sábado, 15 de abril de 2023

Daniel Maurício (Poética) 50

 

Aparecido Raimundo de Souza (Lanche da tarde)

A MESA DO CAFÉ ESTÁ POSTA. Abarrotada e demasiadamente farta. Ao redor desse imenso móvel todo talhado em madeira de lei, sentados, comportadamente, nós, crianças esperamos Vovó Sinhá servir as guloseimas que foram feitas para o lanche das três. Hoje não faltará o pão caseiro. Somente a “Mãe Chica”, com as mãos hábeis dadas por Deus, sabe preparar essa fogaça (pão doce e enorme). Completando, bolo de farinha de trigo com água, sal e ovos; manteiga; pipocas salgadinhas; leite tirado na hora e café moído pouco antes de ir ao coador. Como variação, torta de chocolate, bananas assadas com açúcar e canela. 

Também no cardápio: maçãs vermelhinhas em pedaços; suco de frutas geladinho; queijo cortado em retalhos; presunto e mortadela em fatias. Há igualmente, de reserva, um pacote recheado (com as famosas bolachinhas da venda de “Seu Pereira”), que aguarda, de pronto ser aberto e devorado. Da cozinha contígua, às dependências do resto da construção, ninguém parece sentir o calor abafadiço da tarde linda e comprida. Lá fora, no grande terreiro, um sol ardente se espalha e se dispersa pelo quintal da propriedade que se divorcia das vistas, calcinando a quinta (propriedade) batida e as plantinhas desprotegidas do resguardo das sombras. 

Até as águas ligeiras e cristalinas de um córrego centenário que descem das montanhas seguem numa lentidão acanhada e preguiçosa, e, ao passarem sob a diminuta ponte da divisa do sítio, dão a impressão de imprimirem uma breve pausa como que para se refrescarem debaixo de uma mangueira imponente e altiva, abrigo de dezenas e centenas de pássaros que campeiam toda a extensão dessas paragens. No extremo apartado, para as bandas onde o infinito parece se abraçar à Terra, uma quase imperceptível elevação de poeira amarela se mistura com o ar mormacento e encalmadiço do dia bucólico marchando vagarosamente para o encontro de um ponto determinado. 

De fato. É um cavalo trazendo no lombo Vovô Jeremias, que, “atrasado” para a merenda, voa sobre as patas ligeiras de um fogoso garanhão:

— Tenham calma! O avô de “oceis loguinho apeia”.

Instantes depois, como previsto, Vovô Jeremias entrega a sua montaria à Mãe Chica que, mostrando o melhor sorriso nos dentes claros, acorre a receber o cavaleiro que desmonta espavorido sacudindo as roupas:

— Boas tardes, Mãe Chica...

— Boas, “Sinhô Jeremis!”.

Vovô Jeremias, ou como o trata, a Mãe Chica, de “Sinhô Jeremis” (ela não sabe pronunciar Jeremias) se emoldura num oitentão alto e corpulento, cabelos brancos e rugas precoces vincando as faces coradas. Pecuarista (Negociante de gado de corte), esse homem de coração aberto e feições tranquilas prospera criando, comprando e vendendo rebanhos da raça Nelore. Por conta disso, possui nos arredores do povoado três fazendas com um número gigantesco desses animais. Se tornou um dos mais ricos e abastados fazendeiros e exportadores da região. Atualmente, o Senhor Jeremias desfruta do que semeou desde seu passado distante, juntamente com Maria Sinhá (a nossa Vovó Sinhá), companheira de tantos e tantos janeiros. 

Os dois, agora, vivem nessa etapa pacífica da vida, ou seja, se dedicam aos filhos e seus descendentes:

— Olá, querida!

— Olá, querido!

Após beijar a esposa, parte em direção ao espaço onde quatro boquinhas famintas o esperam. Primeiro se aproxima das meninas Luzia e Luana e as abraçam com demorados afagos. Depois, repete o mesmo gesto comigo e Roberto Júnior. Vovô Jeremias se mostra tão estimado por todos nós, que, sempre brigamos distribuindo uma série de tapas e beliscões “carinhosos” disputando acirradamente o colo do ancião. 

Nessas ocasiões é necessária a imediata intervenção de Vovó Maria Sinhá, e as promessas solenes de que, dia seguinte, providenciará junto com a Mãe Chica, o prato predileto de cada um de nós em particular. Somente dessa forma consegue acalmar os ânimos alvoroçados:

— “Nóis távamos” famintos, vovô!...

— Ué, não “tão” mais?...

— Lógico que sim, vovô!

Desfazendo-se do chapéu de abas largas, o Senhor Jeremias caminha até o lavatório e ali se alivia um pouco do calor abrasante causado pela elevação da temperatura que o acompanhou desde a cidade. 

O líquido gelado jorrando da torneira aberta sobre suas mãos enrugadas lhe traz a sensação reconfortante da missão do dever cumprido. Em seguida, sem mais delongas, se acomoda em sua cadeira predileta, levanta a mão direita e grita sorridente:

— Muito bem, pirralhos e pirralhas! Canecas nas mãos. Vamos acabar com as coisas gostosas que aqui estão!...

A mesa do café posta. Ao redor desse móvel, sentados comportadamente, nós quatro esperamos Vovó Sinhá servir as guloseimas que foram feitas para o lanche das três:

— Venha se sentar também conosco, Mãe Chica. Afinal de contas, a sua carcaça de ossos elegantes já faz parte integrante das mobílias da casa.

Mãe Chica, recatada num intervalo necessário, não espera segunda ordem. Conspícua, sorriso largo, se acomoda ao lado de vovô Jeremias e Vovó Sinha: 

—  Pois é pra já, “Sinhô Jeremis...”.  

Enquanto isso, pela paisagem enquadrada nas janelas da ampla cozinha, ao lado do fogão de lenha, à tarde pressurosa se faz ainda mais elegante e soberba. O sol quente, bonito e majestoso, continua a admoestar, sem compaixão, as criações, as aves e as plantinhas desamparadas e indefesas do resguardo precioso das sombras.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) – 12 –

ADORMECENDO PALAVRAS

Sem a palavra, simplesmente silêncio.
Há, no pavio, uma chama renitente
Que queima, aos poucos... a explosão, que é iminente,
E espalha ardentes emoções no ar sombrio.

Sou um ser frágil... tenho asas, bico... garras,
Sublimo o céu em cada sonho que me dou,
Se me açoitam, sou barco, solto as amarras
E assim, no vento... ou nas correntes... amo... e vou.

Minha palavra é projétil, ave e flor...
Com ela amo, fantasio... dinamito,
Meu coração é a pulsação do meu amor.

Bendito o homem que liberta a emoção
Aprisionada, mas que voa, com seu grito,
Mas adormece dentro do seu coração.
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LÍRICO ARTEFATO

Não sigo a frota, quando a rota é sem destino.
Que poliglota fala a linguagem do mar?
... sei velejar com a inocência de um menino:
Faço um barquinho... e deixo o vento me levar.

A ingenuidade foi meu ponto de partida
Busquei amar sem questionar a alma alheia,
Fui enganado... ou me enganei, pois minha vida,
É mais que o canto sedutor de uma sereia.

Há, na candura, essa espécie de contato
Que sempre foge da frieza de um retrato
E mostra um rosto que sorri à revelia

Da poesia que se torna um artefato,
No exato instante em que o dragão foge o rato
E a explosão do amor detona a fantasia.
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METADE

Se puderes me guardar no teu olhar,
Já me basta, porque, no teu coração,
De repente não irás me libertar
Pois voar não se acostuma com prisão.

Passarinho, eu nasci para voar
E cantar para alegrar a solidão.
Quando sonho, não escolho o que sonhar,
Meu amor convive bem com a emoção.

Se puderes me levar, deixa a metade
Para mim... gosto de ver, em liberdade,
Pelo menos um pedaço de quem sou...

A outra parte, que a protejas com carinho,
Porque, quando eu estiver bem mais sozinho,
Saberei me completar com o que restou.
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PARÁFRASE SURREALISTA DE UM SONETO

Olhando as formas de um soneto antigo,
Feito bem antes do descobrimento,
Um sonetista em desenvolvimento
Buscou, atento ao texto, um novo abrigo...

... vernacular... e em vão, quis disfarçar,
Com singular astúcia, o conteúdo,
Mudou os verbos, nomes, quase tudo,
Na intenção febril de o copiar.

Mas no final do último terceto,
O cidadão selou o seu soneto
Numa paráfrase tão surreal,

Que não contendo suas emoções,
Gritou: - Leitores! Roubei de Camões,
Este soneto feito em Portugal!
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UM POETA NÃO É SÓ SUBSTANTIVO

Sempre alguém diz que sou poeta até no nome...
...mas um poeta não é só substantivo...
o que se inventa, normalmente um dia some
e é assim: reinventando, eu sobrevivo.

Sou só mais um igual a tantos que diluem
nas suas dores, os seus sonhos e anseios,
seres que aprendem a criar versos que fluem,
polinizando a flor dos próprios devaneios.

Não modelei esse poeta que há em mim...
nasci assim, com esse dom especial
de abençoar, na solidão do meu jardim,
cada botão de cada flor original.

Não me sentei numa cadeira e copiei
o que pregava um ilustre professor,
mas diluí em cada olhar o que criei,
quando encontrei no meu olhar, meu próprio amor.

Meus mestres são sempre o melhor que alguém me dê,
sem me cobrar... o amor requer fraternidade...
e Deus repassa, a qualquer cristão que Nele que crê,
esse poder que existe dentro da humildade.

Deus misturou, em cada cor que eu desenhei,
o arco-íris da melhor abstração;
autodidata, cada linha que tracei,
foi um pedaço do meu próprio coração.

Sou, sim, poeta sem registro em cartório,
meu repertório não carece de um carimbo;
a inspiração é muito mais que algo simplório;
se alguém me bate, é com meus versos que me vingo.

Poetas choram poesias, quando o riso
que eles têm fazem da página, o caminho,
da sua lágrima melhor, tão sem aviso,
deixando um rastro moldado pelo carinho.

Não sou poeta só no nome, o meu olhar
capta a vida que respira ao meu redor
e é só o amor reaprender o que é sonhar,
que faço o mundo parecer muito melhor

Fonte:
Luiz Poeta. Nuvens de Versos. Campo Mourão/PR: Ed. J.Feldman, 2020.

Nilto Maciel (Consciência Tranquila)

D. Evinha ainda parecia nervosa. Um milagre não terem morrido. Aquele maluco devia estar preso, bem preso. Para nunca mais quase matar pessoas indefesas. Nereida chorava de vez em quando, embora não tivesse nenhum ferimento. Apenas uma pancada no joelho. 

Preocupado com as consequências do pequeno acidente, Silvano se lamentava: quisera apenas ajudar a velhinha. Coitada, sob aquele sol do meio-dia, esperando ônibus! Mara, porém, duvidava ter sido esse o motivo da atitude do marido. Não teria parado o carro por causa da mocinha?

Revoltada, Mara contou detalhes do acidente à amiga Maria Serpa. Uma freada brusca e quase matou a velhinha e sua neta. A outra quis saber se Silvano conhecia as duas mulheres. Nem uma nem outra. Viu a mocinha à beira da calçada e parou o carro. Depois arranjou a desculpa da misericórdia pela velhinha exposta ao sol a pino. Um miserável! Vivia atrás de mulheres. Não respeitava ninguém.

Mal se deitaram, Maria Serpa puxou conversa com o marido. Se já sabia do acidente causado por Silvano. Sim, coisa sem importância. A anciã nem sofrera nada. Porém havia a mocinha. E o tarado talvez até estivesse pegando ela. Não, Silvano não seria capaz disso, jurava Coutinho. Era, sim. Disso e de muito mais. Capaz de estuprar a própria filha.

À hora do recreio, Nereida encontrou Ione. Quase morrera no dia passado. Um doido num carro. Ofereceu-lhe carona e por pouco não bateu noutro carro. Não, não o conhecia. Se estivesse sozinha, não teria entrado no carro. Apenas conversaram. Não, não fez nenhum convite. Nem tocou em suas pernas. Coitada da vozinha. Muito assustada. Talvez descuido dele. Parece chamar-se Silvano. A polícia queria prendê-lo.

Silvano contou tudo a Coutinho. Um descuido. A velhinha falava sem parar, a garota ria. Não, não conhecia nenhuma delas. Podia ter sido grave o acidente. E se a velhinha tivesse morrido? Nem pensar nisso. Quisera apenas praticar uma boa ação. Mara gostava de dizer tolices. Então não se preocupasse mais com aquilo. Não, de jeito nenhum. Tinha a consciência tranquila.

E mudaram de assunto.

Fonte:
Enviado pelo escritor.
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

Jaqueline Machado (O Diabo, de Liev Tolstói)

"Eu, porém, vos digo, que qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela. 
Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. E, se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti, porque te é melhor que um dos teus membros se perca do que seja todo o teu corpo lançado no inferno."

É com esse versículo ameaçador de Mateus, 5. 28:30,  que se inicia a novela de Liev (ou Leon) Tolstói publicada postumamente no ano de 1911. Essa tônica vai reger toda a novela que conta a história do personagem Evguêni Vânovitch, que é um de três filhos. O rapaz é comum, nem burro, nem muito inteligente, mas bem educado. Após a morte de seu pai, ele fica com a mãe e assume as responsabilidades da herança. Logo, também descobre que seu pai deixou muitas dívidas. Sua herança é uma fazenda que ficava num vilarejo. Na fazenda, ele se envolve com uma mulher casada: Stiepachka, com quem se encontra muitas vezes num galpão da propriedade. E o que parecia ser uma paixão aleatória, apenas para saciar seus desejos carnais, ganha inesperadas proporções.  

Evguêni se casa com Lisa Anienkaia, uma mulher que Tolstói descreve como a mulher perfeita em tudo o que faz, o apoia em tudo e mantém a casa perfeitamente organizada. E ainda divide o seu dinheiro com ele. O casamento ia muito bem até que, um ano depois de casado, ele se encontra novamente com Stiepachka, que ao se mover e erguer o vestido, deixa parecer o tornozelo e o lenço. Dali em diante ele passa a se deixar levar por uma tentação arrebatadora. O que parecia sem importância, agora estava integrado à sua vida conjugal.

Toda vez que Evguêni, via a ex-amante, sentia-se irremediavelmente atraído por ela. E num momento de desesperança total, pede a ajuda do tio de sua esposa. Nessa conversa ele desabafa, expondo todas as suas vulnerabilidades. E implora: “- Por favor, salve-me de mim mesmo!” O tio o aconselha a se retirar por um tempo da fazenda junto de sua esposa. Ele acolhe o conselho e decide partir. 

Em seguida, Lisa dá a luz a uma linda menina. Ao retornar à casa com sua família, ele se sente liberto: um marido honesto e fiel. Mas está enganado a respeito de si mesmo. Ao ver Stiepachka percebe que não está curado: os desejos o possuem novamente. E ele só consegue enxergar três saídas: matar a esposa para viver com a mulher que o atormenta, matar Stiepachka ou matar a si mesmo. 

Desesperado, ele mata a camponesa, porque ela era o diabo que o possuía. Foi preso, e depois passou um tempo num mosteiro onde bebia. E retorna ao lar como um alcoolatra. Ou seja, agora o diabo que o dominava não era mais a bela camponesa a quem matou, e sim, a bebida.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

sexta-feira, 14 de abril de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 25

 

Coelho Neto (O Tempo)

Querendo o príncipe oferecer ao templo uma imagem de Apolo digna do edifício grandioso que 
mandara construir para honrar a divindade esplêndida e levar, pelos séculos vindouros, a fama da sua grandeza, convocou os mais celebres estatuários do reino para uma conferência em palácio.

Apresentaram-se três artistas, dos quais um deles seria nomeado.

Disse-lhes o príncipe o que pretendia, ajuntando, com largueza, que não fazia questão de preço e que pedissem tudo quanto julgassem necessário à boa execução da obra de arte, que devia ser bela e solidamente feita para que deslumbrasse e resistisse aos séculos.

– Senhor, disse o primeiro estatuário, dai-me ouro e eu vos trarei uma estátua tão bela que, no dia em que for instalada no templo, os homens da terra terão a ilusão de estar contemplando o próprio condutor do carro do sol.

E o príncipe ordenou que se cumprisse a vontade do artista.

— Senhor, disse o segundo estatuário — farei de prata o corpo, farei de ouro as vestes e cobri-las-ei de pedras preciosas. Será tão formosa a imagem que os deuses baixarão do Olimpo para contemplá-la, e, de pé, no altar do templo, dispensará a luz do sol e a claridade das lâmpadas porque os raios que emitir iluminarão gloriosamente o recinto.

E o príncipe ordenou que fosse satisfeito o desejo do artista.

Foi a vez do terceiro estatuário. Era um velho, de barbas brancas, tão longas que lhe chegavam à cintura. Caminhava lentamente e, curvando-se ante o príncipe, falou com respeito e modéstia :

— Senhor, dai-me um bloco de mármore puro e tempo para que eu nele trabalhe e procurarei fazer o máximo que a um homem é dado fazer.

Puseram-se os três escultores com o que haviam pedido e, em todo o reino não se falou, durante meses, em outro assunto senão no concurso chamado “divino”.

Ainda ia em meio o primeiro ano quando o artista que pedira ouro apareceu orgulhosamente na corte com o seu Apolo.

Foi um acontecimento e não faltou quem louvasse a grande atividade do modelador. Descoberta a figura, pasmaram os assistentes. A imagem irradiava como o próprio sol. Mas um perito, adiantando-se à turba, pôs-se a mostrar defeitos que muito comprometiam o trabalho e outras vozes criticaram: uma a expressão, outra a atitude; esta notava a falta de majestade; aquela as desproporções.

— Vale porque é de ouro, disse por fim o perito.

E o príncipe, desgostoso, mandou fundir em moedas a estátua que fora destinada a adoração dos crentes.

Pouco tempo depois anunciou-se o segundo estatuário.

Ainda que o seu trabalho revelasse maior esmero não o acharam, todavia, digno de ocupar o solo em que devia ser erigida a imagem olímpica.

— É bela e é rica, refulgente, mas falta-lhe majestade! É uma linda figura humana e nós queremos um deus.

E a estátua de prata e ouro, com recamos de pedrarias, ficou ornando uma das salas do palácio.

Do terceiro estatuário não havia notícia e já corriam murmúrios irónicos, boquejos de menoscabo : “Desistiu da empresa. Era velho demais para trabalho que exige inspiração viçosa. Anda, sem dúvida, a fazer figurinhas, como as de Tanagra, para vendê-las aos forasteiros.”

Uma manhã, porém, para surpresa de todos, apareceu o velho no palácio com o seu “deus” envolto em panos de linho.

Ainda que ninguém confiasse no seu trabalho, juntaram-se todos os cortesãos no palácio, só por subserviência ao príncipe, e os serviçais descobriram a imagem. Houve um movimento de espanto.

Maravilhados, embevecidos quedaram todos contemplando a figura olímpica, Apolo, o magnífico — que, de pé sobre nuvens, a cabeça aureolada de raio, o olhar sublime, parecia dominar serenamente os homens.

— Este sim ! Este é Apolo augusto ! bradaram. Este é o deus solar, dominador da altura. 

Descendo do trono, o príncipe felicitou o artista e, depois de o haver engrandecido com palavras de louvor, perguntou :

— A que deus pediste a graça de tão formosa inspiração ?

— Ao Tempo, senhor. Outros exigiram metais e pedras preciosas, a mim bastou o mármore puro. Para enriquecê-lo eu contava com o Tempo. Se, para uma curta viagem, são necessárias muitas horas como havemos de afrontar os séculos de afogadilho?

A inspiração é a flor do gênio, mas não exijamos que ela dê fruto saboroso logo que desabroche. É preciso deixar que o Tempo faça o seu oficio. Se um deus me patrocinou foi a Paciência ; se um demônio comprometeu a obra dos que me precederam, foi a Pressa. Senhor, os séculos são longos e quem se destina a atravessá-los deve ir devagar. Quereis saber como se consegue a Eternidade ? Com o Tempo.

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924. 

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 11

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.


Abalo o pé da roseira,
mas não o posso arrancar.
Quem não tem bens de raiz
glórias não pode alcançar.
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As rosas é que são belas,
são os espinhos que picam,
mas são as rosas que caem...
são os espinhos que ficam...
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Chovam raios e coriscos,
parta-se o mar em pedaços,
hei de amar o meu benzinho
com todos seus embaraços.
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Cravo goivo, amor perfeito,
metido em tua almofada...
No dia em que não te vejo,
não como, não faço nada.
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Cravo, não bulas com a rosa,
deixa a rosa na roseira...
Tu bem sabes que é pecado
bulir com moça solteira.
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Cresce a lua, cresce o mar,
Cresce a planta, cresce a flor,
Só não cresce na tu'alma
a raiz do meu amor.
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Do jardim deste teu peito
quero dois botões de rosa,
e quero teu coração,
das flores a mais mimosa.
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És uma roseira fina,
bem enflorada a meu gosto,
os botões estão no seio,
a rosa aberta é teu rosto.
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Eu passei por um craveiro,
tirei um cravo com a unha.
Quem toma o amor dos outros,
não tem vergonha nenhuma.
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Lá detrás daquele cerro,
é o sertão do Seridó.
Faço carinhos a todos,
mas quero bem a ti só.
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Lá d'outra banda do rio
está uma rosa por se abrir.
Quem me dera ser sereno
para nessa rosa cair!
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Logo mando quatro cravos,
todos quatro por abrir...
Meus braços estão abertos,
sempre que tu queiras vir.
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Meu benzinho, se eu pudesse,
fazia a noite maior...
Dava um nó na lua cheia,
outro nos raios do sol.
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Meu botão de rosa branca,
teu aroma me entristece,
hoje em dia, minha rosa,
quem mais faz menos merece.
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Muito lindo é o céu
pra onde Deus nos criou:
Sem primeiro padecer
nunca ninguém o gozou.
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Ó lua, dá-me teu brilho,
bela rosa, as tuas cores.
Primavera, as tuas galas,
para enfeitar meus amores.
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0 mar se desmancha todo,
em rendas junto da praia.
Também andam meus amores
na renda da tua saia.
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Passeia, meu bem, passeia,
por paragens que eu te veja,
inda que a boca não fale,
meu coração te festeja.
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Plantei um pé de roseira,
nasceu um de maravilha,
estou falando com a mãe
mas com sentido na filha.
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Rebenta o raio feroz,
derruba sem compaixão,
castiga o orgulho da terra
que se levantou do chão…
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Roseira, dá-me uma rosa,
craveiro, dá-me um botão,
que em troca do teu afeto,
dar-te-ei meu coração.
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Sereno da madrugada
caiu no talo da couve.
Quem me dera que eu caísse
nos braços de quem me ouve!
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Subi às portas das nuvens,
cavalgando num trovão,
desci nas cordas das chuvas
com dez coriscos na mão.
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Tive um canteiro de estrelas,
de nuvens tive um quintal,
para dar ao meu amor
se não me quisesse mal.
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Vamos viver na campina,
como vive a planta e a flor,
gozando em suave paz
a suave lei do amor.
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Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.

Irmãos Grimm (O Senhor Compadre)


Um homem pobre tinha tantos filhos que ele já tinha pedido a todo mundo para ser padrinho de seus filhos, e quando mais uma criança havia nascido, não restava ninguém a quem ele pudesse convidar. Ele não sabia o que fazer e, todo confuso, foi se deitar e caiu no sono. Então, ele sonhou que ele tinha que sair na rua e pedir para a primeira pessoa que ele encontrasse para ser o padrinho.

Quando ele acordou, ele decidiu fazer o que o sonho mandava, e saiu para a rua, e pediu para a primeira pessoa que apareceu para ele para ser seu compadre. 

O estranho lhe presenteou com um pequeno copo d’água, e disse, "Esta é uma água maravilhosa, com ela você poderá curar os doentes, você deverá apenas observar onde a Morte vai ficar. Se ela ficar perto da cabeceira do paciente, ofereça ao paciente um pouco de água e ele ficará curado, mas se a Morte ficar aos pés do paciente, todo esforço será em vão, porque a pessoa doente com certeza irá morrer." 

Desse dia em diante, o homem sempre conseguia dizer se um paciente poderia ser salvo ou não, e se tornou famoso com essa sua habilidade, e ganhou muito dinheiro com isso.

Uma vez ele foi chamado para ver a filha do rei, e quando ele entrou, ele viu que a Morte estava na cabeceira da criança e portanto, a curou com a água, e ele fez a mesma coisa uma segunda vez, mas na terceira vez a Morte estava aos pés da criança e então ele sabia que a criança estava destinada a morrer.

Certa vez esse homem pensou em visitar o compadre, para lhe falar sobre o sucesso que ele tinha conseguido com a água. Mas quando ele entrou na casa, era um lugar tão esquisito! No primeiro lance de escadas, a vassoura e a pá estavam discutindo, e uma batia na outra violentamente. 

Então, ele perguntou a elas, "Onde é que mora o compadre?" 

A vassoura respondeu, "Um lance de escadas acima." 

Quando ele chegou no segundo lance, ele viu um amontoado de dedos de mortos no chão. E perguntou, "Onde é que mora o compadre?" 

Um dos dedos respondeu, "Um lance de escadas mais alto." 

No terceiro lance havia um monte de cabeças de gente morta, que também indicaram para ele um lance acima.

No quarto lance de escadas, ele viu peixes no fogo, onde eles próprios eram fritos e cozidos nas panelas. Eles também disseram, "Um lance de escada acima." 

E quando ele tinha subido o quinto lance, ele chegou na porta de um cômodo e deu uma espiada pelo buraco da chave, e lá ele viu o compadre que tinha um par de longos chifres. Quando ele abriu a porta e entrou, o compadre deitou na cama todo apressado e se cobriu. Então, o homem disse, "Senhor compadre, que estranhos moradores você tem aqui! Quando eu cheguei no seu primeiro lance de escadas, a pá e a vassoura estavam discutindo, e uma batia na outra violentamente."

"Como você é tolo!" disse o compadre. "Eles eram o garoto e a criada que estavam conversando." 

"Mas no segundo lance eu vi dedos de gente morta caídos no chão." 

"Oh, como você é doido! Eram algumas raizes de scorzonera." 

"No terceiro lance havia um monte de cabeças de gente morta." 

"Seu bobo, eram apenas repolhos." 

"E no quarto lance, eu vi peixes na panela, que estavam assobiando e assavam a si próprios." Quando ele disse isso, os peixes vieram e começaram a se servir. "E quando eu cheguei no quinto lance de escadas, eu dei uma espiada pelo buraco da fechadura, e então, meu compadre, eu vi o senhor, e o senhor tinha chifres muito longos." 

"Oh, isso é mentira!" 

O homem ficou tão assustado, que saiu correndo, e se não tivesse fugido, quem sabe o que o compadre teria feito com ele.

Fonte:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. 
Conto em Domínio Público.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Isabel Furini (Poema 42): Acordar

Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook.

Humberto de Campos (Apólogo sertanejo)

Viúvo da Razão, que havia morrido no hospício, abandonou o coração, um dia, a sua fazenda no interior do país, trazendo para uma grande cidade do litoral, em sua companhia, afim de esquecerem o golpe recente, os seus filhos e filhas. Estes eram, ao todo, nove, sendo três homens - o Amor, o Pudor e o Orgulho, e seis mulheres - a Fé, a Esperança, a Amizade, a Coragem, a Caridade e a Hipocrisia.

Chefe de família descuidado, o Coração esqueceu-se, na cidade, de fechar solidamente as portas da casa, exercendo sobre os filhos uma vigilância constante e rigorosa. Jovens e ambiciosos, era possível que os rapazes e, mesmo, as raparigas, gostassem de divertir-se, de passear, de espairecer. E o resultado dessa liberalidade paterna foi imediato: os filhos e filhas passavam a noite fora de casa, atentando contra os bons costumes, com grande escândalo do ancião, que nunca pensara, em sua vida, em semelhante vergonha para sua velhice.

Horrorizado com tudo aquilo, resolveu o velho remediar o mal, regressando, com a família, para as suas propriedades, no alto sertão. E na hora da partida, reuniu os filhos, chamando-os, um por um:

- Esperança?

- Pronto! - respondeu a moça.

- Coragem?

- Presente!

- Amor?

- Presente!

E assim chamou, obtendo resposta, e metendo-os no trem, a Fé, a Amizade, a Caridade e o Pudor. Chegada, porém, a vez dos dois mais velhos, gritou:

- Orgulho?

Ninguém respondeu.

- Hipocrisia?

O mesmo silêncio. Aflito, o pobre pai procurou-os em torno, chamando-os aos gritos. E foi debalde. Nesse instante, o trem apitou, anunciando a saída. O ancião correu, e tomou o carro.

Momentos depois o trem partia, levando para o interior do país a Esperança, a Amizade, o Amor, a Coragem, a Fé, a Caridade e o Pudor, e deixando na cidade, apenas, o Orgulho e a Hipocrisia.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Márcia Jaber (Canteiro de Trovas)


A Virgem de Nazaré,
faz, o Anjo , a Anunciação
e o Seu ser pleno de fé
traz ao mundo a Redenção.
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Bebe a dose da saideira,
não joga nada no canto...
Rolou pela ribanceira
e pôs a culpa no santo.
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Com muito orgulho, a gordinha,
diz, ao medir a cintura,
não estar fora da linha,
o que sobra é gostosura.
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É de Deus, o Filho eleito
e no amor que Lhe permeia,
empatia, em Seu conceito,
é doar- se à dor alheia.
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Em silêncio, busco o amparo
da prece muda do ser,
para as dores, que não raro,
pastoreiam meu viver.
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Frente à fome e adversidade,
atormentadas, as mães,
fazem, com criatividade
os seus milagres dos pães.
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Gentil, tua mão inclina
ao irmão fraco e doente:
empatia é luz Divina
brilhando dentro da gente.
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Lembrança, terna memória
da vida que segue em frente,
passou no rumo da história
mas vive dentro da gente.
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Lute contra o gesto vil
de quem, na conduta emana
o seu preconceito hostil
contra a diferença humana.
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Minha tapera, a viola
e essa morena querida,
é tudo que mais consola
um seresteiro na vida.
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Mundo hodierno, sem afeto,
de mil prédios e espigões...
Nesta selva de concreto,
proliferam solidões.
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Na sombra do preconceito,
se esconde a mediocridade
de quem, sem nenhum respeito,
nega ao irmão a igualdade.
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O batom no colarinho
selou sentença fatal:
na gaiola, o passarinho,
de castigo até o Natal!
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O coração, triste poeta,
compõe quimeras sutis,
deixando- me a vida inquieta
com sonhos que eu não refiz.
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Por mais que o mundo procure
e se esforce a ciência,
não há vacina que cure
a inveja e a maledicência.
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Pura humildade há nos gestos
de quem, dentre a luta e a dor,
vive de sobras e restos
sem perder a luz do amor.
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Só lembranças na memória
de passados tão presentes...
E a saudade é uma notória
romaria dos ausentes.
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Sou refém da pandemia,
em casa, trancafiado
e até virei, quem diria,
um marido apaixonado!
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Terno e puro em seu clamor,
ele sempre impõe respeito,
pois que, não cabe no amor
modo algum de preconceito.
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Vive a vida sem viver
quem, covarde der guarida
ao medo de se atrever
nos desafios da vida.
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Você diz não me querer,
que já sou caso passado,
porém, não pode me ver,
me beija qual namorado.

Fonte:
Messias da Rocha (org.). Múltiplas palavras vol. III. Juiz de Fora/MG: Ed. dos Autores, 2022.
Enviado por Lucília A. T. Decarli

Machado de Assis (O contrato)

Quem quiser celebrar um consórcio, examine primeiro as condições, depois as forças próprias, e, finalmente, faça um cálculo de probabilidades. Foi o que não cumpriram estas duas meninas de colégio, cuja história vou contar em três folhas de almaço. Eram amigas, e não se conheciam antes. Conheceram-se ali, simpatizaram uma com a outra, e travaram uma dessas amizades que resistem aos anos, e são muita vez a melhor recordação do passado. Josefa tinha mais um ano que Laura; era a diferença. No mais as mesmas. Igual estatura, igual índole, iguais olhos e igual nascimento. Eram filhas de funcionários públicos, ambas dispondo de um certo legado, que lhes deixara o padrinho. Para que a semelhança seja completa, o padrinho era o mesmo, um certo Comendador Brás, capitalista.
 
Com tal ajuste de condições e circunstâncias, não precisavam mais nada para serem amigas. O colégio ligou-as desde tenros anos. No fim de poucos meses de frequência, eram as mais unidas criaturas de todo ele, a ponto de causar inveja às outras, e até desconfiança, porque como cochichavam muita vez sozinhas, as outras imaginavam que diziam mal das companheiras. Naturalmente, as relações continuaram cá fora, durante o colégio, e as famílias vieram a ligar-se, graças às meninas. Não digo nada das famílias, porque não é o principal do escrito, e eu prometi escrever isto em três folhas de almaço; basta saber que tinham ainda pai e mãe. Um dia, no colégio, contavam elas onze e doze anos, lembrou-se Laura de propor à outra, adivinhem o quê? Vamos ver se são capazes de adivinhar o que foi. Falavam do casamento de uma prima de Josefa, e que há de lembrar a outra?
 
— Vamos fazer um contrato?
 
— Que é?
 
— Mas diga se você quer...
 
— Mas se eu não sei o que é?
 
— Vamos fazer um contrato: — casar no mesmo dia, na mesma igreja...
 
— Valeu! Nem você casa primeiro nem eu, mas há de ser no mesmo dia.
 
— Justamente.
 
Bem pouco valor teria este convênio, celebrado aos onze anos, no jardim do colégio, se ficasse naquilo, mas não ficou. Elas foram crescendo e aludindo a ele. Antes dos treze anos já o tinham ratificado sete ou oito vezes. Aos quinze, aos dezesseis, aos dezessete tornavam às cláusulas, com uma certa insistência que era tanto da amizade que as unia como do próprio objeto da conversação, que deleita naturalmente os corações de dezessete anos. Daí um efeito certo. Não só a conversação as ia obrigando uma para a outra como consigo mesmas. Aos dezoito anos, cada uma delas tinha aquele acordo infantil como um preceito religioso.
 
Não digo se elas andavam ansiosas de cumpri-lo, porque uma tal disposição de ânimo pertence ao número das coisas prováveis e quase certas; de maneira que, no espírito do leitor, podemos crer que é uma questão vencida. Restava só que aparecessem os noivos, e eles não apareciam; mas, aos dezenove anos é fácil esperar, e elas esperavam. No entanto, andavam sempre juntas, iam juntas ao teatro, aos bailes, aos passeios; Josefa ia passar com Laura oito dias, quinze dias; Laura ia depois passá-los com Josefa. Dormiam juntas. Tinham confidências íntimas; uma referia à outra a impressão que lhe causara um certo bigode, e ouvia a narração que a outra lhe fazia do mundo de coisas que achara em tais ou tais olhos masculinos. Deste modo punham em comum as impressões e partiam entre si o fruto da experiência.
 
Um dia, um dos tais bigodes deteve-se alguns instantes, espetou as guias no coração de Josefa, que desfaleceu, e não era para menos; quero dizer, deixou-se apaixonar. Pela comoção dela ao contar o caso, pareceu a Laura que era uma impressão mais profunda e duradoura do que as do costume. Com efeito, o bigode voltou com as guias ainda mais agudas, e deu outro golpe ainda maior que o primeiro. Laura recebeu a amiga, beijou-lhe as feridas, talvez com a idéia de sorver o mal com o sangue, e animou-a muito a pedir ao céu muitos mais golpes como aquele.
 
— Eu cá, acrescentou ela; quero ver se me acontece a mesma coisa...
 
— Com o Caetano?
 
— Qual Caetano!
 
— Outro?
 
— Outro, sim, senhora.
 
— Ingrata! Mas você não me disse nada?
 
— Como, se é fresquinho de ontem?
 
— Quem é?
 
Laura contou à outra o encontro de uns certos olhos pretos, muito bonitos, mas um tanto distraídos, pertencentes a um corpo muito elegante, e tudo junto fazendo um bacharel. Estava encantada; não sonhava outra coisa. Josefa (falemos a verdade) não ouviu nada do que a amiga lhe dissera; pôs os olhos no bigode assassino e deixou-a falar. No fim disse distintamente:
 
— Muito bem.
 
— De maneira que pode ser que em breve estejamos cumprindo o nosso contrato. No mesmo dia, na mesma igreja...
 
— Justamente, murmurou Josefa.
 
A outra dentro de poucos dias perdeu a confiança nos olhos negros. Ou eles não tinham pensado nela, ou eram distraídos, ou volúveis. A verdade é que Laura tirou-os do pensamento, e espreitou outros. Não os achou logo; mas os primeiros que achou, prendeu-os bem, e cuidou que eram para toda a eternidade; a prova de que era ilusão é que, tendo eles de ir à Europa, em comissão do governo, não choraram uma lágrima de saudade; Laura entendeu trocá-los por outros, e raros, dois olhos azuis muito bonitos. Estes, sim, eram dóceis, fiéis, amigos e prometiam ir até o fim, se a doença os não colhe, — uma tuberculose galopante que os levou aos Campos do Jordão, e dali ao cemitério.
 
Em tudo isso, gastou a moça uns seis meses. Durante o mesmo prazo, a amiga não mudou de bigode, trocou muitas cartas com ele, ele relacionou-se na casa, e ninguém ignorava mais que entre ambos existia um laço íntimo. O bigode perguntou-lhe muita vez se lhe dava autorização de a pedir, ao que Josefa respondia que não, que esperasse um pouco.
 
— Mas esperar, o quê? inquiria ele, sem entender nada.
 
— Uma coisa.
 
Sabemos o que era a coisa; era o convênio colegial. Josefa ia contar à amiga as impaciências do namorado, e dizia-lhe rindo:
 
— Você apresse-se...
 
Laura apressava-se. Olhava para a direita, para a esquerda, mas não via nada, e o tempo ia passando seis, sete, oito meses. No fim de oito meses, Josefa estava impaciente; tinha gasto cinquenta dias a dizer ao namorado que esperasse, e a outra não adiantou coisa nenhuma. Erro de Josefa; a outra adiantou alguma coisa. No meio daquele tempo apareceu uma gravata no horizonte com todos os visos conjugais. Laura confiou a notícia à amiga, que exultou muito ou mais que ela; mostrou-lhe a gravata, e Josefa aprovou-a, tanto pela cor, como pelo laço, que era uma perfeição.
 
— Havemos de ser dois casais...
 
— Acaba: dois casais lindos.
 
— Eu ia dizer lindíssimos.
 
E riam ambas. Uma tratava de conter as impaciências do bigode, outra de animar o acanhamento da gravata, uma das mais tímidas gravatas que tem andado por este mundo. Não se atrevia a nada, ou atrevia-se pouco. Josefa esperou, esperou, cansou de esperar; parecia-lhe brincadeira de criança; mandou a outra ao diabo, arrependeu-se do convênio, achou-o estúpido, tolo, coisa de criança; esfriou com a amiga, brigou com ela por causa de uma fita ou de um chapéu; um mês depois estava casada.

Fonte:
Publicado originalmente em Estação, em 29/02/1884. 
Disponível em domínio público