sexta-feira, 31 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 335


Stanislaw Ponte Preta (Cara ou Coroa)


Cara — Meu marido é um homem muito regrado, queridinha. Dorme sempre cedo, não fuma e não bebe uma gota.

Coroa — Pressão arterial.

Cara — O jogo foi pontilhado de incidentes, com jogadas bruscas de ambos os times, chegando os jogadores às agressões mútuas, sob o olhar complacente do árbitro.

Coroa — Jogo amistoso.

Cara — Tu é besta, seu! A moçada num fizero nada por causa de que faltou fibra, tá? Se é o meu ali eles entrava bem.

Coroa — Rubro-negro.

Cara — Você me encontra às três no café e vamos até lá bater um papo com ele. Depois, se você quiser, podemos ir a um cinema qualquer pra fazer hora.

Coroa — Funcionário público.

Cara — Que bobagem. Comemos um sanduíche e pronto, estamos almoçados. Comer em restaurante demora muito.

Coroa — Véspera de pagamento.

Cara — Essas bebidas estrangeiras são de morte. É tudo falsificado. A mim é que elas não pegam. Sempre que posso evitar de tomar uísque, gim e outras bombas, eu evito.

Coroa — Cachaceiro.

Cara — Meu bem, sou eu.. Olha, você vai jantando e não precisa se incomodar de guardar comida para mim. O chefe resolveu adiantar aqui uns processos e eu estou com cerimônia de me mandar e deixá-lo sozinho na repartição.

Coroa — Boate.

Cara — É o cúmulo a importância que os semanários dão a essas mocinhas do Arpoador. Umas sirigaitas muito sem-vergonhas, tirando retrato quase nuas, para essas reportagens
frívolas. Eu, hem?

Coroa — Feia.

Cara — O aumento do custo de vida no Brasil é uma consequência lógica do desenvolvimento do País, insuflado pelo crescimento da população e outros fenômenos dos quais só podemos nos orgulhar.

Coroa — Rico.

Cara — As crianças de hoje devem ser educadas através de métodos da moderna pedagogia, baseados em estudos da psicologia infantil. Na fase atual é um verdadeiro crime os pais gritarem ou baterem nos filhos.

Coroa — Solteira.

Cara — Trago comigo recortes com comentários sobre as minhas atuações. Gostei imensamente de lá. Eles adoram a bossa-nova e eu só não fiquei mais tempo porque senti
saudades da nossa terra.

Coroa — Cantor voltando do estrangeiro.

Cara — A beldade em questão é professora diplomada e relutou muito em aceitar o convite para se candidatar, pois adora o magistério. Lê muito e seu ator favorito é Somerset Maugham, adora poesia e gosta de praia. Não joga, não fuma e não bebe.

Coroa — Candidata a miss.

Cara — O Rio é muito mais lindo do que imaginava. Copacabana é um sonho das Mil e uma noites que se tornou realidade. O Pão de Açúcar é uma beleza e, quando voltar ao
Brasil, gostaria de ir ver Brasília.

Coroa — Visitante ilustre, no Galeão.

Cara — Um dia ainda hei de me dedicar ao lar, sem prejuízo de minha carreira.

Coroa — Atriz.

Cara — Minha peça é uma sátira aos costumes modernos, pois minha intenção era dar um cunho social à trama. A mensagem nela contida é o protesto popular contra as injustiças da sociedade.

Coroa — Autor estreante.

Cara — Os compromissos que assumimos para com o povo nos obrigam a combater as forças imperialistas, o capital colonizador, os grandes trustes, toda e qualquer opressão sobre o operariado e suas justas reivindicações.

Coroa — Deputado da esquerda.

Cara — É nosso dever combater sem tréguas as constantes tentativas de subverter as massas, as sistemáticas infiltrações no meio das classes operárias, os falsos representantes do povo, que se arvoram em seus defensores para fins inequívocos.

Coroa — Deputado da direita.

Cara — Tudo faremos pela vitória. Um abraço para os meus  familiares.

Coroa — Jogador de futebol.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Carlos Drummond de Andrade (Poesias Avulsas) IV


DESTRUIÇÃO

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se veem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.
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ELEGIA 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guardas chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas por entre os mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
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O AMOR ANTIGO


O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige, nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor
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SENTIMENTAL


Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçadas na mesa todos completam
esse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!

- Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
"Neste país é proibido sonhar.”
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VERBO SER


Que vai ser quando crescer?
Vivem perguntando em redor. Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer?
Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?
Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender.
Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser
Esquecer.

Fernando Sabino (Ao Bom Bebedor Meia Garrafa Basta)


A primeira vez que provei bebida alcoólica foi aos 11 anos. Estávamos acantonados nos galpões vazios da antiga Feira de Amostras, ali onde é hoje o Aeroporto Santos Dumont. Havia latas de doce vazias, invólucros sem conteúdo, rótulos sem produto — restos da última exposição: nada que satisfizesse a nossa gula. Em companhia de outro pivete (que acabaria regenerado tornando-se hoje um competente cirurgião), arrombei a janela de um galpão que supúnhamos cheio de comedorias, para acabarmos apanhados em pleno malfeito pelo vigia do lugar. (O que nos valeu um esculacho pouco digno da nossa condição de escoteiros.) Até que alguém mais esperto descobriu num desvão da antiga feira um depósito de garrafas cheias.

Cheias de que? Só vim a saber quando vi os mais velhos fazendo correr uma garrafa de mão em mão, e bebendo pequenos goles furtivos entre risinhos de malícia. Fui buscar meu caneco de folha e pedi que me dessem um pouco. Tanto insisti que acabaram se enchendo, e encheram o caneco para se verem livres de mim. Eu imaginava que aquilo tivesse o gosto delicioso de alguma soda limonada, groselha ou guaraná. E virei tudo de uma vez só.

Era cachaça pura.

Só não morri ali mesmo porque quis Deus me experimentar ao longo da vida, propiciando-me generosamente outras espécies de bebida. Mas passei a noite delirando, depois de haver vomitado a própria alma até o rabo. Hoje sinto náuseas ao mais leve cheiro de cachaça.

Enquanto escrevo, entre um gole e outro de uísque, penso se serei capaz de me revestir da seriedade que o assunto exige. A sabedoria, que faz de beber uma arte, talvez repouse nos mesmos princípios de proporção, equilíbrio e harmonia que regem as outras artes. E que estabelecem o primado da qualidade sobre a quantidade. Beba bem e viva melhor — seria o slogan que eu proporia a uma campanha publicitária de apologia da bebida.

A essa altura já ouço o leitor abstêmio comentar, indignado: — Apologia da bebida. Esse cretino ousa sugerir publicidade para um dos mais terríveis males que afligem a humanidade.

Ouso sugerir que a humanidade é afligida não pelo álcool, mas pelo alcoolismo. A arte de bem beber se contrapõe justamente ao vício de beber mal. O álcool em si não é bom nem mau, e existe desde que o homem é homem. Todas as civilizações conhecidas produziram alguma espécie de bebida alcoólica. O mal não está no que entra no homem, mas no que dele sai, como afirmou Cristo. Ele próprio não consagrou a água, o leite ou a Coca-Cola: consagrou o pão e o vinho, como alimentos do corpo e do espírito.

É preciso respeitar a bebida — não saber beber é que constitui um dos mais terríveis males que afligem a humanidade. Esta é uma lição que eu gostaria de saber de cor antes de beber e não na manhã seguinte, como geralmente me acontece.

Um cientista sueco, por sinal que Prêmio Nobel, descobriu recentemente uma substância capaz de neutralizar a toxidez do álcool, impedindo sua metabolização no organismo, sem impedir seus agradáveis efeitos no cérebro. Esta descoberta terá, em relação à bebida, o mesmo impacto que a pílula teve em relação ao sexo: agora é que eu quero ver o que será da humanidade, bebendo sem parar, e se sentindo fisicamente cada vez melhor.

Aos 15 anos tomei o primeiro grande pileque de minha vida. De gim, que até hoje me sabe a loucura e tem o gosto de consequências fatais. Na manhã seguinte fui curar minha ressaca enfrentando a ressaca ainda mais poderosa do mar no Posto Dois. Se não morri de beber na véspera, poderia ter morrido afogado. Mas eu era jovem, e como todo jovem, imortal.

Até que chegou o momento, com alguns chopes de permeio, de finalmente me iniciar no uísque, a que permaneci fiel. Era um baile no Automóvel Clube, em Belo Horizonte, e o uísque da moda era Old Parr. Tomado com guaraná! Entrei no uísque como se fosse refrigerante, e entrei bem. Meu irmão me encontrou em coma alcoólica debaixo do chuveiro aberto, ainda vestido no elegante dinner-jacket da minha primeira festa a rigor — rigorosamente ensopado e vomitado.

Com tantos fracassos sucessivos, não sei como não caí na mais intransigente das abstinências. É que em pouco surgia a hora da verdade, no grupo de quatro amigos já composto para a vida inteira. Encharcados de chope e literatura, enchíamos de desvario a silenciosa noite de Minas, convertendo a bebida em indispensável combustível de nossa rebeldia. Rebeldia contra que? Contra tudo. Tínhamos de beber para justificar a embriaguez da mocidade em que vivíamos.

Deixemos que falem os entendidos — no caso, os mestres Luís Lobo e Leopoldo Adour da Câmara. Assim se expressam eles no seu admirável receituário “A Arte do Rabo de Galo”, um “breve discurso em torno de copos e garrafas”: “Não há motivo para criticar a bebida em razão dos que se embriagam. Como ninguém critica a comida simplesmente porque há gente capaz de comer até morrer de indigestão.”

Falou. Ou melhor, falaram — e está falado: como a comida, assim a bebida, em quantidade razoável, é perfeitamente inofensiva, tendo o efeito de estimular o apetite, ajudar a digestão, relaxar os nervos e tornar a vida mais agradável.

Mas, aqui entre nós, onde ficam os limites do razoável?

Não será, certamente, na primeira dose. Esta apenas prepara o caminho para a segunda. E a segunda dose... Já dizia o prefeito de Rochester a Henrique Savile (dois indivíduos de quem eu nunca ouvira falar, mas competentes, desde que citados pelos autores acima mencionados): “Oh, aquela segunda dose; é o mais sincero, o mais sábio, o mais imparcial amigo nosso; diz a verdade sobre nós mesmos e força-nos a dizer a verdade sobre os outros. Barra a lisonja das nossas bocas e a desconfiança dos nossos corações; coloca-nos acima da política dos preconceitos de cortesia, os quais nos fazem mentir de dia com receio de sermos traídos à noite.”

E a terceira dose?

A partir da terceira dose, reconheço, as coisas se complicam um pouco. Se a humanidade está atrasada de três uísques, como dizia Humphrey Bogart, ao recuperar o atraso a gente se vê de súbito, copo vazio na mão, ante o dilema de tomar mais um ou se dar por satisfeito com a recuperação. E é aí que intervém a já referida sabedoria da dupla Lobo e da Câmara, afirmando: “Um bom conselho em relação à quantidade é parar de beber quando sentir que dá para beber mais um, porque dois será demais. Este um provavelmente também o será.”

Por isso é que um velho amigo meu, conhecido pelo hábito de sempre tomar mais um, afirmava outro dia num bar que, de sua parte, jamais passava de três uísques. Ante o protesto geral, insistiu, com a mais cínica das convicções: “Eu só tomo três; depois do terceiro me transformo noutro sujeito, e este sim, bebe como gente grande.”

Fiquemos, pois, no terceiro. Ainda que a contagem varie de bebedor para bebedor, podendo começar a partir do terceiro, ou mesmo ser regressiva, como no lançamento de foguetes.

Por falar em foguetes: e a ressaca? Entendidos de lado, falo de experiência própria: não há cura mais eficiente do que evitá-la. Como se sabe, (ou não se sabe?) — a ressaca começa pelo cigarro fumado. Mesmo pelos que não fumam: quatro horas de permanência num ambiente fechado e cheio de fumaça pode corresponder até a vinte cigarros fumados. Há outras causas, é óbvio — a partir da bebida de má qualidade. É incrível como tantos que se dizem bons bebedores são capazes de aceitar como bebida legítima as mais grosseiras falsificações. No entanto, um mínimo de atenção e cuidado ao beber seria o suficiente para denunciá-las. O bom uísque, por exemplo, não morde a gente: cai bem, sem causar estranheza, sem chamar atenção sobre a língua, redondo dentro da boca, sem arestas, sem azinhavre nas bordas, sem largar ferrugem ao longo da garganta, sem deixar gosto de lápis no esôfago, sem levantar poeira no estômago. O bom uísque, enfim, é aquele sobre o qual não resta a menor dúvida.

Falou.

Falei — e não disse. Ao fim de minhas digressões, vejo que não cheguei a sair do princípio, ou seja, sinto que mal cheguei a entrar no assunto. Agora é tarde: só me resta tomar mais um e dar por atingido o meu propósito (ou despropósito, se preferirem) de enaltecer a bebida como fator de bom entendimento entre os homens. Ou, pelo menos, do homem consigo mesmo.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 334


José J. Veiga (A Máquina Extraviada)


Você sempre pergunta pelas novidades daqui deste sertão, e finalmente posso lhe contar uma importante. Fique o compadre sabendo que agora temos aqui uma máquina imponente, que está entusiasmando todo o mundo. Desde que ela chegou - não me lembro quando, não sou muito bom em lembrar datas - quase não temos falado em outra coisa; e da maneira que o povo aqui se apaixona até pelos assuntos mais infantis, é de admirar que ninguém tenha brigado ainda por causa dela, a não ser os políticos.

A máquina chegou uma tarde, quando as famílias estavam jantando ou acabando de jantar, e foi descarregada na frente da Prefeitura. Com os gritos dos choferes e seus ajudantes (a máquina veio em dois ou três caminhões) muita gente cancelou a sobremesa ou o café e foi ver que algazarra era aquela.

Como geralmente acontece nessas ocasiões, os homens estavam mal-humorados e não quiseram dar explicações, esbarravam propositalmente nos curiosos, pisavam-lhes os pés e não pediam desculpa, jogavam pontas de cordas sujas de graxa por cima deles, quem não quisesse se sujar ou se machucar que saísse do caminho.

Descarregadas as várias partes da máquina, foram elas cobertas com encerados e os homens entraram num botequim do largo para comer e beber. Muita gente se amontoou na porta mas ninguém teve coragem de se aproximar dos estranhos porque um deles, percebendo essa intenção nos curiosos, de vez em quando enchia a boca de cerveja e esguichava na direção da porta. Atribuímos essa esquiva ao cansaço e à fome deles e deixamos as tentativas de aproximação para o dia seguinte; mas quando os procuramos de manhã cedo na pensão, soubemos que eles tinham montado mais ou menos a máquina durante a noite e viajado de madrugada.

A máquina ficou ao relento, sem que ninguém soubesse quem a encomendou nem para que servia. Ë claro que cada qual dava o seu palpite, e cada palpite era tão bom quanto outro.

As crianças, que não são de respeitar mistério, como você sabe, trataram de aproveitar a novidade. Sem pedir licença a ninguém (e a quem iam pedir?), retiraram a lona e foram subindo em bando pela máquina acima - até hoje ainda sobem, brincam de esconder entre os cilindros e colunas, embaraçam-se nos dentes das engrenagens e fazem um berreiro dos diabos até que apareça alguém para soltá-las; não adiantam ralhos, castigos, pancadas; as crianças simplesmente se apaixonaram pela tal máquina.

Contrariando a opinião de certas pessoas que não quiseram se entusiasmar, e garantiram que em poucos dias a novidade passaria e a ferrugem tomaria conta do metal, o interesse do povo ainda não diminuiu. Ninguém passa pelo largo sem ainda parar diante da máquina, e de cada vez há um detalhe novo a notar. Até as velhinhas de igreja, que passam de madrugada e de noitinha, tossindo e rezando, viram o rosto para o lado da máquina e fazem uma curvatura discreta, só faltam se benzer. Homens abrutalhados, como aquele Clodoaldo seu conhecido, que se exibe derrubando boi pelos chifres no pátio do mercado, tratam a máquina com respeito; se um ou outro agarra uma alavanca e sacode com força, ou larga um pontapé numa das colunas, vê-se logo que são bravatas feitas por honra da firma, para manter fama de corajoso.

Ninguém sabe mesmo quem encomendou a máquina. O prefeito jura que não foi ele, e diz que consultou o arquivo e nele não encontrou nenhum documento autorizando a transação. Mesmo assim não quis lavar as mãos, e de certa forma encampou a compra quando designou um funcionário para zelar pela máquina.

Devemos reconhecer - aliás todos reconhecem - que esse funcionário tem dado boa conta do recado. A qualquer hora do dia, e às vezes também de noite, podemos vê-lo trepado lá por cima espanando cada vão, cada engrenagem, desaparecendo aqui para reaparecer ali, assoviando ou cantando, ativo e incansável. Duas vezes por semana ele aplica caol nas partes de metal dourado, esfrega, sua, descansa, esfrega de novo - e a máquina fica faiscando como joia.

Estamos tão habituados com a presença da máquina ali no largo, que se um dia ela desabasse, ou se alguém de outra cidade viesse buscá-la, provando com documentos que tinha direito, eu nem sei o que aconteceria, nem quero pensar. Ela é o nosso orgulho, e não pense que exagero. Ainda não sabemos para que ela serve, mas isso já não tem maior importância. Fique sabendo que temos recebido delegações de outras cidades, do estado e de fora, que vêm aqui para ver se conseguem comprá-la. Chegam como quem não quer nada, visitam o prefeito, elogiam a cidade, rodeiam, negaceiam, abrem o jogo: por quanto cederíamos a máquina. Felizmente o prefeito é de confiança e é esperto, não cai na conversa macia.

Em todas as datas cívicas a máquina é agora uma parte importante das festividades. Você se lembra que antigamente os feriados eram comemorados no coreto ou no campo de futebol, mas hoje tudo se passa ao pé da máquina.

Em tempo de eleição todos os candidatos querem fazer seus comícios à sombra dela, e como isso não é possível, alguém tem de sobrar, nem todos se conformam e sempre surgem conflitos. Felizmente a máquina ainda não foi danificada nesses esparramos, e espero que não seja. A única pessoa que ainda não rendeu homenagem à máquina é o vigário, mas você sabe como ele é ranzinza, e hoje mais ainda, com a idade. Em todo caso, ainda não tentou nada contra ela, e ai dele. Enquanto ficar nas censuras veladas, vamos tolerando; é um direito que ele tem. Sei que ele andou falando em castigo, mas ninguém se impressionou.

Até agora o único acidente de certa gravidade que tivemos foi quando um caixeiro da loja do velho Adudes (aquele velhinho espigado que passa brilhantina no bigode, se lembra?) prendeu a perna numa engrenagem da máquina, isso por culpa dele mesmo. O rapaz andou bebendo em uma serenata, e em vez de ir para casa achou de dormir em cima da máquina. Não se sabe como, ele subiu à plataforma mais alta, de madrugada rolou de lá, caiu em cima de uma engrenagem e com o peso acionou as rodas. Os gritos acordaram a cidade, correu gente para verificar a causa, foi preciso arranjar uns barrotes e labancas para desandar as rodas que estavam mordendo a perna do rapaz. Também dessa vez a máquina nada sofreu, felizmente. Sem a perna e sem o emprego, o imprudente rapaz ajuda na conservação da máquina, cuidando das partes mais baixas.

Já existe aqui um movimento para declarar a máquina monumento municipal - por enquanto. O vigário, como sempre, está contra; quer saber a que seria dedicado o monumento. Você já viu que homem mais azedo?

Dizem que a máquina já tem feito até milagre, mas isso - aqui para nós - eu acho que é exagero de gente supersticiosa, e prefiro não ficar falando no assunto. Eu - e creio que também a grande maioria dos munícipes - não espero dela nada em particular; para mim basta que ela fique onde está, nos alegrando, nos inspirando, nos consolando. O meu receio é que, quando menos esperarmos, desembarque aqui um moço de fora, desses despachados, que entendem de tudo, olhe a máquina por fora, por dentro, pense um pouco e comece a explicar a finalidade dela, e para mostrar que é habilidoso (eles são sempre muito habilidosos) peça na garagem um jogo de ferramentas, e sem ligar a nossos protestos se meta por baixo da máquina e desande a apertar, martelar, engatar, e a máquina comece a trabalhar.

Se isso acontecer, estará quebrado o encanto e não existirá mais máquina.

Fonte:
Conto publicado em 1968, em José J. Veiga. A Máquina Extraviada.

Teresinka Pereira (Poemas Recolhidos) VI


ABSURDO

Os maiores pecados
sob o poder da igualdade.
A natureza mutilando
as criaturas
e exigindo seu amor!

Na água, no céu,
no meio da rua
um incêndio de dores:
mas a alma bendiz
a noite, os lábios incontidos
selando a ignorância poderosa.

Coragem!
Atacar o absurdo deserto
seria evidência
de frustração.
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AGORA É PRECISO RECONHECER


O mundo
é uma cabeça em chamas
embora poucos queiram
acreditar.

A verde espessura
das florestas
e o azul do mar
se acabaram
esperando a consciência
humana
liberar-se da ambição,
do abuso
e da demanda
de comodidades.

Agora é preciso
reconhecer
que o ar, a água e a terra
valem mais que o dinheiro.
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FOME DE AMOR


Se estivesses aqui
eu iria te olhar amando
e dar-te-ia a minha mão
deixando que o silêncio
nos dissesse que a felicidade
é fácil a qualquer hora.

A fome de amor
geme na madrugada
e como Narciso insatisfeito
olho-me só e devoro-me
nos próprios sonhos
para não morrer de tédio.

Um estranho cansaço
me invade o pensamento
e me obriga a desfazer o passado
esperando outra vez a ilusão...

Quanto eu gostaria de ter forças
para olhar-te os olhos na distância!
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MUNDO DE PAPEL

Não há ainda um bom
tratado de ecologia
porque o filósofo
verde
é tão invisível para nós
como as luzes de Saturno...
Haverá um dia
em que o papel
será uma velha lembrança
como a areia do deserto
será o ouro da utopia.
Mas agora, enquanto nós,
os escritores, ainda somos
de carne e osso,
vivemos em uma
montanha de papel.
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NÃO VIVEMOS

Não vivemos, só morremos.
Isso nos dizem na escola,
na igreja e na família.
Dizem que a morte é bela,
mas a mim me parece sórdido
que os vivos dependam
das mortes dos heróis
para seguir vivendo
sua própria morte.

A primavera vem a meio passo
e morre antes da última flor.
A luz do dia é linda,
mas é durante a noite
que nos aliviamos
de nossa tristeza de viver.

O sol é mais humilde que a flor
e os sonhos são
muito mais eloquentes
que as vitórias do amor.

É uma total alucinação viver
sem um sonho puro porque
cada manhã a luz aberta
nos rouba do tempo
e do ébrio segredo da vida.
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PAIXÃO


Nem mesmo o tempo
pode impedir-me!
Tenho uma língua panorâmica,
olhos famintos
e pés invisíveis:
estou apaixonada!
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PREPARAÇÃO


Onde está o amor,
se há tanta solidão
no caminho da vida?

Onde está o sol
se a noite chegou tão cedo
à manhã de semear?

Onde está o sorriso,
se a poesia se endureceu
ouvindo o ódio na véspera
desta não merecida guerra pessoal?

Fonte:
Poemas enviados pela poetisa.

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Cinco


DE QUANDO O TIRO SAI PELA CULATRA

“Minha casa era modesta, mas eu estava seguro, não tinha medo de nada“.
De “O Divã” de Roberto Carlos e Erasmo Carlos.


NO LUGAR ONDE EU MORO, ou seja, na casa de meus pais, a coisa anda pra lá de feia. Além do pai e da mãe, doze outras bocas famintas ajudam a aumentar as despesas, contando, é claro, as quatro do fogão. Embora essas não sejam humanas, consomem o gás da botija para manter as panelas com os fundos de suas bundas quentinhas. Ao todo, somos seis homens e quatro mulheres de tirar o sossego do Papa, computadas, igualmente, sem as do vídeo que não funciona. Os números de pés chegam a vinte e sete, incluindo os três da geladeira e quatro do fogão. Felizmente esses não utilizam sapatos.

Cabe aqui uma explicação. O refrigerador ficou capenga em decorrência da mudança. Os carregadores (mais desastrados que apressados, ou as duas coisas juntas) fizeram a gentileza de quebrar um deles, na descida do caminhão. Para que as pessoas se situem, nos escondemos do tempo numa chácara de cinco mil metros quadrados, ao redor da cidade. A construção é bastante antiga e espaçosa, além de engraçada, extremamente engraçada. Existe, nela, uma escada interna em formato de caracol ligando o andar térreo ao superior. Nesse piso, vários quartos se alinham juntamente com dois banheiros extras. De manhã, mesmo com esses dois banheiros extras, é um verdadeiro inferno, com toda a galera querendo, ao mesmo tempo, fazer uso das privadas.

Se alguém não consegue segurar as necessidades mais prementes urge correr nos fundos do quintal (tem uma parte que é só mato), para não sujar as calças com os excrementos. É uma opção não muito acertada, todavia, melhor que ruminar um bolo malcheiroso querendo explodir para fora de qualquer forma. Não dormimos em beliches, mas em colchonetes espalhados pelo assoalho. Meus velhos são os únicos que utilizam uma cama de ferro acomodada em lajotas, presente do Tio Firmino, que morreu ano passado, do coração. Na entrada dos lavabos, meu irmão Luiz afixou uma espécie de prateleira presa a braçadeiras de ferro, onde são guardadas as escovas de dente, da dentadura de vovô e de cabelos, somadas aos tubos de pastas e outras quinquilharias de uso estritamente indispensável ao embelezamento matinal.

Temos o Pavio, sujeito bom que ajuda meus pais nos afazeres diários. Não me recordo, se o incluí na contagem das cabeças, bocas e pés, mas que diferença isso faz agora?  Pavio é considerado membro da família. Uma espécie de criado, na realidade. O coitado só não fala.  Ficou mudo depois que perdeu a língua num assalto. Os bandidos que o renderam, além de levarem todos os pertences, um fusquinha 68, alguns trocadinhos e os tênis, acharam por bem lhe faturar também o órgão da fofoca, perdão, do paladar. Quem botou esse apelido de Pavio, no Pavio, foi á mamãe, que o tirou de Pinóquio, de Collodi, seu livro de cabeceira. 

Meu irmão mais novo, o Zazinho, engajou no exército. É quase tenente. Quando está de folga (permanece muito tempo no quartel), a gente costuma lhe apresentar a vassoura de piaçava para varrer o quintal. O cara fica muito irado, porque a vassoura não tem cabo e ele, para dar conta do recado, precisa se curvar sobre a própria barriga. Papai colocou na sala um sofazinho sem braços. À noite, para assistirmos a televisão de onze polegadas, desligamos o lampião de gás sobre a estante. Temos luz elétrica lá para dentro, quero dizer, lá para cima, porém, o Beto – meu outro irmão (que estudou eletricidade), ainda não achou tempo de puxar a fiação e botar os bicos de luz nos cômodos faltosos.

No imenso quintal, plantamos de tudo. Da alface, para a salada, ao arroz com feijão. Mamãe ganhou um louro que detesta dar o pé. E o mais engraçado. Não gosta que lhe catem os piolhos. Não repete nada do que falamos, vive de olho num gato sem rabo que a Mariana, a consanguínea do meio faturou quando completou quinze anos. Aliás, essa aí é a menina dos olhos de papai. Ele ficou cego de uma vista, por causa da diabete e Mariana é quem o leva todo mês, a tira colo, na caixa para receber a aposentadoria e sair pagando depois, as contas. A nossa rua não é propriamente o que poderíamos chamar de avenida. Está mais para um beco apertado. Não tem saída. Ela termina num encosto de morro que não leva a lugar nenhum. Tio Chico (irmão de papai), a apelidou de ‘via curta’. Não dá mão. Nem pé. Quando o bauzão do mercado entra para vir fazer a entrega das compras, ou um carro de passeio estaciona em outros portões, os motoristas se vêm com os nervos em frangalhos. Chegam a arrancar os cabelos, mesmo aqueles que foram benfazejados pela calvície prematura. Os que não são carecas, falam mal, esbravejam e xingam o prefeito.

O melhor dia, aqui em casa é realmente o domingo. A família, em peso, se reúne em derredor da velha mesa de cozinha para o almoço. Alguém põe sempre para assar uma carne de traseiro. Arrastamos o móvel da vitrola até a varanda e a coisa só não fica cem por cento animada quando o braço do toca-disco resolve não pousar a agulha de cristal nos velhos setenta e oito rotações. Temos consciência que papai está no fundo do poço (a doença que o definha, aos poucos, lembrando, a cegueira, o deixa desanimado, na maioria das vezes), contudo, o mais importante, está direto ao nosso lado, dando o devido apoio e procurando manter a moral erguida e a família unida, igual arroz grudento tipo “unidos venceremos”.

Vamos falar, agora, do poço.  O nosso é desses artesianos, quase cinquenta e dois metros de fundura. Papai, de quinze em quinze dias costuma mandar o Pavio ir lá no fundo para averiguar não sei exatamente o quê. Acho que deve ser para se certificar como está a água, que jorra em abundância e enche não só a nossa caixa como a de mais uma meia dúzia de vizinhos. Temos mania de dizer que Pavio vai e volta do fundo do poço, com uma velocidade incrível, e quando sai do buraco, vem içado num grande balde, preso a fortes correntes do tempo em que vovó e vovô, andavam de bicicleta de uma roda só. 

Papai, de quando em vez, tem umas recaídas brabas. Nessas ocasiões, se tranca, no quarto, para chorar escondido, no colo de mamãe. Meio que apavorada, ela se transforma numa espécie de santa: nessas ocasiões, não fala com ninguém, não atende nenhum de nós e só tem olhos para o esposo (afinal, são quase quarenta e cinco anos de convivência).  Toda vez que isso acontece, ou seja, quando papai se enfurna no colo de mamãe, ficamos apreensivos, pensando que talvez papai, desiludido com a vida, acabe por decidir findar com a existência.

Desde o ano passado, papai encasquetou que está dando muito trabalho, e, em vista disso, por se considerar um trambolho, pularia da ponte. Até então ninguém levou fé. Até sábado retrasado, pelo menos. Meu pai esperou Mariana ir para o trabalho. Sem que ninguém desse pela coisa locou um táxi na pracinha e quando chegou na parte mais alta, no chamado vão central da morte, fingindo um ligeiro mal estar, pediu para que o motorista parasse. Precisava vomitar, teria dito ao motorista. O motorista, coitado, vendo a agonia do cidadão, encostou. Papai saltou e lentamente se achegou da amurada. Olhou para o vazio do mar imenso. Fez pior, subiu na amurada. O motorista do táxi, um sujeito baixo e corpulento, de mãos e pés pequenos, rosto com papada, cabeça arredondada, como uma batata sob um solidéu, apreensivo, imediatamente fechou os olhos. Às apalpadelas, se segurando no carro, tremendo pior que caniço em ventania, chegou o mais rápido que pode, tentando evitar que seu passageiro fizesse a besteira.

Sem contar que o maluco que ameaçava pular, meu querido pai, nem pagara a corrida. Quando voltasse, teria que acertar com o dono do carro. Contudo, quando chegou para segurar meu velho, o cidadão não teve escolha. Precisou abrir os olhos. Ao fazê-lo, se borrou. Deu de cara com o mar imenso. E mais que o mar, com a altura. Não deu outra. Frente ao medo, desmaiou. Papai, que pensava em saltar, sair furtivamente da vida, sem considerar seus dias de glória nem temer o castigo que se abateria sobre seus costados, de repente mudou de ideia e despulou das garras da morte iminente. Correu apressado, afoito, temendo que o pobre motorista viesse a óbito.  Nesse corre-corre sinalizou para outros que cruzavam. Conclusão: prevaleceu a solidariedade da galera. Juntou uma pá de gente e todos se uniram. Levaram o pobre do motorista, para o pronto socorro mais próximo, o semblante deste, branco, mais alvo que rosto de mármore repousando num museu. Era possível enxergar sua alma através da pele. Graças a Deus, com esse peripaque do infeliz, papai tirou definitivamente essa história de querer se suicidar.

Ele e o tal motorista (seu Adão do Fiat 147 amarelo) estão vivos até hoje. Ficaram amigos. Todo final de semana, o referido senhor vem aqui para casa. Sentam ao sol, num banco de madeira, com ares plenos do dever cumprido. O futuro que os contempla, deixa sobre suas carcaças, uma vazia perspectiva a se derramar na eternidade.  Pelo sim, pelo não, mas pelo sim, que pelo não, o incidente serviu para unir dois medrosos abestalhados. Um de pular, e o outro, de perder o valor da corrida. As más línguas atestam o contrário. À boca miúda, observam que papai, na hora agá, tremeu na base, vendo o motorista revirando os olhos e entrando em pânico. Por seu turno, o motorista, com medo de altura, ao olhar para baixo, empalideceu, descorou e por essa razão, desfaleceu boquiaberto. Nessa lengalenga do campeonato, vai se saber! Aliás, é humanamente difícil, senão impossível, de se compreender. E cá entre nós, compreender para quê?! 

Fonte:
Texto enviado pelo autor.
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 333


Malba Tahan (O Velho Zamarak)


Porque os retos habitarão a Terra, e os sinceros nela permanecerão.
Salomão, Provérbios, 2, 21.


Vou contar-vos, agora, ó irmão dos árabes, a curiosa lenda intitulada “O velho Zamarak”, que ouvi, durante o último inverno, quando percorria o interior da Pérsia.

— Onde fica Zamarak?

Eis aí uma pergunta capaz de perturbar e confundir um sábio geógrafo. Vou, porém, esclarecê-la de uma vez para sempre. Zamarak é uma pequenina aldeia, de três mil tamareiras, que fica além de Kishin, num país longínquo, banhado pelo mar da Arábia.

Reza, pois, a tradição, que em Zamarak vivia um velho que tinha 97 anos. Esse número, bem sabeis, simboliza uma longa existência na face da Terra. E o singular ancião, quase centenário, possuía saúde admirável e uma invulgar resistência: trabalhava ativamente, percorria a cavalo largo trecho do deserto, caçava gazela, domesticava falcões de raça e praticava mil outras proezas que só os jovens robustos são capazes de levar ao termo.

O generoso rei Ali Djafar Billah, ao passar certa vez com sua caravana pelo oásis de Zamarak, foi informado da existência do prodigioso ancião. Mandou o monarca que trouxessem o velho à sua tenda e interpelou-o.

— Meu amigo — disse-lhe bondoso —, bem vejo que sois, ainda, forte e sadio numa idade em que o homem, em geral, já se vê trôpego, fraco e esmagado pelo peso da própria vida. Se o egoísmo humano não vos impedir de revelar o vosso segredo, dizei-me: qual foi o bálsamo maravilhoso que vos proporcionou essa invejável vitória sobre o tempo e essa resistência para a vida?

— Rei magnânimo e justo — retorquiu o velho —, vou atender ao vosso pedido. Não conheço, porém, bálsamos nem remédios milagrosos. Devo a saúde que ainda hoje possuo ao regime de vida que adotei. Esse regime admirável resume-se em três preceitos para mim invioláveis e sagrados.

— Qual é o primeiro? — indagou o rei com afetada paciência.

O velho de 97 anos respondeu, baixando um pouco a voz:

— Nunca perdi o orvalho da manhã!

— Por Alá! É interessante! — comentou, jubiloso, o monarca. — Compreendo muito bem o sentido oculto de vossas palavras: quereis dizer que sois por hábito madrugador e que só um homem dado ao trabalho ativo, de vida metódica, nunca “perde o orvalho da manhã”.

— O segundo preceito — acrescentou o ancião, depois de breve silêncio — é o seguinte: nunca bebi de um cântaro sem me assegurar da pureza da fonte!

— Muito bem! — tornou, risonho, o soberano. — A vossa regra de bem viver exprime o cuidado que o homem deve ter com a própria alimentação. Nossa saúde depende muito da água que bebemos e do pão que comemos. Qual o terceiro e último preceito?

— É o mais importante dos três — confessou o velho beduíno. — A esse preceito devo exclusivamente a vida calma e tranquila que tenho tido: jamais contrariei alguém!

— Mac’ Allah! — protestou com veemência o rei. — Não acredito em semelhante coisa! Não posso admitir que um homem, seja ele um emir ou simples caravaneiro, viva noventa anos e mais sete anos sem causar a seus semelhantes infinitas contrariedades! Ah! isso não! Deyman! Abadan! Em tempo algum!

O velho, que ouvira com invejável serenidade as imprecações do monarca, tornou com seu tranquilo falar:

— As objeções que acabais de formular, ó rei, colocam-me, neste momento, em sérias dificuldades. Devo aceitar as vossas objeções? Cumpre-me recusá-las? Não posso, é evidente, concordar com a vossa opinião, pois isso implicaria confessar que já contrariei alguém. Não quero, porém, contrariar-vos, para não ferir um preceito para mim inviolável!

E, depois de ligeira pausa de vergonhoso embaraço, rematou num gesto burlesco de credulidade:

— Mas, afinal, admito que a razão esteja de vosso lado. Não se pode viver, neste mundo de dúvidas e incertezas, noventa anos e mais sete anos sem contrariar centenas de crentes e milhares de infiéis!

— Ó homem admirável! — exultou o rei, com alvoroço. — Os grandes tesouros dos velhos são a prudência e o saber! Preferistes passar por mentiroso a causar uma leve contrariedade àquele que negava o vosso preceito. Com um gênio assim, chegareis, se Alá quiser, aos 197 anos.

Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais. RJ: Record, 2010.

Ronnaldo de Andrade (SPINA – Nova Forma Poética)


Apresento ao público, através do presente texto, a nova forma poética: SPINA, criada em Santo Amaro (SP), pelo poeta pernambucano, residente em São Paulo há pouco mais de duas décadas, Ronnaldo de Andrade, que é formado em letras e autor de dois livros de poesias e dois cordéis.

A nova forma poética foi batizada de SPINA para homenagear o saudoso professor emérito da USP, Segismundo Spina, autor dos livros: Apresentação da Lírica Trovadoresca; Do Formalismo Estético Trovadoresco; Introdução à Poética Clássica; Presença da Literatura Portuguesa (Era Medieval); Na Madrugada das Formas Poéticas e, entre outros, o Manual de Versificação Românica Medieval, livro que inspirou a criação do SPINA; e já está devidamente registrada na Hoodid.com, Empresa de Certificação Eletrônica, com sede na cidade do Recife (PE), e tem parecer favorável de Órgãos Federais Brasileiros, inclusive o Observatório Nacional.

ESTRUTUTA DO SPINA

O SPINA é um poema de duas estrofes. A primeira de três versos com três palavras, obrigatoriamente, iniciada por uma acepção trissílaba.

Ex: beleza.

A última palavra desta estrofe rimará sempre com a última do terceiro e quinto versos

Vejamos a seguir a estrutura estrófica. Cada palavra dos versos está representada pelo sinal diacrítico (popularmente chamado de til).

Primeira estrofe

῀ ῀ ῀
῀ ῀ ῀
῀ ῀ ῀ rima

A segunda estrofe é composta por cinco versos com cinco palavras em cada verso.

Segunda estrofe

῀ ῀ ῀ ῀ ῀
῀ ῀ ῀ ῀ ῀
῀ ῀ ῀ ῀ ῀ rima
῀ ῀ ῀ ῀ ῀
῀ ῀ ῀ ῀ ῀rima

(Palavras compostas com e sem hífen são censuradas no início do poema. Da mesma forma que a ênclise e a mesóclise).

O último verso da primeira estrofe rimará sempre com o terceiro e quinto verso da segunda estrofe, como mostrado acima.

Exemplifiquemos agora com um SPINA nosso:

Contemplo luzes coloridas
no imenso céu:
Ano Novo presente!

Águas passaram, novas – turvas, cristalinas –
irão passar pelo mesmo rio.
A vida é água corrente,
tiremos dela algum proveito; esta
oportunidade não voltará mais, infelizmente!

Além deste esquema rímico obrigatório: abc//decfc (as letras iguais representam rimas entre si) se admite rimas nos demais versos. No entanto, não se deve mudar o esquema rímico obrigatório, o qual foi demonstrando acima – letra C.

Vejamos este segundo SPINA de nossa autoria, acrescido de mais dois pares de rimas:

Cântico glorioso, sonoro,
reavive esperanças mortas,
satisfeito, ajoelho-me, oro!

Canto, notas fortes... Vejo portas
de tamanhos vários sendo abertas.
Cada nota estremece, lembra meteoro;
intensificam-se ritmos, pausas, tônicas certas...
Almejando dias melhores eu choro.

O esquema rímico do SPINA acima é este: aba//bcaca (cada letra representa um verso). As letras iguais representam as palavras que rimam entre si.

Pedimos que sejam usadas as pontuações, de acordo com a necessidade do verso, principalmente a vírgula e o ponto final. É necessário pontuar o último verso do poema. A pontuação quando colocada adequadamente dá mais coerência e beleza ao texto!

TÍTULO E MÉTRICA:

O título e a métrica são opcionais. Ao optar pela métrica regular, não se deve, jamais, alterar a quantidade de palavras dos versos com o intuito de alcançar a métrica desejada. O SPINA abaixo tem título; contudo, a métrica é irregular.

A AGUDEZA DA DOR SÔFREGA,
INCOECRÍVEL, DO SER COMPLACENTE

Despencam tempestades torrenciais
rasgando as entranhas
milimétricas da terra.

Eclodem gritos desesperadores, soluços estrepitosos,
dos âmagos sôfregos por respostas;
alastram-se cranco, mazelas irreversíveis, guerra.
Novas tempestades descem ceifando vidas,
qual cataclísmica avalanche; insopitável motosserra!

CONJUNÇÕES:


As conjunções: mas, e, porém, no entanto, entretanto, pois, todavia, contudo, são todas proibidas.

PALAVRAS COMPOSTAS:

As palavras compostas por hífen são contadas como uma única acepção.

Ex: criado-mudo/ – uma palavra (o mesmo serve para a ênclise e mesóclise).

As compostas sem hífen são contadas individualmente.

Ex: pé/de/moleque/ – três palavras.

APÓSTROFO:

A aglutinação de palavras por apóstrofo não as tornam vocábulos únicos. Cada elemento será contado como único.

Ex: minh’alma = minh/alma – dois elementos.

A RIMA:

Pedimos que só utilizem palavras iguais nas rimas quando os seus significados forem diferentes; não são permitidas rimas imperfeitas nas sequências obrigatórias.

Para se inteirar mais sobre o assunto e participar do grupo SPINA – nova forma poética, acesse:
https://www.facebook.com/groups/623841465028682/

CONSOANTES MUDAS “E SONORAS”:


As palavras contendo as chamadas consoantes mudas (e sonoras) que tenham três sílabas compostas por consoantes e vogais podem iniciar o SPINA.

Ex: eclipse, inepto, relapso, obséquio, recepção, absurdo, objeto, submeter, etc.
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SPINA’s:

01
Alufa-Licuta Oxoronga


NAS HORAS MORTAS DO DIA
O PISPIAR, SERENO, DE VIDA

Propínquo ao chão
O pequenino galho
Despede-se do sol.
 

Adormecido na palma da mão
Os frutos, maduros, seiva vida
Na luminância do antigo farol.
Em inviável pressa, ruflo asas
Cobiçando, da rua, o girassol.

02
Alufa-Licuta Oxoronga

O INSTANTE DO OCULTO EXISTIR

Bramidos, apunhalando infinito,
Horizontes, parindo madrugada,
Chuviscos, rumorejando poema!

Na incongruência, copiosa, das lembranças
Arregimentando os umbrais das linguagens
A salamandra, perscruta, olorosa alfazema,
Entre santuários, labirintos, risos, lágrimas:
Feito oculta anêmona, metaplasmo fonema.

03
Ronnaldo de Andrade


Ferido pela paixão
opressora, cruel, inconfundível,
aproveitadora dos inocentes,

ele padece avesso à relutância
nesse mundo sombrio, sem relevância,
onde proativos contumazes tornam-se incompetentes.
As feridas, inflamadas, não cicatrizam;
vermes carniceiros as devoram indiferentes.

04
Ronnaldo de Andrade


CRUSSIFICADO NO RESTANTE DO RESTO
QUE ME RESETA DE VOCÊ QUE NUNCA TIVE

Partiste, rompendo comigo,
deixando vertiginosas agruras
nos meus caminhos.

Tua ausência crucifica-se em mim,
chicoteia minhas costas, abre sulcos,
submete-me degustar teus podres vinhos,
transportar engenhoso madeiro no dorso,
na cabeça coroa de espinhos!

05
Solange Colombara


Janelas... alucinante martírio,
espiam, escancaram, trancam-se...
Doce, lancinante colírio!

Espelhos da alma, desejos insanos,
sorriem, ferem, calam-se em pranto.
Jardim colorido, perfume de lírio,
fitam-me, procuram respostas, encontram acalanto.
Seus olhos... Perco-me, intenso delírio.

06
Solange Colombara


Apesar da dor,
acredito no amor,
apeteço seu sabor.

Amanhã esqueço, hoje, triste, adormeço.
As lacunas vão-se fechando, estremeço,
Ancoro meus anseios, seu rancor.
Alegra-me presenciar seu feliz recomeço.
A vida acontecendo... Voa, beija-flor.

07
Vera Salviano

DISFARCE

Disfarço não nego!
Basta você querer...
Logo me entrego.

Entre alegria, tristeza, vou indo.
Saudades de você... Sempre sentindo!
Nos sonhos, em você me esfrego.
Sinto suas palavras que atiçam
Minha pele, alma, coração, ego.

08
Vera Salviano


ABANDONO

Sentindo agora, abandonada,
Retira-se deveras entristecida.
Coisas da vida!

Sem saber o que pensar,
Lá foi ela sem entender,
Mais que triste, magoada, ferida!
As horas tombam, mortas agora.
Mais uma vez solitária, desiludida.


 Alufa-Licuta Oxoranga mora em Redenção. É Psicólogo, escritor e Artista Plástico. .
 Solange Colombara é mooquense, poetisa e pedagoga.
 Ronnaldo de Andrade é pernambucano, mas reside em São Paulo; é poeta, formado em Letras e revisor.
 Vera Salviano é raulsoarense (MG), escritora, poetisa, ex-professora e bancária.


Fonte:
Texto enviado por Ronnaldo

Monteiro Lobato (Bucólica)


Tanta chuva ontem!... O cedrão do posto fendido pelo raio — e hoje, que manhã!

A natureza orvalhada tem a frescura de uma criancinha ao deixar o banho. Inda há rolos de cerração vadia nas grotas. O sol já nado e ela com tanta preguiça de recolher os véus de neblina... A vegetação toda a pingar orvalho, bisbilhante de gotas que caem e tremelicam, sorri como em êxtase. Há em cada vergôntea* folhinhas de esmeralda tenra brotadas durante a noite. A mão de quem passa não resiste; colhe-as de alcance, porque é um gosto mordiscar-lhes a polpa macia.

Meu Deus! O que vai de aranhóis pela relva — nos galhinhos de joveva, nas flechas de capim, grandes e pequeninos, todos mimosos de desenho, tecidos a fio de seda... Compraz-se a noite em agrumar neles milhões de diamantezinhos que a luz da manhã irisa. Malmequeres por toda a parte — amarelos, brancos. E tanta flor sem nome...

— Flor à toa — diz a gente roceira.

São, coitadinhas, a plebe humílima. A nobreza floral mora nos jardins, esplendendo cores de dança serpentina sob formas luxuriosas de odaliscas. A duquesa Dália, sua majestade a Rosa, o samurai Crisântemo — que fidalguia!

Bem longe estão destas aqui, azuleguinhas, pouco maiores do que uma conta de rosário. Não obstante, vejo nestas mais alma. Leio mil coisas na sua modéstia. Lutaram sem tréguas contra o solo tramado de raízes concorrentes, contra as lagartas, contra os bichos que pastam. Que tenacidade, que prodígio de economia não representam estas iscas de pétalas, e o perfume agreste que as oloriza, e a cor — tentativa de azul — com que se enfeitam, as feiticeirinhas!

São belas, sim — da sua beleza, a beleza selvática das coisas que jamais sofreram a domesticação do homem.

As flores de jardim: escravas de harém... Adubo farto, terra livre, tutores para a haste, cuidados mil — cuidados do homem para com a rês na ceva*... As agrestes morrem livres no hastil materno; as fidalgas, na guilhotina da tesoura.

Fábula do lobo e do cão...

Que ar! A gente das cidades, afeita a sorver um indecoroso gás feito de pó em suspensão num misto de mau azoto e pior oxigênio, ignora o prazer sadio que é sentir os pulmões borbulhantes deste fluido vital em estado de virgindade. O oxigênio fresquinho foi elaborado naquele momento pela vegetação viçosa. Respirá-lo é sorver vida à nascente.

Ali, o rio. Ingazeiros desgalhados pendem sobre ele as franças, cujas pontas lhe arrepiam o espelho das águas. Caem na corrente flores mortas. O movediço esquife conduz-as com mimo até a barulhenta corredeira próxima; lá, irritado, amarfanha-as, faz-as pedaços — e as coitadinhas viram babugem. Margeia o rio a estrada, ora de ocre amarelo, ora roxo-terra; aqui, túnel sob a verdura picada no alto de nesgões de luz; além, escampa. Nos barrancos há tocos de raízes decepadas pelo enxadão, e covas de formigueiros mortos onde as corruílas armam ninho.

Surgem casebres de palha.

Lá na aguada bate roupa uma mulher.

Rumor no mato... Sai dele, de lenha ao ombro, uma cabocla.

— Sinh’Ana, bom dia! Que é de Luís?

— No eito, coitado.

— Sarou bem?

— Ché, que esperança! Melhorzinho. Panarício é uma festa!...

Baitacas em bando, bulhentas, a sumirem-se num capão de angico. Borboletas amarelas nos úmidos. Parece um debulho de flores de ipê. Uma preá que corta o caminho.

— Pega, Vinagre!

Outra casinha, lá longe. É a toca do Urunduva, caboclo maleiteiro. Este diabo tem no sítio a coisa mais bela da zona — a paineira grande. Dirijo-me para lá. Um carreirinho entre roças, a pinguela, um valo a saltar... Ei-la! Que maravilha!

Derreada de flores cor-de-rosa, parece uma só imensa rosa crespa. Beija-flores como ali ninguém jamais viu tantos. Milheiros não digo — mas centenas, uma centena pelo menos lá está zunindo. Chegam de longe todas as manhãs enquanto dura a festa floral da paineira mãe. Voejam rápidos como o pensamento, ora librados no ar, sugando uma corola, ora riscando curvas velocíssimas, em trabalhos de amor.

Que lindo amor — alado, rutilante de pedrarias!...

Respiro um ar cheiroso, adocicado, e fico-me em enlevo a ver as flores que caem regirantes. Se afla mais forte a brisa, despegam-se em bando e recamam o chão. Devem ser assim as árvores do país das fadas...

— Urunduva? É ele mesmo. Amarelo, inchado, a arrastar a perna...

— Então, meu velho, na mesma?

— Melhorzinho. A quina sempre é remédio.

— Isso mesmo, quina, quina.

— É... mas está cara, patrão! Um vidrinho assim, 3 cruzados. Estou vendo que tenho de vender a paineira.

— ??

— Não vê que Chico Bastião dá dezoito mil-réis por ela — e inda um capadinho de choro. Como este ano carregou demais, vem paina pra arrobas. Ele quer aproveitar; derruba e...

— Derruba!...

— Derruba e...

— Por que não colhe a paina com vara, homem de Deus?

— Não vê que é mais fácil derrubar...

— Derruba!...

Fujo dali com este horrível som a azoinar-me a cabeça. Aquela maleita ambulante é “dona” da árvore. Urunduva está classificado no gênero Homo. Goza de direitos. É rei da criação e dizem que feito à imagem e semelhança de Deus.

Roças de milho. A terra calcinada, com as cinzas escorridas pelo aguaceiro da véspera, enche-se de tocos carbonizados, e árvores enegrecidas até meia altura, e paulama* em carvão. Entremeio, covas de milho já espontando folhinhas tenras.

— Derruba!...

Adiante, feijão. O terreno varrido, cor de sépia, pontilhado pelo verde das plantas recém-vindas, lembra chita de velha: as velhas gostam de chitas escuras com pintas verdes.

É aqui o sítio de Maria Veva. Tem ruim fama esta mulher papuda. Má até ali, dizem. O marido — coitado — um bobo que anda pelo cabresto — Pedro Suã. Ganhou este apelido desde o célebre dia em que a mulher o surrou com um suã de porco. Lá vem ele, de espingardinha...

— Vai caçar?

— Antes fosse. Vou cuidar do enterro.

— Enterro?...

— Pois morreu lá a menina, a Anica.

— Pobrezinha! De quê?

— A gente sabe? Morreu de morte...

Estúpido!

Sem querer, dirijo-me para a casa dele. Não gosto de Veva. É horrenda, beiço rachado, olhar mau — e aquele papo!

— Então, nhá, morreu a menina? Soube-o inda agora pelo Suã...

— É.

Que resposta seca!

— E de que morreu?

— Deus é que sabe.

Peste! E como a atrevidaça me olha duro! Sinto-me mal em sua presença.

— Adeus, Sicorax!*

Para alguma coisa sirva a literatura...

Arrepio caminho, entristecido. A manhã vai alta, já crua de luz. O sol, estúpido; o azul, de irritar. Que é dos aranhóis? Sumiram-se com o orvalho que os visibiliza. Estão agora invisíveis, a apanhar insetinhos incautos que nhá Veva Aranha devora. A paisagem perdeu o encanto da frescura e da bruma. Está um lugar comum. Não vejo flores nem pássaros. O excesso de luz dilui as flores, o calor esconde as aves. Só um carcará resiste ao mormaço, empoleirado num tronco seco de peroba. Está de tocaia aos pintos do Urunduva, o rapinante.

Um vulto... É mulher... Será Inácia? Vem de trouxa à cabeça. É ela mesma, a preta agregada aos Suãs.

— Então, rapariga?

— Ai, seu moço, vou-me embora. Alguém há de ter dó da velha. Na casa da peste papuda, nem mais um dia! Antes morrer de fome...

— Que coisa houve?

— Não sabe que morreu a aleijadinha? Pois é, morreu. Morreu, a pobre, só porque ontem esta sua negra foi no bairro do Libório e a chuva me prendeu lá. Se eu pudesse adivinhar...

— Mas de que morreu a menina, criatura?

— Sabe do que morreu? Morreu... de sede! Morreu, sim, eu juro, um raio me parta pelo meio se a coitadinha não morreu...

Aqui soluços de choro cortaram-lhe a voz.

— ... de seeeede! Meu Deus do céu, o que a gente não vê neste mundo!

A menina era entrevada, e a mãe, má como a irara. Dizia sempre: “Pestinha, por que não morre? Boca à toa, a comer, a comer. Estica o cambito, diabo!”. Isto dizia a mãe — mãe, hein? Inácia, entretanto, morava lá só para zelar da aleijadinha. Era quem a vestia, e a lavava, e arrumava o pratinho daquele passarico enfermo. Sete anos assim. Excelente negra!

— Coisa de três dias garrou uma doencinha, dor de cabeça, febre. Dei chá de hortelã; nada. Dei cidreira; nada. Sempre a quentura da febre. Disse comigo: “Vou lá no bairro e trago uma dose”. Fui, é longinho, três quartos de légua. O curador me deu a dose, mas quem disse de poder voltar? Uma chuvarada... Pousei no Libório. Hoje, manhãzinha, vim.

“Entrei alegre, pensando: a coitadinha vai sarar. Eu que pisei na alcova, dou com a menina espichada na esteira, fria. ‘Anica! Anica!’ Quando vi bem que estava morta de verdade, ah, seu moço, berrei como nunca na minha vida.

“— Nhá Veva, de que jeito morreu Anica, conte, conte!

“Nhá Veva quieta, repuxando a boca. Uma pedra! Caí em cima da menina, beijei, chorei. Nisto, uma cutucada — era Zico, aquele negrinho, sabe? Olhei pra ele: fez jeito de me falar longe da taturana. Lá fora me contou tudo. A menina, desde que eu saí, piorou. Mas quietinha sempre. Noite alta, gemeu.

“— Cala a boca, peste! — gritou do outro quarto a mãe — mãe, veja!

“— Quero água, nhá mãe.

“— Cala a boca, peste!

“A menina calou. Mais tarde gemeu outra vez, baixinho.

“— Quero água! Quero água!

“Ninguém se mexeu.

“— E tu, negrinho safado, por que não acudiu a menina?

“— Não vê! Eu conheço nhá Veva!...

“Seu Pedro, aquele trapo, esse estava na pinga de todo dia. Ninguém na casa para chegar uma caneca d’água à boca da doentinha. Ela, um chorinho ainda; depois, mais nada. De manhã...”

Lágrimas escorriam a fio pela cara da preta e soluços de dor cortavam-lhe as palavras.

— De manhã foram encontrar a menina morta na cozinha, rente ao pote d’água. Arrastou-se até lá, o anjinho que nem se mexer na cama podia — e morreu de sede diante da água!...

— Quem sabe se...

— Não bebeu, não! O pote, em cima da caixa, ficava alto, e a caneca estava tal e qual no lugarzinho do costume. Não bebeu, não! Morreu de sede, o anjo!

Enxugou as lágrimas na manga.

— Agora vou no Libório. Se ele me quiser, fico. Se não, sou bem capaz de me pinchar nesse rio. Este mundo não paga a pena...

Sol a pino. Desânimo, lassidão infinita…
__________________________
Notas:
Ceva – alimentação, engorda.

Paulama – lenha ou madeira que entulha os roçados depois da queimada.

Sicorax –  feiticeira, é a mãe de Calibã em A tempestade, de Shakespeare.

Vergôntea – ramo fino de árvore ou arbusto; rebento, broto.


Fonte:
Monteiro Lobato. Urupês. Conto publicado em 1915.

terça-feira, 28 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 332


Lima Barreto (Um que vendeu a sua alma)




A anedota que lhe vou contar, tem alguma coisa de fantástica e pareceria que, como homem de meu tempo, eu não devia dar-lhe crédito algum. Entra nela o Diabo e toda a gente de certo desenvolvimento mental está quase sempre disposta a acreditar em Deus, mas raramente no Diabo.

Não sei se acredito em Deus, não sei se acredito no Diabo, porque não tenho as minhas crenças muito firmes.

Desde que perdi a fé no meu Lacroix; desde que me convenci da existência de muitas geometrias a se contradizerem nas suas definições e teoremas mais vulgares; desde então deixei que a certeza ficasse com os antropologistas, etnólogos, florianistas, sociólogos e outros tolos de igual jaez.

A horrível mania da certeza de que fala Renan, já a tive; hoje, porém, não. De modo que posso bem à vontade contar-lhes uma anedota em que entra o Diabo. Se os senhores quiserem acreditem; eu, cá por mim, se não acredito, não nego também.

Narrou-me o amigo:

— Certo dia, uma manhã, estava eu muito aborrecido a pensar na minha vida. O meu aborrecimento era mortal. Um tédio imenso invadia-me. Sentia-me vazio. Diante do espetáculo do mundo, eu não reagia. Sentia-me como um toco de pau, como qualquer coisa de inerte.

Os desgostos da minha vida, os meus excessos, as minhas decepções, me haviam levado a um estado de desespero, de aborrecimento, de tédio, para o qual, em vão, procurava remédio. A Morte não me servia. Se era verdade que a Vida não me agradava, a Morte não me atraía. Eu queria outra Vida. Você se lembra do Bossuet, quando falou por ocasião de M.lle de la Vallière tomar o véu?

Respondi:

— Lembro-me.

— Pois sentia aquilo que ele disse e censurou: queria outra vida.

E então só me daria muito dinheiro.

Queria andar, queria viajar, queria experimentar se as belezas que o tempo e o sofrimento dos homens acumularam sobre a terra, despertavam em mim a emoção necessária para a existência, o sabor de viver.

Mas dinheiro! — como arranjar? Pensei meios e modos: Furtos, assassinatos, estelionatos — sonhei-me Raskólnikoff ou coisa parecida. Jeito, porém, não havia e a energia não me sobrava.

Pensei então no Diabo. Se ele quisesse comprar-me a alma?

Havia tanta história popular que contava pactos com ele que eu, homem cético e ultramoderno apelei para o Diabo, e sinceramente!

Nisto bateram-me a porta. — Abri.

— Quem era?

— O Diabo.

— Como o conheceste?

— Espera. Era um cavalheiro como qualquer, sem barbichas, sem chavelhos, sem nenhum atributo diabólico. Entrou como um velho conhecimento e tive a impressão de que conhecia muito o visitante. Sem cerimônia sentou-se e foi perguntando: "Que diabo de spleen é esse?" Retorqui: "A palavra vai bem, mas falta-me o milhão." Disse-lhe isso sem reflexão e ele sem se espantar, deu umas voltas pela minha sala e olhou um retrato. Indagou: "É tua noiva?" Acudi: "Não. É um retrato que encontrei na rua. Simpatizei e..." "Queres vê-la já?" perguntou-me o homem. "Quero", respondi. E logo, entre nós dois sentou-se a mulher do retrato. Estivemos conversando e adquiri certeza de que estava falando com o Diabo. A mulher foi-se e logo o Diabo inquiriu: "Que querias de mim?" "Vender-te minha alma", disse-lhe eu.

E o diálogo continuou assim:

Diabo — Quanto queres por ela?

Eu — Quinhentos contos.

Diabo — Não queres pouco.

Eu — Achas caro?

Diabo — Certamente.

Eu — Aceito mesmo a coisa por trezentos.

Diabo — Ora! Ora!

Eu — Então, quanto dás?

Diabo — Filho, não te faço preço. Hoje, recebo tanta alma de graça que não me vale a pena comprá-las.

Eu — Então não dás nada?

Diabo — Homem! Para falar-te com franqueza simpatizo muito contigo, por isso vou dar-te alguma coisa.

Eu — Quanto?

Diabo — Queres vinte mil-réis?

E logo perguntei ao meu amigo:

— Aceitaste?

O meu amigo esteve um instante suspenso, afinal respondeu:

— Eu... Eu aceitei.

Fonte:
Lima Barreto. Um que vendeu a sua alma. Belém/PA: Universidade da Amazônia.
Conto publicado pelo autor em julho de 1913.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 7




Quedos ? Por que andais silenciosos?

A vida é feita de conversas, de risos, de alacridade, de força, e esperança, e fé.

Nestes tempos de pandemia (ou pandemônio?) vejo viventes tais quais viandeiros disfarçados, cabisbaixos, pelos caminhos onde antes andavam soltos, desenvoltos, no lazer, no trabalho, na vida . . . E não é assim esta vivência ! Sejamos sólidos, solidários, solícitos, sem esquecer do nosso nós. Agregar elementos essenciais para a vitalidade. Cuidados sanitários sempre presentes. Alimentação saudável - o quintal é a melhor farmácia, fonte perene de saúde.

O estado anímico - alegria, otimismo, risadas, entusiasmo - nos deixa de bem com a vida,
independente de males externos que rondam nossos dias. Parcas palavras permanecem
poderosas: MENS SANA IN CORPORE SANO.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Tributo a Cecim Calixto