sábado, 11 de agosto de 2012

Hermoclydes S. Franco (Album de Recordações - n.1)


Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 634)

Uma Trova de Ademar 

A bebida é uma desgraça,
nem mesmo o céu me socorre;
pois quando eu bebo cachaça
meu santo fica de porre!
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


No bar, "mamado", esbraveja
e diz sentado num canto
que ele só bebe cerveja,
quem bebe a cachaça é o "santo"...
–Maria Nascimento/RJ–

Uma Trova Potiguar 


Olhem bem para o dilema
que aflige essa solteirona...
seu noivo tem um problema:
nem casa, nem funciona...
–Fabiano Wanderley/RN–

...E Suas Trovas Ficaram 


Eu não vou deixar herança,
pois “grana” é grande ameaça...
Vou torrar minha poupança,
com mulher, e com cachaça.
–Francisco Macedo/RN–

Uma  Poesia 

Na Inglaterra as coisas andam feias
todo mundo por lá endoidecendo;
todo dia é uma princesa sem marido
e um príncipe que sozinho está vivendo...
ou a carne da vaca fez efeito,
ou o chifre do boi está fazendo...
–Edmilson Ferreira/PI–

Soneto do Dia 

A VISITA.
–Edmar Japiassú Maia/RJ–


Suas muitas visitas ao dentista,
em horas variadas do seu dia,
levou a vizinhança, moralista,
a afirmar ser o fato uma ousadia...

No fingimento tinha o dom de artista;
pois, de repente, como por magia,
ressurge a “imensa dor”, sempre imprevista,
que apenas seu dentista é que alivia...

Mas firme, em atitude decidida,
o esposo, transtornado na desdita,
de casa proibiu qualquer saída...

E se hoje aquela “dor” ainda arrasa,
o consultório já não mais visita,
mas o dentista é que a visita em casa!

Ialmar Pio Schneider (Soneto a Tomás Antônio Gonzaga)

Nascimento do poeta em 11.8.1744 - . -

Belo soneto do árcade poeta,
que, inicialmente, canta a sua Alteia,
mas num momento após, qual um profeta,
já pensa em outra e então muda de ideia.

E qual seria agora a sua meta
à procura, afinal, da linda deia
que poderá surgir e ser completa
em sua vida? Chama-se Dirceia.

E quer prender as duas com grilhões,
pois ambas são fantásticas paixões
que invadem a sua alma de verdade.

Pede ao Cupido: ou de Lorino forma
dois sujeitos; ou, quem sabe, transforma
dois semblantes só numa identidade...

Machado de Assis (O Bote de Rapé)

Peça Teatral

Personagens:

    TOMÉ
    UM RELÓGIO NA PAREDE ELISA, sua mulher
    O NARIZ DE TOMÉ UM CAIXEIRO

CENA PRIMEIRA: TOMÉ, ELISA (entra vestida)


TOMÉ Vou mandar à cidade o Chico ou o José.

ELISA Para ... ?

TOMÉ Para comprar um bote de rapé.

ELISA Vou eu.

TOMÉ Tu?

ELISA Sim. Preciso escolher a cambraia,

A renda, o gorgorão e os galões para a saia,

Cinco rosas da China em casa da Malte,

Um par de luvas, um peignoir e um plissé,

Ver o vestido azul, e um véu ... Que mais? Mais nada.

TOMÉ (rindo) Dize logo que vás buscar se uma assentada

Tudo quanto possui a Rua do Ouvidor.

Pois aceito, meu anjo, esse imenso favor.

ELISA Nada mais? Um chapéu? Uma bengala? Um fraque?

Que te leve um recado ao Dr. Burlamaque?

Charutos? Algum livro? Aproveita, Tomé!

TOMÉ Nada mais; só preciso o bote de rapé

ELISA Um bote de rapé! Tu bem sabes que a tua Elisa...

TOMÉ Estou doente e não posso ir à rua.

Esta asma infernal que me persegue... Vês?

Melhor fora matá-la e morrer de uma vez,

Do que viver assim com tanta cataplasma.

E inda há pior do que isso! inda pior que a asma:

Tenho a caixa vazia.

ELISA (rindo) Oh! se pudesse estar Vazia para sempre, e acabar, acabar

Esse vício tão feio! Antes fumasse, antes.

Há vícios jarretões e vícios elegantes.

O charuto é bom tom, aromatiza, influi

Na digestão, e até dizem que restitui

A paz ao coração e dá risonho aspecto.

TOMÉ O vício do rapé é vício circunspecto.

Indica desde logo um homem de razão;

Tem entrada no paço, e reina no salão

Governa a sacristia e penetra na igreja.

Uma boa pitada, as idéias areja;

Dissipa o mau humor. Quantas vezes estou

Capaz de pôr abaixo a casa toda! Vou

Ao meu santo rapé; abro a boceta, e tiro

Uma grossa pitada e sem demora a aspiro;

Com o lenço sacudo algum resto de pó

E ganho só com isso a mansidão de Jacó.

ELISA Não duvido.

TOMÉ Inda mais: até o amor aumenta

Com a porção de pó que recebe uma venta.

ELISA Talvez tenhas razão; acho-te mais amor

Agora; mais ternura; acho-te. . .

TOMÉ Minha flor,

Se queres ver-me terno e amoroso contigo,

Se queres reviver aquele amor antigo.

Vai depressa.

ELISA Onde é?

TOMÉ Em casa do Real;

Dize-lhe que me mande a marca habitual.

ELISA Paulo Cordeiro, não?

TOMÉ Paulo Cordeiro.

Queres,

ELISA Para acalmar a tosse uma ou duas colheres

TOMÉ Do xarope? Verei.

ELISA Até logo, Tomé.

TOMÉ Não te esqueças.

ELISA Já sei: um bote de rapé. (sai)


CENA II: TOMÉ, depois o seu NARIZ


TOMÉ Que zelo! Que lidar! Que correr! Que ir e vir!

Quase, quase lhe falta tempo de dormir.

Verdade é que o sarau com o Dr. Coutinho

Quer festejar domingo os anos do padrinho,

É de primo-cartello, é um grande sarau de truz.

Vai o Guedes, o Paca, o Rubirão, o Cruz

A viúva do Silva, a família do Mata,

Um banqueiro, um barão, creio que um diplomata.

Dizem que há de gastar quatro contos de réis.

Não duvido; uma ceia, os bolos, os pastéis,

Gelados, chá... A coisa há de custar caro.

O mal é que eu desde já me preparo

A despender com isto algum cobrinho...O quê?

Quem fala?

O NARIZ Sou eu; peço a vossa mercê

Me console, insirindo um pouco de tabaco.

Há três horas jejuo, e já me sinto fraco,

Nervoso, impertinente, estúpido, -- nariz,

Em suma.

TOMÉ Um infeliz consola outro infeliz;

Também eu tenho a bola um pouco transtornada,

E gemo, como tu, à espera da pitada.

O NARIZ O nariz sem rapé é alma sem amor.

TOMÉ Olha podes cheirar esta pequena flor.

O NARIZ Flores; nunca! jamais! Dizem que há pelo mundo

Quem goste de cheirar esse produto imundo.

Um nariz que se preza odeia aromas tais.

Outros os gozos são das cavernas nasais.

Quem primeiro aspirou aquele pó divino,

Deixas as rosas e o mais as ventas do menino.

TOMÉ (consigo) Acho neste nariz bastante elevação,

Dignidade, critério, empenho e reflexão.

Respeita-se; não desce a farejar essências,

Águas de toucador e outras minudências.

O NARIZ Vamos, uma pitada!

Um instante, infeliz! (à parte)

Vou dormir para ver se aquieto o nariz. (Dorme algum tempo e acorda)

Safa! Que sonho; ah! Que horas são!

O RELÓGIO (batendo) Uma, duas.

TOMÉ Duas! E a minha Elisa a andar por essas ruas.

Coitada! E este calor que talvez nos dará

Uma amostra do que é o pobre Ceará.

Esqueceu-me dizer tomasse uma caleça.

Que diacho! Também saiu com tanta pressa!

Pareceu-me, não sei; é ela, é ela, sim...

Este passo apressado ... És tu, Elisa?


CENA III: TOMÉ, ELISA, UM CAIXEIRO (com uma caixa)


ELISA Enfim!

Entre cá; ponha aqui toda essa trapalhada.

Pode ir. (Sai o caixeiro) Como passaste?

TOMÉ Assim; a asma danada

Um pouco sossegou depois que dormitei.

ELISA Vamos agora ver tudo quanto comprei.

TOMÉ Mas primeiro descansa. Olha o vento nas costas.

Vamos para acolá.

Cuidei voltar em postas.

ELISA Ou torrada.

TOMÉ Hoje o sol parece estar cruel.

Vejamos o que vem aqui neste papel.

ELISA Cuidado! é o chapéu. Achas bom?

TOMÉ Excelente.

Põe lá.

ELISA (põe o chapéu)

Deve cair um pouco para a frente.

Fica bem?

TOMÉ Nunca vi um chapéu mais taful.

ELISA Acho muito engraçada esta florzinha azul.

Vê agora a cambraia, é de linho; fazenda

Superior. Comprei oito metros de renda,

Da melhor que se pode, em qualquer parte, achar.

Em casa da Creten comprei um peignoir.

TOMÉ (impaciente) Em casa da Natté

ELISA Cinco rosas da China.

Uma, três, cinco. São bonitas?

TOMÉ Papa-fina.

ELISA Comprei luvas couleur tilleul, creme, marron;

Dez botões para cima; é o número do tom

Olhe este gorgorão; que fio! que tecido!

Não sei se me dará a saia do vestido.

TOMÉ Dá.

ELISA Comprei os galões, um fichu, e este véu.

Comprei mais o plissé e mais este chapéu.

TOMÉ Já mostraste o chapéu.

ELISA Fui também ao Godinho,

Ver as meias de seda e um vestido de linho.

Um não, dois, foram dois.

TOMÉ Mais dois vestidos?

ELISA Dois...

Comprei lá este leque e estes grampos. Depois,

Para não demorar. corri do mesmo lance,

A provar o vestido em casa da Clemence.

Ah! Se pudesse ver como me fica bem!

O corpo é uma luva. Imagina que tem...

TOMÉ Imagino, imagino. Olha, tu pões-me tonto

Só com a descrição; prefiro vê-lo pronto.

Esbelta, como és, hei de achá-lo melhor

No teu corpo.

ELISA Verás, verás que é um primor.

Oh! a Clemence! aquilo é a primeira artista!

TOMÉ Não passaste também por casa do dentista?

ELISA Passei; vi lá a Amália, a Clotilde, o Rangel,

A Marocas, que vai casar com o bacharel

Albernaz...

TOMÉ Albernaz?

ELISA Aquele que trabalha

Com o Gomes. Trazia um vestido de palha...

TOMÉ De palha?

ELISA Cor de palha, e um fichu de filó,

Luvas cor de pinhão, e a cauda atada a um nó

De cordão; o chapéu tinha uma flor cinzenta,

E tudo não custou mais de cento e cinqüenta,

Conversamos do baile; a Amália diz que o pai

Brigou com o Dr. Coutinho e lá não vai.

A Clotilde já tem a toilette acabada.

Oitocentos mil-réis.

O NARIZ (baixo a Tomé) Senhor, uma pitada!

TOMÉ (com intenção, olhando para a caixa)

Mas ainda tens aí uns pacotes...

ELISA Sabão;

Estes dois são de alface e estes de alcatrão.

Agora vou mostrar-te um lindo chapelinho

De sol; era o melhor da casa do Godinho.

TOMÉ (depois de examinar)

Bem.

ELISA Senti, já no bonde, um incômodo atroz.

TOMÉ (aterrado)

Que foi?

ELISA Tinha esquecido as botas no Queirós.

Desci; fui logo à pressa e trouxe estes dois pares;

São iguais aos que usa a Chica Valadares.

TOMÉ (recapitulando)

Flores, um peignoir, botinas, renda e véu.

Luvas e gorgorão, fichu, plissé, chapéu,

Dois vestidos de linho, os galões para a saia,

Chapelinho de sol, dois metros de cambraia

(Levando os dedos ao nariz)

Vamos agora ver a compra do Tomé.

ELISA (com um grito)

Ai Jesus! esqueceu-me o bote de rapé!

Fonte:
Portal São Francisco

Cândida Vilares Gancho (Como Analisar Narrativas) Parte 12, final

Vocabulário crítico
 
Ação: v. Enredo

Ambiente: é um misto de espaço, tempo e clima.

Antagonista ou vilão: é o personagem que se opõe ao protagonista na história.

Anti-herói: é o personagem principal com aparência de herói, mas fracassado.

Assunto: é a maneira como o tema é desenvolvido concretamente no texto.

Bibliográfico(a): adjetivo referente a bibliografia= relação dos livros consultados ou pesquisados.

Burguês ou burguesa: adjetivo referente à classe social burguesia que detém riqueza, terras, indústrias e visa a obtenção do lucro. A sociedade burguesa seria aquela em que há hegemonia (domínio) da burguesia.

Caracteres ou característica: são os atributos as peculiaridades dadas de determinada coisa.

Caricatura: personagem que é conhecido por algum poucas características ridículas.

Causa ou fator ou motivo: é o que provoca o surgimento de algo.

Clima: condições sociais, morais, econômicas, políticas e psicológicas que influem no ambiente.

Clímax: é uma das partes do enredo que constitui o momento de maior tensão da história.

Comando: aquilo que é pedido pelo enunciado de uma questão.

Complicação: uma parte do enredo que corresponde a seu desenvolvimento.

Conflito: oposição (violenta ou não) de elementos externos ou internos aos personagens de uma história.

Conseqüência: efeito ou resultado da ação ou da existência de algo.

Contexto: o conjunto, a totalidade (de um texto no caso).

Crônica: narrativa curta, leve, que se baseia no cotidiano.

Desfecho: uma das partes da narrativa, que consiste no final da história.

Discurso: no âmbito das narrativas, é a linguagem usada pelos personagens para dialogar.

Dogmas: princípios fundamentais e inquestionáveis de uma religião ou doutrina.

Elocução (verbo de): o nome que se dá aos verbos que introduzem diálogos.

Enredo: conjunto dos fatos de uma história.

Enredo linear: enredo cujos fatos ocorrem de modo natural e até previsível.

Enredo não-linear: enredo mais complexo, que não é previsível.

Enredo psicológico: enredo cujos fatos são interiores aos personagens, isto é, são fatos emocionais.

Epopéia: poema que narra as aventuras heróicas, por exemplo Os lusíadas, de Camões, que narra a aventura do herói português Vasco da Gama.

Espaço: o lugar onde se passa a história.

Estilo: modo peculiar de escrever ou produzir um texto.

Exposição: uma das partes do enredo, que consiste no início da história.

Fábula: v. Enredo

Fantástico(a): surpreendente além do real, mágico.

Flashback: nome de uma técnica  cinematográfica usada nas narrativas, e que Consiste em voltar no tempo.

Ficção: imaginação, invenção referente à narrativa.

Fictício: imaginário que pertence ao universo da ficção.

Gênero (literário): categoria de texto determinada pela estrutura, pela recepção junto ao público e pelo estilo.

Herói: protagonista com características superiores às de seu grupo.

Heroína: herói feminino

Heterônimo: é um termo que tem maior abrangência que pseudônimo (nome falso sob o qual o autor se esconde para assinar suas obras) heterônimo seria uma e de personagem que o autor cria para escrever suas obras, com estilo próprio, personalidade própria.

Híbrido:  misto, não puro.

História: v. Enredo

Ideológica(o): adjetivo referente à ideologia conjunto das idéias de uma pessoa ou grupo social.

Intriga: v. Enredo; também significa peripécia fato marcante.

Lingüístico: adjetivo referente a qualquer manifestação da língua ou da linguagem.

Literatura de ficção: produção literária narrada em prosa.

Literatura fantástica: produção literária marcada pelo enredo mágico, isto é, que apresenta fatos e personagens inexplicáveis, ilógicos.

Macabro: ligado à morte, ao horror.

Mensagem: aquilo que se pode concluir a respeito de um texto, ou aquilo que o autor nos transmite através do texto.

Mito: história de caráter sagrado, contada por povos primitivos para explicar sua origem e a de todas as coisas; o mi to é transmitido oralmente através de gerações.

Moral: adjetivo referente ao substantivo moral = código de comportamento determinado pelo grupo social a que se pertence.

Moral da história: mensagem do texto que tem preocupação em ensinar o leitor.

Narrado: o que é contado na história, portanto os fatos.

Narrativa: o mesmo que narração, texto em prosa no qual se conta uma história.

Níveis de linguagem: as várias possibilidades de se usar uma mesma língua: linguagem oral, linguagem escrita, linguagem regional etc.

Onipresença: capacidade do narrador em terceira pessoa de estar em todos os lugares.

Onisciência: capacidade que o narrador em terceira pessoa tem de saber tudo o que se passa na história.

Peripécia: fato marcante do enredo, intriga.

Prosa: a maneira mais comum de falar e escrever, que se distingue da poesia (preocupada com os efeitos sonoros da linguagem).

Protagonista: personagem principal.

Romântico(a): referente a romantismo, movimento literário e artístico do século XIX que se caracterizou principalmente pelo sentimentalismo e pelo idealismo. No sentido popular, romântico é um adjetivo referente a amor.

Tema: a idéia central de um texto.

Tempo cronológico: tempo da narrativa que segue o curso natural, é mensurável, isto é, tem começo, meio e fim.

Tempo psicológico: tempo da narrativa que segue os impulsos emocionais do narrador ou dos personagens, e que por tanto não segue a lógica do tempo cronológico.

Trama: v. Enredo.

Trágico: referente a tragédia, desgraça, ocorrência terrível, contra a qual não se pode lutar.

Verossimilhança: verdade interna ao texto narrativo, isto é, a lógica interna do enredo, provocada pela causalidade (causa e conseqüência) que estrutura os fatos da história.

Fonte:
Cândida Vilares Gancho . Como Analisar Narrativas. 7. Ed. Editora Ática. http://groups.google.com.br/group/digitalsource/

Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (Cabo Verde – 3. Drama, 4. Biunguismo Cabo-Verdiano)

3.    DRAMA

Uma das formas menos expressivas desta literatura é a área do teatro. O que não deixa de encontrar um correspondente histórico na formação da literatura portuguesa e também brasileira. Isto, de uma maneira geral, aplica-se a todas as ex-colónias portuguesas. Pode dizer-se que, em Cabo Verde, no domínio da arte teatral, há apenas «Terra de sôdade — argumento para bailado folclórico», de Jaime de Figueiredo, publicado na revista Atlântico, em 1946, [98] até hoje à espera de merecer as atenções de uma encenação.

4.    BIUNGUISMO CABO-VERDIANO

É bilingue o povo cabo-verdiano, já anteriormente o dissemos.   Além   da   língua   portuguesa   exprime-se também através do seu dialecto ou da língua crioula que, no plano das relações quotidianas, possui uma total implantação que falece à língua portuguesa.

E se foi longo o tempo necessário para o escritor cabo-verdiano alcançar uma consciência regional enquanto autor de língua portuguesa, cedo porém ele a revelou intuitivamente enquanto autor dialectal, facto que o distingue dos outros povos dos novos países africanos. Vem de tempos recuados e desenvolve-se no século XIX, paralelamente às criações em língua portuguesa, a produção popular em dialecto crioulo, sobretudo veiculada através da morna (mais de dois séculos de existência?) — a grande expressão artística do homem crioulo — das canções populares, das finançons (canções de batuque), do curcutiçans (canções de desafio — ilha do Fogo), de que se podem encontrar alguns exemplos na revista Claridade. Há, assim, um importante substracto dialectal popular que estimularia a produção literária, hoje também enriquecida com a recente exploração da coladeira.

Um dos pioneiros, o cónego António Manuel Teixeira, do Seminário-Liceu da ilha de S. Nicolau, responsável pelo Almanache Luso-Africano, (2 volumes: 1894 e 1899) neste fez publicar algumas tentativas literárias dialectais. Em 1910 José Bernardo Alfama publica Canções crioulas. Saliente-se, no entanto, um Eugênio Tavares (Momos — cantigas crioulas, 1932) [99], um Pedro Cardoso (poeta bilingue), Folcolore cabo-verdeano (1933), de facto dos primeiros a elegerem o crioulo à dignidade de língua literária. Mais perto do nosso tempo, apontam-se Sérgio Frusoni (1901-1975), um caso interessante de aculturação, já que é filho de italianos; Mário Macedo Barbosa, Jorge Pedro, Ovídio Martins (Caminhada, 1962: parte em dialecto crioulo), Luís Romano (Ljçimparim-Negrume, 1973), Gabriel Mariano, Kaoberdiano Dambará (Notí, s/d, [1968?]), Artur Vieira, Sukre D'sal, Tacalhe, Oswaldo Osório, Corsino Fortes, Arménio Vieira, etc.

Instrumento essencialmente afeiçoado à recriação de manifestações de índole lírica, o caso de Beleza, um dos mais populares troveiros do Arquipélago, nestes últimos anos é notório o esforço para a sua utilização cada vez mais ampla. No fundo, a produção literária em crioulo, do ponto de vista ideológico, descreve sensivelmente uma curva evolutiva próxima da língua portuguesa; a uma fase lírica e, por vezes, de conotação social sucede uma fase marcadamente ideológica: protesto e intervenção política. «Ca tem nada na es bida/Más grande que amor» " diz Eugênio Tavares. Ou Pedro Cardoso na apropriação de raiz popular, com intencionalidade social: «Coitado quem dixâ sê terra,/Sêl dixâ nél sê coraçam» 10°. Sérgio Frusoni, uma voz apaixonada do quotidiano ínfimo, adensado por recursos de subtil ironia: «Exe spancadura que bo titã uvi,/ca ê roncadura de pomba, nem vôo de pardal.» (in Claridade, n.° 9, 1960, p. 77).

Com Ovídio Martins o corte ideológico é de vez: «Hora titã tchgá/nhas gente», que Kaoberdiano Dambará persegue em Noii, num deliberado apelo à revolução, e vamos encontrar ainda em Kwame Kondá (Kordá Kaobardi, 1974). Veiculando quase exclusivamente a poesia, cabe a Luís Romano, um dos que de modo apaixonado reclamam a integral cidadania do dialecto, ensaiar com pertinácia a primeira experiência de tomo: L^mparim-Negrume (1973), já citado, que reúne não só poesias como vários contos em crioulo de Santo Antão, acompanhados da tradução livre em português.

Acrescentaríamos ainda que, apesar de tudo quanto dissemos sobre o que aproxima ou afasta Claridade e Certeza, enquanto a primeira logo no seu primeiro número abre a primeira página com uma canção de Beleza, numa evidente preocupação de consagrar o dialecto crioulo, e em números posteriores essa preocupação ganha volume, Certeza desconhece o dialecto crioulo. Travado e combatido pelas entidades coloniais, nem por isso esta raiz vivaz feneceu. Acreditamos estar-lhe reservado, no futuro, papel de relevo na representação de muitos aspectos do homem cabo-verdiano. E mais: estamos, de consciência, convictos de que a longa e radiosa caminhada do dialecto crioulo, com ou sem escolaridade, irá provocar uma correcção, nos domínios da sociolinguística e da psicolinguística que parecem admitir ou predizer o desaparecimento de uma língua quando ela, não sendo ensinada, tem de suportar a concorrência falada de outra ou outras que o são [101].

Se o dialecto crioulo é, como se sabe, a língua-mãe do cabo-verdiano e a língua portuguesa, em muitos casos, a língua aprendida supletivamente, seria de admitir que, ao nível da competência, o escritor cabo-verdiano se sentisse mais seguro na expressão literária dialectal. Porém, isso só acontece, em termos gerais, e com algumas excepções (Eugênio Tavares e Sérgio Frusoni podem ser dois exemplos), no plano da poesia popular. Tal paradoxo (aparente? ou provisório?) provém não só da carência de organização estrutural teórica da língua cabo-verdiana, como também de uma prolongada e fecunda tradição literária escrita sem a qual uma língua não alcança a maleabilidade e a ductilidade que a autêntica criação literária exige [102].

RAÍZES (nota final)

Por fim, uma palavra para a revista Raízes, 1977 *. E porque se trata de um acontecimento na vida cultural do Cabo Verde libertado se transcreve a nota de abertura: «De um encontro de intelectuais cabo-verdianos, irmanados pelo ideal da libertação, da independência e do progresso da sua Pátria, e vivificados pela seiva haurida de raízes comuns aprofundadas no seu chão, nasceu a ideia da publicação que hoje se apresenta, limitada pelo condicionalismo do meio mas aberta pelo espírito generoso dos seus colaboradores, vindos das tendências mais díspares mas unidos pelo ideal comum que da revista é signo: — uma condição cabo-verdiana, africana e de cidadania do Mundo; uma autenticidade nascida da liberdade dessa condição; uma independência assente nas comuns RAÍZES».

A novidade está em que o ideário de Raízes se cumpre na isotopia de uma longa jornada já nossa conhecida: Claridade, Certeza, Suplemento Cultural, «Sèló». Os cabo-verdianos que neste número se inscrevem, com excepção para Tacalhe e Jorge Carlos da Fonseca, foram colaboradores de uma ou de outra daquelas publicações. Neste espaço breve diremos, em jeito de síntese que, tudo quanto enunciámos, de um modo geral se confirma em relação aos autores agora presentes em Raízes (e de novo chamamos a atenção para Arménio Vieira e Mário Fonseca).

Que a Revolução, obviamente, é enunciado de muitos textos. Que Ovídio Martins, atento à mudança da «situação de discurso», transfere a prática poética, que se centrava no contexto violentado e repressivo, para a reconstrução nacional («Devagar a reconstrução nacional avança. Ilha a ilha. Dor a dor. Amor a amor») na opção de uma prática pedagógica (Guillén do após a revolução cubana é o nome que nos ocorre). Que Osvaldo Alcântara nos parece ter agora a seu lado um companheiro de jornada (estética): Jorge Carlos da Fonseca, pelo menos um certo Osvaldo Alcântara e um certo J. Carlos da Fonseca. Que um novo poeta se anuncia: Pedro Duarte, e um novo narrador se vai confirmando: Osvaldo Osório. Que o drama continua à espera de dramaturgos. Que dos vinte e três poemas publicados, apenas um é em crioulo. Que Raízes, sendo um acto de qualidade e inteligência é, também, uma decisão revolucionária.

* Chega-nos às mãos em cima da revisão das provas deste trabalho. Editada na cidade da Praia, ilha de Santiago, dirigida por Arnaldo França, tem como colaboradores: ensaio — Mário de Andrade e Arnaldo França, Jaime de Figueiredo; ficção — António Aurélio Gonçalves, Baltasar Lopes, Oswaldo Alcântara, Ovídio Martins, Corsino Fortes, Mário Fonseca, Tacalhe, Arménio Vieira, Jorge Carlos da Fonseca, Pedro Duarte e Jorge Miranda Alfama. Ilustração de Manuel Figueira e Osvaldo Azevedo. Capa de Pedro Gregório.
––––––––––-
Notas:
98 Jaime de Figueiredo, Terra de sôdade — argumento para bailado folclórico em quatro quadros, in Atlântico, nova série, n.° 3. Lisboa, 1946, pp. 24-42.

99    Eugênio Tavares, Mornas — cantigas crioulas, 1932, p. 27.

100    Pedro Cardoso, Folclore caboverdiano, 1933, p. 71.

101    Os principais trabalhos de autores cabo-verdianos sobre o dialecto  crioulo  são:  Baltasar Lopes:  «Uma experiência românica nos trópicos», I e II in Claridade, n.° 4, 1947, pp. 15-22, e n.° 5, 1947, pp. 1-10; O dialecto crioulo de Cabo Verde, 1957; Maria Dulce de Oliveira Almada; Cabo Verde — Contribuição
para o estudo do dialecto falado no seu Arquipélago, 1961.

102    Após a independência, nos dois actuais jornais cabo-verdianos: Voz di Vovô (Santiago) e Nossa Terra (Fogo), para além de inúmeros versos em dialecto, vêm sendo publicados vários   textos   em   prosa,   deixando-nos   a   impressão   de subscritos, uns e outros, na generalidade, por quem pela primeira vez experimenta a mão. De qualquer modo, o facto surpreende    e    exige    ser    acompanhado    com    atenção. Surpreende, mas relativamente, claro. Deverá ter-se em conta a circunstância de anteriormente à independência, o mensário Repique do Sino (ilha da Brava) ter sido durante muito tempo repositório de textos dialectais, sobretudo em verso.


Continua…

Fonte:
Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa I Biblioteca Breve / Volume 6 – Instituto de Cultura Portuguesa – Secretaria de Estado da Investigação Científica Ministério da Educação e Investigação Científica – 1. edição — Portugal: Livraria Bertrand, Maio de 1977

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Ademar Macedo/RN (Hermoclydes S. Franco - In Memoriam)


Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 633)

Uma Trova de Ademar 

Hermoclydes disse Adeus
e, envolto num lindo véu,
foi conduzido por Deus
pra fazer Trovas no Céu!
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


Quando um amor nos inflama
a razão pede – cautela !
o vento que atiça a chama
é o mesmo que apaga a vela.
–Rita Mourão/SP–

Uma Trova Potiguar 


Lembranças são velhas garças,
vindas da luta henrida,
tais como velhas barcaças,
singrando os rios da vida.
–Rodrigues Neto/RN–

Uma Trova Premiada 


2010  -  Curitiba/PR
Tema  -  MADRUGADA  -  M/E

Eu me lembro com saudade
das madrugadas de outrora...
Mamãe, na extrema bondade:
- “Filha, acorda, está na hora”.
–Dáguima Verônica/MG–

...E Suas Trovas Ficaram 


Quando o tempo em seu abraço
quebra meu corpo e tem pena,
quanto mais me despedaço
mais fico inteira e serena.
–Cecília Meirelles/RJ–

Uma  Poesia 


Tirando a minha poesia,
tiram de mim um pedaço;
ela é a dona de tudo,
do meu corpo, meu espaço;
e a poesia me conduz
a um encontro com Jesus
em cada verso que faço!
–Ademar Macedo/RN–

Soneto do Dia 

HINO DE DOR.
–Martinho Ferreira de Lima/PB–


Há uma sombra em meu olhar impuro,
onde minh'alma exangue é consumida;
já nem consigo me achar, não me procuro,
nem há resquício de paz em minha vida.

Ante meus olhos, há um imenso muro,
como cortina no céu, pra mim erguida,
negando a réstia de luz, ficando escuro,
pois só mágoa a meu ser é permitida.

Estou no mundo talvez, por mero acaso.
Deus é profundo, eu sei, mas eu sou raso,
e só as trevas pra mim são abissais.

Num cântico triste dor, que é meu hino;
bebendo a taça de fel do meu destino,
eu vou caindo, e caindo... E nada mais.

Vássia Silveira (Pássaros Nasceram para Voar)

O mundo sempre me pareceu um grande mistério. Lembro que ainda pequena, eu devia ter uns seis ou sete anos, vi minha irmã mais velha abater um passarinho para depois, com a ajuda de alguns amigos, dissecá-lo como a um sapo de laboratório familiar. Não arrisco explicar, aos olhos daquela menina, todo o sentimento que a cena lhe trouxe. Mas desconfio que deva ter sido algo aterrador, pois desde então, e observe que já se passaram muitos anos, passei a sentir a vida como uma eterna sucessão de enganos. Eu não cabia na família, na escola, no trabalho e, de resto, nem em mim mesma.

De início, achavam que se tratava apenas de timidez. Depois, os suores nas mãos e o silêncio que podia durar uma festa inteira, passou a ser visto pelos outros como arrogância. ‘Sofia, você precisa aprender a controlar suas emoções’, diziam-me os amigos mais próximos. No meio em que convivia, tornei-me o laboratório ideal para as frustrações alheias. E de tanto ouvir conselhos e repreendas, acabei por ter a sensação de que me dissecavam como àquele passarinho morto por minha irmã.

Primeiro arrancaram-me as pernas. Disseram-me que elas não me levavam na direção correta e que, portanto, não me eram úteis. Em seguida, analisaram e descartaram, um a um, os componentes desse pobre corpo. Foi quando descobri que ao invés de músculos, eu possuía raízes que se entrelaçavam e que pareciam expressar as mais longínquas memórias. E que no lugar de sangue, meus corredores vertiam um líquido gelatinoso e branco, uma seiva de vida que encerra um susto qualquer.

A simples idéia de que tal segredo pudesse vir a ser desvendado por algum de meus perscrutadores, congelava-me a alma. Pobre de mim. Como se não bastasse ter emprestado a esse mundo pernas, bocas e gestos aceitáveis, tinha ainda que esforçar-me para trocar com o ambiente externo, sentimentos corriqueiros, enxaquecas plausíveis, preocupações banais e um choro compreensível aqui e acolá.

Foi agarrada a essa indiscutível certeza que procurei encenar, neste grande palco, um medíocre, porém razoável, papel. Fiz-me mulher e deixei que rasgassem, dentro de mim, as mais finas veias. Como um acrobata, lancei-me em mãos e teias de palavras vilipendiosas. Deixei-me sugar até a última gota e derramei intranqüilas lágrimas em lençóis que nunca envelheciam. Ao final de cada espetáculo, retornava sozinha para o camarim. E ali ficava, ora imóvel — perturbada pelas ondas que me engoliam na mansidão do nada —, ora debatendo-me nas paredes invisíveis que me serviam de prisão.


Com o tempo, desisti de procurar aceitação. Percebi que de alguma forma não merecia ser amada, nem tampouco compreendida. Agarrei-me aos galhos que cresciam silenciosamente em meu mundo, adubando, no frescor das noites insones, algumas poucas lembranças que me pudessem ser úteis. Deixei que transbordasse nas veias partidas pelos inúmeros erros que cometi, aquilo que outrora era líquido e que não sei por qual motivo específico, tornara-se uma gosma pegajosa. Na solidão e na ausência, preguei em cada parede um retrato do que poderia ter sido minha existência e lancei-me aos ventos, experimentando a liberdade do pássaro que desconhece o momento exato da morte. E é feliz por existir na inocência de que está sempre pronto para o abate.

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Vássia Silveira nasceu em Belém (PA), em 1971. É jornalista, mãe de Clara e Anaís e autora do site "Ana e suas mulheres". Foi editora da revista "outraspalavras", no Acre. Atualmente mora em Fortaleza e tem textos publicados nos sites Cronópios e Bestiário, entre outros. Assina também o blog "Gavetas e Janelas". Em julho de 2007 lançou seu primeiro livro, "Braboletas e Ciúminsetos" (literatura infantil), pela Editora Letras Brasileiras, com ilustrações de Marcelo Vaz.

Fonte:
http://www.releituras.com/ne_vassia_passaros.asp

Machado de Assis (Aquarelas: II – O Parasita)

I
Sabem de uma certa erva, que desdenha a terra para enroscar-se, identificar-se com as altas árvores? É a parasita.

Ora, a sociedade, que tem mais de uma afinidade com as florestas, não podia deixar de ter em si uma porção, ainda que pequena de parasitas. Pois tem, e tão perfeita, tão igual, que nem mesmo mudou de nome.

É uma longa e curiosa família, a dos parasitas sociais; e fora difícil assinalar na estreita esfera das aquarelas — uma relação sinótica das diferentes variedades do tipo. Antes sobre a torre, agarro apenas na passagem as mais salientes e não vou mergulhar-me no fundo e em todos os recantos do oceano social.

Há, como disse, diferentes espécies de parasitas.

O mais vulgar e o mais conhecido é o da mesa; mas há-os também em literatura, em política e na igreja. É praga antiga, e raça cuja origem se prende à noite dos tempos, como diria qualquer historiador en herbe. Da Índia, essa avó das nações, como diz um escritor moderno, são poucas as noções a respeito; e não posso marcar aqui com precisão o desenvolvimento dessa casta curiosa no velho país. Em Roma, onde lemos como num livro, já Horácio comia as
sopas de Mecenas, e banqueteava alegremente no triclinium. É verdade que lhe pagava em longa poesia; mas, nesse tempo, como ainda hoje, a poesia não era ouro em pó, e este é grande estrofe de todos os tempos.

Mas, tréguas à historia. Tenho aqui como alvo esboçar em traços ligeiros as formas mais proeminentes da individualidade; entremos pois no estudo — sem mais preâmbulo.

Devo começar pelo parasita da mesa, o mais vulgar? Há talvez pouco a dizer — mas esse pouco mesmo revela altamente os traços arrojados desta fisionomia social. Debalde se procuraria conhecer as regiões mais adaptadas à economia vital deste animal perigoso. Inútil. Ele vive por toda parte em que há ambiente de porco assado. Também é aí onde ele desenvolve melhor todas as suas faculdades; — onde se sente a son aise, como diria qualquer label encadernado em paletó de inverno.

Perfeito parasita deve ser perfeito gastrônomo; mesmo quando não goze esta faculdade por vocação do berço, é um resultado da prática, pela razão de que o uso do cachimbo faz a boca torta.

Assim, o parasita jubilado, o bom parasita, está muito acima dos outros animais. Olfato delicado, adivinha a duas léguas de distância a qualidade de um bom prato; paladar suscetível, — sabe absorver com todas as regras de arte — e não educa o seu estômago como qualquer aldeão.

E como não ser assim, se ele não tem outro cuidado nesta vida? e se os limites da mesa redonda são os horizontes das suas aspirações?

É curioso vê-lo na mesa, mas não menos curioso é vê-lo nas horas que precedem às seções gastronômicas. Entra em uma casa ou por costume ou per accidens, o que aqui quer dizer intenção formada com todas as circunstâncias agravantes da premeditação, e superioridade das armas. Mas suponhamos que vai a uma casa por costume.

Ei-lo que entra, riso nos lábios, chapéu na mão, o vácuo no estômago. O dono da casa, a quem já fatiga aquela visita diária, saúda-o constrangido e com um riso amarelo. Mas isso não é decepção; tão pouco não desarma um bravo daquela ordem. Senta-se e começa a relatar notícias do dia, entremeadas de algumas da própria lavra, e curiosas — a atrair a feição vacilante do hóspede.

Daqui um criado que vem dar o sinal de combate. É o alvo a que visava o alarme, e ei-lo que vai imediatamente pagar-se de uma tarefa de almanaque, tão custosamente exercida.

Se porém ele entra per accidens, não é menos curiosa a cena. Começa por um pretexto que deve lisonjear as pessoas da casa conforme os seus fracos. Assim, se há aí um autor dramático, o pretexto é dar um parabéns sobre a última peça representada dias antes. Sobre este molde, tudo o mais.

Se às vezes não há um pretexto sério, não trepida ainda o parasita; há sempre um de lado, como substantivo: saber da saúde do amigo. Mas, entra ele; dado o pretexto, senta-se e começa a desenrolar toda a retórica que pode inspirar um estômago vazio, um Jeremias interno. Segue-se depois, pouco mais ou menos, a mesma cena. No fim está sempre como orla de horizonte uma mesa mais ou menos apetitosa, onde a reação se opera largamente.

Há, porém, pequenas desgraças, acidentes inesperados na vida do parasita da mesa. Entra ele em uma casa onde espera almoçar folgado; — faz as primeiras saudações e vai corar a pílula ao seu caro hóspede. Um certo ranger de dentes, porém, começa a agitá-lo, um ranger particular que indica um estado mais calmo aos estômagos da casa.

— Então como vai? Sinto que chegasse agora; se mais cedo viesse, almoçava comigo.

O parasita fica de cara à banda; mas não há remédio; é necessário sair com decência e não dar a entender o fim que o levou ali.

Estas eventualidades, estas pequenas misérias, longe de serem decepções, são como o cheiro da pólvora inimiga para os soldados, um incentivo na ação. É uma índole miserável a desse corpo leviano em que só há animalidade e estômago; mas, entretanto, é necessário aceitar essas criaturas tais como são — para aceitarmos a sociedade tal como ela é. A sociedade não é um grupo de que uma parte devora a outra? Eterno antagonismo das condições humanas.

O parasita da mesa uniformiza o exterior com a importância do hóspede; um cargo elevado pede uma luva de pelica, e uma botina de polimento. À mesa não há ninguém mais atencioso; — e como um conviva alegre, aduba os guisados com punhados de sal mais ou menos saborosos. É uma retribuição razoável — dar de comer ao espírito de quem dá de comer ao corpo.

Aqui não há desaire, há uma troca recíproca que prova que o parasita tem suscetibilidades em alto grau.

Estes traços, mais ou menos exatos, mais ou menos distintos, dão aqui uma pequena idéia do parasita da mesa; mas esta variedade do tipo é absorvida por outras de uma importância mais alta. Aqui é o parasita do corpo, os outros são os do espírito e da consciência; — aqui são os epicuristas à custa alheia, os outros são as nulidades intelectuais que se agarram à primeira tela de propriedades suculentas que lhe vai ao encontro.

São imperceptíveis talvez estes lineamentos — e acusam a aceleração do pincel; passemos às outras variedades do tipo onde achamos formas mais amplas e proeminências mais distintas.

II

O parasita literário tem os mesmos traços psicológicos do outro parasita, mas não deixa de ter uma afinidade latente com o fanqueiro literário. A única diferença está nos fins, de que se afastam léguas; aquele é porventura mais casto e não tem mira no resultado pecuniário, — que, parece, inspirou o fanqueiro. Justiça seja feita.

A imprensa é a mesa do parasita literário; senta-se a ela com toda a sem-cerimônia; come e distribui pratos com o sangue frio mais alemão deste mundo — diante da paciência pública — que vacila sobre os seus eixos. Um amigo meu define perfeitamente este curioso animal; chama-o Vieirinha da literatura. Vieirinha, lembro ao leitor, é aquele personagem que todos têm visto em um drama nosso.

De feito, este parasita é um Vieirinha sem tirar nem pôr; cortesão das letras, cerca-as de cuidados, sem alcançar o menor favor das musas. Segue-as por toda a parte, mas sem poder tocá-las. Só não sobe ao monte sagrado, porque é uma excursão difícil, e só dada a pés mais de ferro, e a vontades mais sérias. Ali, ficam eles nas fraldas, soltando uma orquestra de gemidos, até que o velho cavalo os vem despedir com uma amabilidade de pata sofrivelmente acerba.

Um coice é sempre uma resposta às suas súplicas... Represália no caso. Eterna lei das compensações!

Entre nós o parasita literário é uma individualidade que se encontra a cada canto. É fácil verificá-lo. Pegais em um jornal; o que vedes de mais saliente? uma fila de parasitas que deitam sobre aquela mesa intelectual um chuveiro de prosa ou verso, sem dizer — água vai! Verificai-o!

O jornal aqui não é propriedade, nem da redação nem do público, mas do parasita. Tem também o livro, mas o jornal é mais fácil de contê-los.

Às vezes o parasita associa-se e cria um jornal próprio. Aqui é que não há de escapar-lhe.

Um jornal todo entregue ao parasita, isto é, um campo vasto todo entregue ao disparate! É o rei Sancho na sua ilha!

Ele pode parodiar o dito histórico l’état c'est moi! porque as quatro ou seis páginas, na verdade, são dele, todas dele. Ele pode gritar ali, ninguém lho impedirá, ninguém; uma vez que não ofenda a moral pública. A polícia pára onde começa o intelectual e o senso comum; não são crimes no código as ofensas a esses dois elementos da sociedade constituída.

Ora, sustentado assim pelos poderes, o parasita literário invade, como o Huno moderno, a Roma da intelectualidade, com a decência moral nos lábios, mas sem a decência intelectual. Tem pois o jornal, próprio ou não próprio, onde pode sacudir-se a gosto, garantido pelas leis. Se desdenha o jornal tem ainda o livro.

O livro!

Tem ainda o livro, sim. Meia dúzia de folhas de papel dobradas, encadernadas, e numeradas é um livro; todos têm direito a esta operação simples, e o parasita por conseguinte.

Abrir esse livro e compulsá-lo, é que é heróico e digno de pasmo. O que há por aí, santo Deus! Se é um volume de versos, temos nada menos que uma coleção de pensamentos e de notas arranhadas laboriosamente em harpas selvagens como um tamoio. Se é prosa — temos um amontoado de frases descabeladas entre si, segundo a opinião do autor. É muitas vezes um drama, um romance misterioso, de que o leitor não entende pitada. Se eu quisesse ferir individualidades, tocar em suscetibilidades, desenrolaria aqui um sudário dessas invasões na literatura; mas o meu fim é o individuo, e não um indivíduo.

O parasita literário vai ainda aos teatros. Esta invenção de recitar nos teatros, tirada da antiguidade grega, que levanta um bardo em um festim, como nos mostra a Odisséia, abriu um precedente, e deu azo ao abuso. A autoridade, que é ainda a polícia, não indaga do mérito da obra, e quer apenas saber se há alguma coisa que fira a moral. Se não, pode invadir a paciência pública.

Todos os leitores estão de posse deste traço do parasita literário. As salas dos nossos teatros têm repercutido imensas vezes com esses arranhamentos de lira. Basta bater palmas de um camarote e ter alguns exemplares para distribuição; a platéia deve receber aquele aguaceiro intelectual.

O parasita está debaixo do código.

Ora, o que admira no meio de tudo isto, é que sendo o parasita literário o vampiro da paciência humana, e o primeiro inimigo nacional, acha leitores, — que digo? adeptos, simpatias, aplausos!

Há quem lhes faça crer que alguma coisa lhes rumina na cabeça como a André Chénier; eles, a quem já não faltava vontade de crer, aceitam, como princípio evidente, essa solução do impossível, que a parvoíce lhe dá de boa vontade. Que gente!

Os traços fisiológicos do parasita são especiais e característicos. Não podendo imitar os grandes homens pelo talento, copiam na postura e nas maneiras o que acham pelas gravuras e fotografias. Assumem um certo ar pedantesco, tomam um timbre dogmático nas palavras; e, ao contrário do fanqueiro, que tem a espinha dorsal mole e flexível, — ele não se curva nem se torce; a vaidade é o seu espartilho.

Mas, por compensação, há a modéstia nas palavras ou certo abatimento, que faz lembrar esse ninguém elogiado da comedia. Mas ainda assim vem a afetação; o parasita é o primeiro que esta cônscio de que é alguma coisa, apesar da sinceridade com que procura pôr-se abaixo de zero.

Pobre gente!

Podiam ser homens de bem, fazer alguma coisa para a sociedade, honrar a musa nacional, contendo-se na sua esfera própria; mas nada, saem uma noite da sua nulidade e vão por aí matando a ferro frio...

É que têm o evangelho diante dos olhos... Bem-aventurados os pobres de espírito.

O parasita ramifica-se e enrosca-se ainda por todas as vértebras da sociedade. Entra na Igreja, na política e na diplomacia; há laivos dele por toda a parte. Na Igreja, sob o pretexto do dogma, estabelece a especulação contra a piedade dos incautos, e das turbas. Transforma o altar em balcão e a âmbula em balança. Regala-se à custa de crenças e superstições, de dogmas ou preconceitos, e lá vai passando uma vida de rosas.

A história é uma larga tela dessas torpezas cometidas à sombra do culto. O parasita da Igreja, toda a Idade Média o viu, transformado em papa vendeu as absolvições, mercadejou as concessões, lavrou as bulas. Mediante o ouro, aplanou as dificuldades do matrimônio quando existiam; depois levantou a abstinência alimentar, quando o crente lhe dava em troca uma bolsa. É um desmoronamento social. O parasita teve uma famosa idéia em embrenhar-se pela Igreja. A dignidade sacerdotal é uma capa magnífica para a estupidez, que toma o altar como um canal de absorver ouro e regalias.

Assim colocado no centro da sociedade, desmoraliza a Igreja, polui a fé, rasga as crenças do povo. Entra, todos o consentem, no centro das famílias, sem haver sacudido o pó das torpezas que lhe nodoa as sandálias. Dominou imoralmente as massas, os espíritos fracos, as consciências virgens.

Esta transformação do parasita não tende por ora a desaparecer; a fogueira de J. Huss não queimou só o grande apóstolo, devorou também o vestíbulo desse edifício de miséria levantado por uma turba de parasitas, parasita da fé, da moralidade e do futuro.

Em política, galga, não sei como, as escadas do poder, tomando uma opinião ao grado das circunstâncias, deixando-a ao paladar das situações, como uma verdadeira maromba de arlequim. Entra no parlamento com a fronte levantada, votado pela fraude, e escolhido pelo escândalo.

Exíguo de luz intelectual, — toma lá o seu assento e trata de palpar para apoiar as maiorias. Não pensa mal: quem a boa árvore se encosta...

Alguns sobem assim; e todos os povos têm sentido mais ou menos o peso do domínio desses boêmios de ontem.

Deixá-los subir às mesas supremas do festim público. Mas tenham cuidado na solidez das cadeiras em que se sentarem.

Na diplomacia, é mais fácil o ingresso ao parasita. Encarta-se aí em qualquer legação ou embaixada, e vai saltitar em Paris ou em Viena. Lá representam tristemente a pátria que os viu nascer, na massa coletiva da embaixada ou da legação. O que faz de melhor, esse parvenu sem gosto, é brilhar na arte das roupas, como corifeu da moda que é. Já é muito. Podia, se não temesse fatigar, fazer uma enumeração mais longa das famílias de parasitas que irradiam destas espécies cardeais. Seria, entretanto, uma longa história que demandaria mais largo espaço; e não caberia nestas ligeiras aquarelas.

O parasita é tão antigo, creio eu, como o mundo, ou pelo menos quase. Em economia política é um elemento para estacionar o enriquecimento social; consumidor que não produz, e que faz exatamente a mesma figura que um zangão na república das abelhas.

Extinguir o parasita não é uma operação de dias, mas um trabalho de séculos. Os meios não os darei aqui. Reproduzo, não moralizo.

III
O EMPREGADO PÚBLICO APOSENTADO


Os Egípcios inventaram a múmia para conservarem o cadáver através dos séculos. Assim a matéria não desapareceria na morte; triunfava dela, do que temos alguns exemplos ainda.

Mas não existiu só lá esse fato. O empregado público não se aniquila de todo na aposentadoria; vai além, sob uma forma curiosa, antediluviana, indefinível; o que chamamos empregado público aposentado.

Espelho à rebours, só reflete o passado, e por ele chora como uma criança. É a elegia viva do que foi, salgueiro do carrancismo, carpideira dos velhos sistemas.

Reforma, é uma palavra que não se diz diante do empregado público aposentado. Há lá nada mais revoltante do que reformar o que está feito? abolir o método! desmoronar a ordem!

Atado assim ao poste do carrancismo, eterno lábaro do que é moderno, o empregado público aposentado é um dos mais curiosos tipos da sociedade. Representa o lado cômico das forças retroativas que equilibram os avanços da civilização nos povos.

É o tipo que hoje trago à minha tela. São variáveis o caráter e a feição desta individualidade, mas eu procurarei dar-lhe os traços mais finos, os mais vivos. Conceber um aposentado sem caixa de rapé é conceber o sol sem luz, o oceano sem água. Uma pertence ao outro, como a alma pertence ao corpo; são inseparáveis. E têm razão! O que vale uma caixa de rapé, não o compreende qualquer profano. É o adubo oportuno de uma conversa árida e suada sobre qualquer reforma de governo. É o meio de conhecimento com um potentado de quem se espera alguma coisa. É a caixa de Pandora. É tudo, quase tudo.

E não parece. Aquele utensílio tão mesquinho, em um outro qualquer, está circunscrito na estreita esfera do nariz; nas mãos do aposentado, transforma-se; em vez de se transformar o depósito de um vício, torna-se o instrumento de certos fatos políticos que muitas vezes parecem nascer de causas mais altas.

Este prestígio do empregado público aposentado não pára só na caixa, estende-se por todos os acessórios daquele curioso indivíduo. Na gravata, na presilha, na bengala, há certo ar, uma nuança especial, que não está ao alcance de qualquer. Ou natureza, ou estudo, a aposentadoria traz ao empregado público esses dotes, como um presente de núpcias.

Ora, apesar deste metódico das formas, não estão limitadas aí as vistas do aposentado. Há naquele cérebro alguma finura para se não entregar exclusivamente a essas ninharias. E a política? A política lá o espera; lá o espera o governo; lá o espera o teatro, as modas, os jornais, tudo o espera.

Não é maledicente, mas gosta de cortar o seu pouco sobre as coisas do país. Não é um vício, é uma virtude cívica: o patriotismo.

O governo, não importa a sua cor política, é sempre o bode expiatório das doutrinas retrógradas do empregado público aposentado. Tudo quanto tende ao desequilíbrio das velhas usanças é um crime para esse viúvo da secretária, arqueólogo dos costumes, antiga vítima do ponto, que não compreende que haja nada além das raias de uma existência oficial.

Todos os progressos do país estão ainda debaixo da língua fulminante deste cometa social. Estradas de ferro! é uma loucura do modernismo! Pois não bastavam os meios clássicos de transporte que até aqui punham em comunicação localidades afastadas? Estradas de ferro?

Desta sorte todas as instituições que respiram revolução na ordem estabelecida das coisas — podem contar com um contra do empregado público aposentado. Este meio mesmo de retratar à pena, como faço atualmente, revoltaria o .espírito tradicional da grande múmia do passado. Uma inovação de mau gosto, dirá ele. É verdade; não representa apenas a superfície da epiderme, vai às camadas mais íntimas da matéria organizada.

O empregado público aposentado poderá deixar de comer, mas lá perder um jornal, lá perder um jubileu político ou sessão do parlamento, é tarefa que não lhe está nas forças.

O jornal é lido, analisado com toda a finura de espírito de que ele é capaz. Devora-o todo, anúncios e leilões; e se não vai ao folhetim, é porque o folhetim é frutinha do nosso tempo.

No parlamento, é um espectador sério e atencioso. Com a cabeça enterrada nas paredes mestras de uma gravata colossal ouve com toda a atenção, até os menores apartes, vê os pequenos movimentos, como profundo investigador das coisas políticas.

Ao sair dali, o primeiro amigo que encontra tem de levar um aguaceiro de palavras e invectivas contra a marcha dos negócios mais interessantes do país.

De ordinário o aposentado é compadre ou amigo dos ministros, apesar das invectivas, e então ninguém recheia as pastas de mais memoriais e pedidos. Emprega os parentes e os camaradas, quando os emprega, depois de uma longa enfiada de rogativas importunas.

É sempre assim!

No sarau o empregado público aposentado é pouco cortês com as damas; vai procurar emoções nas alternativas de um lindo baralho de cartas. Mas para não faltar ao programa, lá vi tachando de imoral aquele divertimento que tanto dinheiro absorve; fica-lhe a consciência.

Onde poderemos encontrar ainda o aposentado? Ele vai por toda a parte onde é lícito rir e discutir sem ofensa pública.

O leitor conhece decerto a individualidade de que lhe falo, é muito vulgar entre nós, e de qualidades tão especiais que a denunciam entre mil cabeças. Que lhe acha? Quanto a mim é inofensiva como um cordeiro. Deixem-no mirar-se no espelho dos velhos usos, falar em política, discutir os governos; não faz mal.

Em uma comédia do nosso teatro, há uma reprodução deste tipo, o Sr. Custódio do Verso e Reverso. Mirem-se ali, e verão que, apesar do estreito círculo em que se move, faz pálidos e mirrados estes ligeiros e mal distintos lineamentos.

IV
O FOLHETINISTA


Uma das plantas européias que dificilmente se têm aclimatado entre nós, é o folhetinista.

Se é defeito de suas propriedades orgânicas, ou da incompatibilidade do clima, não o sei eu. Enuncio apenas a verdade. Entretanto, eu disse — dificilmente — o que supõe algum caso de aclimatação séria. O que não estiver contido nesta exceção, vê já o leitor que nasceu enfezado, e mesquinho de formas.

O folhetinista é originário da França, onde nasceu, e onde vive a seu gosto, como em cama no inverno. De lá espalhou-se pelo mundo, ou pelo menos por onde maiores proporções tomava o grande veículo do espírito moderno; falo do jornal. Espalhado pelo mundo, o folhetinista tratou de acomodar a economia vital de sua organização às conveniências das atmosferas locais. Se o têm conseguido por toda a parte, não é meu fim estudá-lo; cinjo-me ao nosso círculo apenas.

Mas comecemos por definir a nova entidade literária.

O folhetim, disse eu em outra parte, e debaixo de outro pseudônimo, o folhetim nasceu do jornal, o folhetinista por conseqüência do jornalista. Esta íntima afinidade é que desenha as saliências fisionômicas na moderna criação. O folhetinista é a fusão admirável do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo. Estes dois elementos, arredados como pólos, heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do novo animal.

Efeito estranho é este, assim produzido pela afinidade assinalada entre o jornalista e o folhetinista. Daquele cai sobre este a luz séria e vigorosa, a reflexão calma, a observação profunda. Pelo que toca ao devaneio, à leviandade, está tudo encarnado no folhetinista mesmo; o capital próprio.

O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar de colibri na esfera vegetal; salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence; até mesmo a política.

Assim aquinhoado pode dizer-se que não há entidade mais feliz neste mundo, exceções feitas. Tem a sociedade diante de sua pena, o público para lê-lo, os ociosos para admirá-lo, e a bas-bleus para aplaudi-lo.

Todos o amam, todos e admiram, porque todos têm interesse de estar de bem com esse arauto amável que levanta nas lojas do jornal a sua aclamação de hebdomadário. Entretanto, apesar dessa atenção pública, apesar de todas as vantagens de sua posição, nem todos os dias são tecidos de ouro para os folhetinistas. Há-os negros, com fios de bronze; à testa deles está o dia... adivinhem? o dia de escrever!

Não parece? pois é verdade puríssima. Passam-se séculos nas horas que o folhetinista gasta à mesa a construir a sua obra.

Não é nada, é o cálculo e o dever que vêm pedir da abstração e da liberdade — um folhetim! Ora, quando há matéria e o espírito está disposto, a coisa passa-se bem. Mas quando, à falta de assunto se une aquela morbidez moral, que se pode definir por um amor ao far niente, então é um suplício... Um suplício, sim.

Os olhos negros que saboreiam essas páginas coruscantes de lirismo e de imagens, mal sabem às vezes o que custa escrevê-las. Para alguns não procede este argumento; porque para alguns há provimento de matéria, certos livros a explorar, certos colegas a empobrecer...
Esta espécie é uma aberração do verdadeiro folhetinista; exceções desmoralizadoras que nodoam as reputações legítimas. Escritas, porém, as suas tiras de convenção, a primeira hora depois é consagrada ao prazer de desforrar-se de uma maçada que passou. Naquela noite é fácil encontrá-lo no primeiro teatro ou baile aparecido.

A túnica de Néssus caiu-lhe dos ombros por sete dias.

Como quase todas as coisas deste mundo o folhetinista degenera também. Algumas das entidades que possuem essa capa, esquecem-se de que o folhetim é um confeito literário sem horizontes vastos, para fazer dele um canal de incenso às reputações firmadas, e invectivas às vocações em flor, e aspirações bem cabidas.

Constituindo assim cardeal-diabo da cúria literária, é inútil dizer que o bom senso e a razão friamente o condenam e votam ao ostracismo moral, ausência de aplausos e de apoio.

Não é este o único abuso que se dá. É costume de outros levantarem o folhetim como a chave de todos os corações, como a foice de todas as reputações indeléveis.

E conseguem...

Na apreciação do folhetinista pelo lado local temo talvez cair em desagrado negando a afirmativa. Confesso apenas exceções. Em geral o folhetinista aqui é todo parisiense; torce-se a um estilo estranho, e esquece-se, nas suas divagações sobre o boulevard e café Tortoni, de que está sobre um mac-adam lamacento e com uma grossa tenda lírica no meio de um deserto.

Alguns vão até Paris estudar a parte fisiológica dos colegas de lá; é inútil dizer que degeneraram no físico como no moral. Força é dizê-lo: a cor nacional, em raríssimas exceções, tem tomado o folhetinista entre nós. Escrever folhetim e ficar brasileiro é na verdade difícil. Entretanto, como todas as dificuldades se aplanam, ele podia bem tomar mais cor local, mais feição americana. Faria assim menos mal à independência do espírito nacional, tão preso a essas imitações, a esses arremedos, a esse suicídio de originalidade e iniciativa.

Fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.
Publicado originalmente em O Espelho, Rio de Janeiro, 11 e 18/09 e 9, 16 e 30/10/1859.