pôs-se a dançar, completamente despido, diante dos seus ferozes guerreiros. 

Estes agora zombavam do príncipe doido, que quisera guerrear Deus e fora vencido por um só mosquito, por um minúsculo mosquito.

Fonte> Fonte> Hans Christian Andersen. Contos. Publicado originalmente em 31 de outubro de 1840. Disponível em Domínio Público

Hinos de Cidades Brasileiras (Ribeirão Preto/SP)


Letra: José Saulo Pereira Ramos; Música: Diva Tarlá de Carvalho

A minha terra é um coração
Aberto ao sol pelas enxadas
Sangrando amor e tradição
No despertar das madrugadas.

História exemplo, amor e fé
Assim traçamos teu perfil
Ribeirão Preto, terra do café
Orgulho de São Paulo e do Brasil.

Nasceste do destino nacional
Das caminhadas rumo ao Oeste
E ainda guardas o belo ideal
Dessa epopéia em que nasceste.
Ribeirão Preto esse destino
Que consagrou a tua gente
É do trabalho o grande hino
Que há de viver eternamente.
 
A minha terra é um coração
Aberto ao sol pelas enxadas
Sangrando amor e tradição
No despertar das madrugadas.

És linda jóia no veludo
Dos nossos verdes infinitos cafezais
E se em ti amada terra temos tudo
Ainda procuramos dar-te mais.

A minha terra é um coração
Aberto ao sol pelas enxadas
Sangrando amor e tradição
No despertar das madrugadas.

Nilto Maciel (Rotação)

Eles liam pausadamente, compassadamente, demoradamente. Liam em voz alta, para que todos ouvissem suas palavras. Às vezes cantochão, deslizar suave de água mansa. Alguns chegavam a cochilar. Adiante, a voz se fazia áspera, gritante. Arregalavam os olhos, empertigavam-se. Nenhuma atenção fugia do leitor. Todos encantados. Para mim, no entanto, o salão se enchia de palavras ininteligíveis. Ou então nunca mais voltei a ouvi-las, apesar de ter sempre os ouvidos atentos. Eu todo me voltava, em todos os sentidos, para o que diziam e faziam. Os livros passavam de mão a mão, assim como meu corpo infante, num ritual monótono. As mãos, aquelas mãos tão diferentes entre si, às vezes brutais, voltadas unicamente para os livros e as palavras. Aquelas mãos que de mim faziam mero objeto, obrigado a estar e ouvir. E a girar.

Eu percorria o salão, de hora em hora, sempre voltado para o seu centro, onde se amontoavam livros, cadernos, canetas, garrafas, cigarros, sapatos e outros objetos. Tal rotação, no entanto, não me deixava tonto, como me deixa hoje o girar em torno de meu próprio eixo.

Eles eram muitos, formavam um círculo perfeito, e o giro se fazia lentamente. Eles me demoravam cerca de dez minutos no colo de cada um. Ocorria-me tontura, porém, quando se aproximava o momento de ser passado às mãos seguintes, depois de ter dado trinta, quarenta ou cinquenta voltas. Eu pressentia o exato momento de ser erguido, como se faz com todas as crianças, e entregue ao vizinho. Eu me sentia um gato, uma galinha, um boneco, um objeto. Chegava a miar, cacarejar, fazer estranhos ruídos, como um brinquedo sofisticado. Eles permaneciam tão atentos à leitura que apenas se entreolhavam, sutilmente assustados, como se quisessem perguntar uns aos outros se tinham ouvido alguma voz não-humana. Nesses momentos me ocorriam vertigens, como se descesse ao fundo dos sons ou alcançasse o interior das palavras. Não sei como explicar. Eu me envolvia nas vozes, nos ecos, como se viessem de muito longe, de um espaço e um tempo absurdamente desconhecidos. Eu me sentia envolvido e sufocado por gases ou líquidos, voando ou boiando nos seus núcleos. E parecia ouvir e repetir ou apenas dizer: “um rio pode ensinar-nos muito coisa”. Não, não lembro nenhuma outra palavra. A não ser uma ou outra. Como “Tuam Asi”, ou pedaços de frases, como “teus olhos estão abertos para sempre”, “sei de que parte virá a aurora”.

Nunca perguntei nada daquilo a ninguém. Nem mesmo a minha mãe. Talvez hoje eu o fizesse. Tanto por curiosidade como para me livrar deste pesadelo. Não conheço mais nenhuma daquelas pessoas. Talvez tenham morrido. Ou estejam apenas desaparecidas, escondidas, foragidas. Estranho, porém, a atitude de minha mãe: por que não ficava comigo durante toda a leitura? Por que não se recusava a ler? Por que não insistia para ficar comigo? Chegada a sua vez de ler, passava-me adiante, ao seu vizinho, como passava o livro, naturalmente. Ocorria, às vezes, ser meu pai o seu vizinho. Então, eu me sentia menos tonto e chegava a rir de tanta felicidade.

Constantemente interrompiam a leitura. Não sei por quais motivos. Um deles mandava que fizessem silêncio. Mostravam-se assustados, nervosos, a olhar para os cantos das paredes, as portas, o teto, como se alguém ou alguma coisa muito terrível os ameaçasse. Por duas ou três vezes pularam todos para o porão. A tampa ficava no centro do salão, justamente onde amontoavam seus pertences. Era um buraco escuro, sufocante e estreito. Eu chorava, amedrontado. E dezenas de mãos me amordaçavam. Numa dessas confusões quase morri. Quando deram o alarme, todos pularam. A moça que me segurava perdeu o equilíbrio e fomos ao chão. Esbocei um grito. Mãos poderosas caíram sobre minha boca.

Também fui pivô de outros incidentes, embora de menor importância. A vítima quase sempre era minha mãe. Eu tudo fazia para não sujar os outros. Apenas uma vez ocorreu ter urinado num deles. Ora, eu me achava distante dela cerca de meio círculo. Não podia esperar mais.

Minha mãe não anunciou a ocorrência. Correu ao banheiro e me lavou. De volta, devia ler. Passou-me ao vizinho, que fez cara de herege. Nervosa e encabulada, ela se pôs a ler o cantochão. Parecia o deslizar suave de água mansa.

Fonte> Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997. Enviado pelo autor.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 17

 

Mensagem na Garrafa = 89 =

Sílvia Letícia Carrijo

O SENTIDO DA VIDA

"A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida." (Vinicius de Moraes)

O que ouvimos é que a vida é fácil de ser vivida nós é que complicamos, mas será que é mesmo? Claro que em alguns momentos nós a complicamos pra valer, mas nem sempre. Eu costumo dizer que a vida deveria ter uma vírgula, um ponto de espera para depois o fim. Mas não é assim. Ela nunca para para podermos reavaliar. Temos que ir caminhando e tomando decisões sendo elas importantes ou não. Luís Fernando Veríssimo fala que a vida é estranha, não importando que tipo de olhar você lance sobre ela. E ele tem razão. Há momentos em que não sabemos o porquê dela e nem para que lado irá nos levar. Apenas sabemos que vale a pena viver e que mesmo sendo difícil em alguns momentos e complicados em outro ela é simplesmente linda e tem sua forma particular de nos conduzir.

Quando vejo o pó da terra fico olhando para ele com uma enorme interrogação. Somos feito dele e para ele voltaremos [...] até que volte à terra, visto que dela foi tirado; porque você é pó, e ao pó voltará". (Gênesis 3:19b). Com isso podemos chegar a conclusão que somos o melhor desta terra, é a mesma terra que nos alimenta e que a destruímos com lixos, venenos e pouco importamos com sua qualidade.

Fico olhando para nós como que do lado de fora. Vejo alguém tentando dominar o seu mundo, um vaso com peixe, muros tão altos quem nem ele mesmo sabe para quê. Barreiras daqui dali e vem o vento destrói tudo, vem o ladrão e leva o ouro como se não existisse nada para interromper sua imaginação. Os mesmos que criam barreiras são os mesmos que nos destroem. - O homem e suas ideias mirabolantes.

Anunciamos para todos que o sentido de nossa vida está em encontrar um amor. Alguém que nos complete nos faça felizes e realizados e sabemos muito bem que jamais seremos felizes com outra pessoa se não formos felizes e realizados primeiro conosco. Com a vida que escolhemos e com o sentido que damos a ela. Depois que achamos ter encontrado este ser tão poderoso não demora muito já mudamos o discurso, e é sempre o outro o ruim, nunca nossa própria vida e como a levamos e continuamos assim tentando e achando que no outro encontraremos algo. Nos conformamos quase sempre com essa história e não tentamos mudar, apenas seguimos o ritmo do conformismo.

Quando encontro casais que se separaram pergunto o porquê e a resposta é sempre a mesma: - a diferença. Mas por que se são as diferenças que nos fazem tão encantadores no inicio da relação. Ficamos tão grilados com elas que gladiamos, fazemos tormentas em copos de água. Enquanto poderíamos aprender com as diferenças e celebrarmos a vida. Mas não é fácil assim. Só parece fácil. Do pó somos feitos frágeis, levados pelo vento...

Amo os apaixonados, eles são o reflexo do nosso desentendimento total da vida. Queremos estar o tempo todo juntos, mas somente brigamos quando nos encontramos. Alguns conseguem fazer com que a paixão vire amor e aí dura, outros descobrem que mesmo apaixonados não dá para ficarem juntos e outros destroem o objeto da paixão por não saber o que fazer com ele.

Como a vida nem sempre é o que parece nos perdemos pelo caminho. Amamos dizer que vivemos em grupo, mas é a sós que nos sentimos nós mesmos é no isolamento que construo meu mundo. Só nos importamos em estar bem, não para mim, mas para mostrar ao outro que sou importante. Afinal é a aparência que manda não quem sou de verdade. Por isso gastamos mais tempo com ela que com meu pó (eu) interior.

Bom, a vida mesmo com suas complicações e beleza não deve ser considerada apenas um rito de passagem. É mais que isso é a oportunidade que temos de encontrar, curtir dar e receber de outros. É o presente mais precioso que temos. Muitas das vezes as barreiras não nos deixam ver. O velho sábio Salomão disse que vale mais a sabedoria. É verdade mais vale também viver de forma calma, tranquila mesmo na tempestade. Como? Sabendo olhar com olhos de aprendizado a tudo. Pois em cada desastre temos culpa, temos parcela de culpa e temos algo a aprender.

Então o que vale da vida é viver, vale amar. Amar de forma correta sem querer ser o que não somos, sem teorias cabulosas ou formas de explicar tudo pela ciência ou religião. Apenas ser mais doce, amar a vida e o que ela nos dá. Amar as pessoas com suas diferenças de pensamento e personalidade. Jogando no lixo o rancor, ódio que nos guia cegamente.

O amor é a forma mais linda de expressar carinho, vontade de viver e abandono de críticas. Mas não sabemos amar, conhecemos o amor posse, o amor domínio. Este não vale a pena. Precisamos amar momentos, situações, pessoas, animais e amar a vida como ela é. Assim vale a pena viver.

Hoje você acordou amanhã só Deus sabe. Mas não pensamos assim, achamos que somos infinitos então fazemos tudo errado parecendo que vamos ter uma nova chance. Mas não tem, então vamos viver a vida de forma mais calma sabendo que o amanhã não nos pertence.

Monsenhor Orivaldo Robles (As dores de cada um)

Dom Jaime gostava de citar o versículo 10 do salmo 90: “Os anos de nossa vida são setenta; para os mais robustos, oitenta: assim mesmo cheios, em sua maior parte, de fadiga e aborrecimento”. Acho que para mostrar que era um caso raro. Não completou um século, como pretendia, mas chegou perto. Morreu aos 97 anos. Poucos atingem essa marca.

Em nossos dias as pessoas vivem mais que no passado. Todos os países apresentam crescimento na expectativa de vida do seu povo. Quando era jovem, eu fazia as contas: no ano 2000, na virada do século, estarei com 59 anos. Parecia uma coisa longínqua, que nunca ia chegar. Hoje, meus 59 anos continuam distantes. Só que lá atrás. Nunca mais voltarão.

Com pesar percebo que minha disposição física não é a mesma. Mudou muito. Para pior, infelizmente. Já comentei a opinião de um amigo meu, homem simples, mas de grande sabedoria. Certa ocasião, ele me disse: “Olhe, padre, nós estamos naquela idade em que as pessoas não perguntam ‘Como vai’, mas ‘Onde dói’”. Verdade. No passado, com frequência, eu aceitava convite de amigos para pescar. Não sou grande pescador; mas é o hobby que mais me atrai. Uma distração que me reanimava para o trabalho. Fazia anos que eu não pescava mais. Outro dia, um amigo querido teve a bondade de me levar ao velho Paranazão. Levei um susto. Não pensei que eu tivesse envelhecido tanto. Subir num bote ou apear dele viraram tarefas quase impossíveis. Não fosse o amigo me ajudar, eu ainda estaria lá me esforçando para conseguir. Um vexame. Em vez de companhia me tornei saco de sal. Assim chamávamos, nos bons tempos, ao colega que, em lugar de ajudar, dava trabalho. Como eu, agora.

Não só é menor a disposição, mas o corpo está mais pesado, mais lento, mais enfraquecido. Envelhecer é, sim, uma arte. Mas a carga parece maior a cada dia. Com frequência recebo indicativo de que a saúde exige cuidados que, antes, não pareciam importantes. À pergunta sobre tal ou qual sintoma, era comum eu responder: “Não sei o que é isso”. Não por presunção, mas com sinceridade. Apesar de minhas antigas cólicas renais ou neuralgias do trigêmeo. Mas dor é assim mesmo. Na hora a gente reclama, geme, urra, rola no chão. Passou, não lembra mais.

Talvez para eu não esquecer que sou um frágil mortal, sujeito, como todos, às fraquezas que nos acometem, fui contemplado com uma “inflamação aguda, produzida por Herpesvirus varicellae, dos gânglios sensitivos da espinha dorsal, com erupção de vesículas na pele e dores nevrálgicas”. Não que eu entenda esse palavrório empolado. Copiei-o do dicionário em que fui buscar o sentido de herpes-zóster, nome da enfermidade que, por causa da imunidade baixa, me atacou. Noite dessas, dormi a conta-gotas. Dor enjoada e persistente incomodava-me o lado esquerdo do tronco. Surgiu depois a erupção que, na infância, lá na roça, o povo chamava “cobreiro”. Mas o meu tinha altura de um centímetro. E doía sem parar. Deus teve pena deste pobre pecador. Colocou no meu caminho pessoas especiais. Trataram-me com competência e carinho. Cá estou eu, com dores ainda, mas bem melhor do que nestes dias passados.

Não conheço herpes labial ou genital. Mas o herpes-zóster sei que dói um bocado. O consolo é que, conforme li, quem já teve herpes-zóster dificilmente terá uma segunda vez.

Será por falta de tempo? Vai saber.

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 13 -


NOITES AMADAS

Ó noites claras de lua cheia!
Em vosso seio, noites chorosas,
Minh’ alma canta como a sereia,
Vive cantando num mar de rosas;

Noites queridas que Deus prateia
Com a luz dos sonhos das nebulosas,
Ó noites claras de lua cheia,
Como eu vos amo, noites formosas!

Vós sois um rio de luz sagrada
Onde, sonhando, passa embalada
Minha Esperança de mágoas nua...

Ó noites claras de lua plena
Que encheis a terra de paz serena,
Como eu vos amo, noites de lua!
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OBRIGADA!

...E tu rezas por mim! Como agradeço
Essa esmola gentil de teu carinho...
Como as torturas de minh’alma esqueço
Nessa tua oração, floco de arminho!

Eu te bendigo, ó santa que estremeço,
Alma tão pura como a flor do linho.
É tua prece à mágoa que padeço
Asa de pomba defendendo um ninho!

Reza, criança! Junta as mãos nevadas
E cerra as níveas pálpebras amadas
Sobre os teus olhos como um lindo véu...

Depois, nas asas de uma prece ardente,
Deixa cantar minh’ alma docemente,
Deixa subir meu coração ao céu!
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O BEIJA-FLOR

Acostumei-me a vê-lo todo o dia
De manhãzinha, alegre e prazenteiro,
Beijando as brancas flores de um canteiro
No meu jardim — a pátria da ambrosia.

Pequeno e lindo, só me parecia
Que era da noite o sonho derradeiro...
Vinha trazer às rosas o primeiro
Beijo do Sol, nessa manhã tão fria!

Um dia, foi-se e não voltou... Mas, quando
A suspirar, me ponho contemplando,
Sombria e triste, o meu jardim risonho...

Digo, a pensar no tempo já passado;
Talvez, ó coração amargurado,
Aquele beija-flor fosse o teu sonho!
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O CORAÇÃO E O BEIJO

Meu coração chorava e eu lhe dizia:
Por que choras assim, pobre criança?
E o triste, a soluçar, me respondia:
Ninguém pode viver sem Esperança.

Tu tens a Fé. — A Fé? Mas, o que é dela
Sem da Esperança as ilusões serenas?
Um céu à noite sem nenhuma estrela,
Um’ alma em flor sem um sorriso apenas...

— Mas tens a Caridade. — A Caridade?
Ah, sim! o vinho que embriaga a dor.
Mas eu não amo... Pois, não é verdade
Que a Caridade é o que se chama — amor?

Nisto passava uma criança linda,
Botão de lírio, imaculado e santo.
Meu coração que soluçava ainda
Sorriu ao ver o melindroso encanto.

E foi beijar-lhe os pequeninos lábios,
Folhas de rosa abrindo de manhã,
Onde adejavam místicos ressabios
Dos beijos de uma mãe e de uma irmã...

Compreendeu, então, o desolado
A linguagem sublime desse harpejo:
Neste mundo de lágrimas povoado,
A Caridade pode estar num beijo!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = c

PÁGINA AZUL

No país de minh’ alma há um rio sem mágoas,
Um rio cheio de ouro e de tanta harmonia,
Que se cuida escutar no marulhar das águas
Do sussurro de um beijo a doce melodia.

Este rio é o meu sonho, um sonho azul e puro,
Como um canto do céu, como um braço do mar;
Loura réstia de sol a rebrilhar no escuro,
Casta luz que cintila em torno de um altar.

De um altar que palpita e que sofre e que sonha,
Soletrando a cantar a linguagem do amor...
Do altar do Coração, a paisagem risonha
Onde brotam sorrindo as ilusões em flor.

Vem beber, meu amor, neste rio que é fonte,
É fonte de esperanças e lago de quimera...
Vem morar num país que não tem horizonte,
Onde não chora o Inverno e só há Primavera.

Fonte: Auta de Souza. Poemas. Publicado postumamente em 1932. Disponível em Domínio Público.