sábado, 25 de junho de 2016

Contos Populares Portugueses (Os Dois Amigos)

Dois casais de lavradores, muito amigos, tiveram dois filhos nascidos no mesmo dia - uma das crianças era muito boa, a outra tinha um caráter muito mau. No entanto, eram ambos amigos. Entraram no mesmo ano ao serviço militar.

O mau, depois de estar na praça seis meses, começou a desinquietar o bom para ambos desertarem. Este quis dissuadir o amigo e afinal acedeu, e ambos desertaram mesmo. Levavam nas marmitas o rancho do dia.

Depois de andarem muito tempo perdidos pelos matos, foram descansar sob uma árvore. O mancebo bom tirou da sua marmita o rancho e ambos o comeram a meias. Adormeceram depois, acordando já tarde, e seguiram o seu caminho, fugindo sempre das estradas, com receio de serem presos.

No dia seguinte, quase ao sol-posto, foram descansar sob uma árvore. O mancebo mau tirou da sua marmita o rancho e pôs-se a comê-lo sozinho.

- Não me dás do teu rancho?

- Não - respondeu o mau.

- Mas eu dividi o meu rancho contigo.

- E eu dou-te um bocado de pão se me deixares tirar-te um olho com a ponta da minha navalha.

Estranhou o companheiro tal proposta, mas, como tinha muita fome, deixou tirar um olho a troco de uma fatia de pão. Mais logo deixou tirar o outro por idêntico motivo. E o mariola, depois de ver o companheiro cego, desamparou-o.

O infeliz ficou por algum tempo junto da árvore; depois, porém sentindo uivar as feras, aproximou-se do tronco e trepou pela árvore a esconder-se por entre as folhas. À meia-noite ouviu o galopar de um cavalo. Era um sujeito que vinha montado e parou sob a árvore. Esperou algum tempo até que chegaram outros indivíduos também montados.

- Demoraram-se - disse o primeiro.

- É verdade - respondeu um dos que acabavam de chegar. 

- Estive numa cidade e vi que os seus habitantes andam desesperados por falta de água. Temos dali boa colheita.

- E todavia passa ao lado da Capela de S. Sebastião um rio de água esplêndida - observou um terceiro.

- Quanto a mim - disse o quarto - venho satisfeito, pois o rei de certo país está cego por virtude da lepra que lhe corrói o corpo.

- Bem sei - disse o primeiro - e mal sabe ele que estamos à sombra de uma árvore cujas folhas não só curam todas as doenças, mas têm a virtude de dar olhos a quem os perdeu.

- Fazes mal em falar alto! Às vezes, as moitas têm olhos e as pedras têm ouvidos.

- Neste deserto não pode estar ninguém - observou o primeiro.
E todos se foram embora.

Logo que amanheceu, desceu o infeliz da árvore, colheu umas folhas, picou-as em duas pedras e aplicou o sumo sobre os olhos. Ficou completamente curado. Colheu mais folhas e guardou-as no lenço.

Partiu para a terra onde havia falta de água e fez o milagre de lhe dar uma boa nascente. Saiu dali para o país onde reinava o rei leproso e curou-o da doença, restituindo-lhe também a vista.

Se no primeiro sítio o compensaram com muito dinheiro, no segundo o rei deu-lhe a filha em casamento.

Andava o genro do rei visitando as suas tropas, quando viu o seu desalmado companheiro alistado em um dos batalhões do reino. Mandou-o ir ao palácio e deu-se a conhecer. Ficou o malvado aflito, mas o príncipe disse-lhe que não lhe tencionava fazer mal algum, apesar da infâmia que ele praticara.

- Mas - disse o mau - como foi que Vossa Alteza readquiriu a vista e veio a casar com a princesa?

O mancebo contou-lhe toda a verdade, omitindo o incidente relativo ao descobrimento da água.

Nessa mesma noite, desertou o soldado e foi logo postar-se sob a árvore milagrosa.

Esperou a meia-noite. Eis senão quando ouve ele o tropel de cavalos. Eram diversos cavaleiros que vinham muito irritados. Chegaram ao pé da árvore e disse um:

- Quando tu respondeste que por detrás da Capela de S. Sebastião corria um rio de água esplêndida e que a lepra do rei se curava com as folhas desta árvore, fiz logo sentir a inconveniência da tua resposta, dizendo-te que muitas vezes as moitas têm olhos e as pedras ouvidos. Infelizmente, alguém te ouviu!

- E talvez - respondeu o increpado - que hoje aqui esteja de novo a espiar-nos!

Foram acima da árvore e encontraram o soldado. Fizeram-no em pedaços.

Fonte:
Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.