sábado, 22 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 190


Rubem Braga (O Telefone)


Honrado Senhor Diretor da Companhia Telefônica:

Quem vos escreve é um desses desagradáveis sujeitos chamados assinantes; e do tipo mais baixo: dos que atingiram essa qualidade depois de uma longa espera na fila.

Não venho, senhor, reclamar nenhum direito. Li o vosso Regulamento e sei que não tenho direito a coisa alguma, a não ser a pagar a conta. Esse Regulamento, impresso na página  1 de vossa interessante Lista (que é meu livro de cabeceira), é mesmo uma leitura que recomendo a todas as almas cristãs que tenham, entretanto, alguma propensão para o orgulho ou soberba. Ele nos ensina a ser humildes; ele nos mostra o quanto nós, assinantes, somos desprezíveis e fracos.

Aconteceu por exemplo, senhor, que  outro dia um velho amigo deu-me a honra e o extraordinário prazer de me fazer uma visita. Tomamos uma modesta cerveja e  falamos  de coisas antigas - mulheres que brilharam outrora, madrugadas dantanho, flores doutras primaveras. Ia a conversa quente e cordial ainda que algo melancólica, tal soem ser  as parolas vadias de cupinchas velhos - quando o telefone tocou. Atendi. Era alguém que queria falar ao meu amigo. Um assinante mais leviano teria chamado o amigo para falar. Sou, entretanto, um severo respeitador do Regulamento; em vista do que, comuniquei ao meu amigo que alguém lhe queria falar, o que infelizmente eu não podia permitir;  estava, entretanto, disposto a tomar e transmitir qualquer recado. Irritou-se  o amigo, mas fiquei inflexível, mostrando-lhe o artigo 2 do Regulamento, segundo o qual o aparelho instalado em minha casa só pode ser usado "pelo assinante, pessoas de sua família, seus  representantes ou empregados".

Devo dizer que perdi o amigo, mas salvei o Respeito ao Regulamento; "dura lex sed lex"; eu sou assim. Sei também (artigo 4) que se minha casa pegar fogo terei de vos pagar o valor do aparelho - mesmo que esse incêndio (artigo 9) for motivado por algum circuito  organizado pelo empregado da Companhia com o material da Companhia. Sei  finalmente (artigo 11) que se, exausto de telefonar do botequim da esquina a essa distinta Companhia para dizer que meu aparelho não funciona, eu vos chamar e vos disser, com lealdade e com as únicas expressões adequadas, o meu pensamento, ficarei eternamente sem telefone, pois "o uso de linguagem obscena constituirá motivo suficiente para a  Companhia desligar e retirar o aparelho".

Enfim, senhor, eu sei tudo; que não tenho direito a nada, que não valho nada, não sou nada. Há dois dias meu telefone não fala, nem ouve, nem toca, nem ruge, nem muge. Isso me trouxe, é certo, um certo sossego ao lar. Porém amo, senhor, a voz humana; sou uma  dessas criaturas tristes e sonhadoras que passa a vida esperando que de repente a Rita Haywotth me telefone para dizer que o Ali Khan morreu e ela está ansiosa para gastar com o velho Braga o dinheiro de sua herança, pois me acha muito simpático e  insinuante, e confessa que em Paris muitas vezes se escondeu em uma loja defronte do meu hotel só para me ver sair.

Confesso que não acho tal coisa provável: o Ali Khan ainda é moço, e Rita não tem o meu número. Mas é sempre doloroso pensar que se tal coisa acontecesse eu jamais saberia -  porque meu aparelho não funciona. Pensai nisso, senhor: pensai em todo o potencial  tremendo de perspectivas azuis que morre diante de um telefone que dá sempre sinal de ocupado cuém cuém cuém - quando na verdade está quedo e mudo na minha modesta sala de jantar. Falar nisso, vou comer;  são  horas.  Vou  comer contemplando tristemente  o aparelho silencioso, essa esfinge de matéria plástica é na verdade algo que supera o  rádio e a  elevisão, pois transmite não sons nem imagens, mas sonhos errantes no ar.

Mas batem à porta. Levanto o escuro garfo do magro bife, e abro. Céus, é um empregado da Companhia! Estremeço de emoção. Mas ele me estende um papel: é apenas o cobrador. Volto ao bife, curvo a cabeça, mastigo devagar, como se estivesse mastigando  meus  pensamentos, a longa tristeza de minha humilde vida, as decepções e remorsos. O telefone continuará mudo; não importa: ao menos é certo, senhor, que não vos esquecestes de mim.
 
Fonte:
Rubem Braga.A Borboleta Amarela. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956.

Doce Aconchego das Trovas n. 7


A década mais comprida
da vida de uma mulher
vai dos vinte e nove aos trinta...
e lá nem chega sequer!
ALOÍSIO DE ANDRADE
*
Curou-lhe o mal, sem demora,
o bom doutor quando disse:
— Nada de grave, senhora,
são sintomas de velhice!
ANTÔNIO TORTATO*
Esta velha do ar absorto,
que quer ser adolescente,
debutou quando o Mar Morto
ainda estava doente...
APARÍCIO FERNANDES
*
Hoje em dia, muita gente
diz entender de pintura.
Mas compra quadros somente
pelo valor da moldura...
ARCHIMIMO LAPAGESSE
*
A mulher, além de terna,
faz tudo com perfeição,
que até nos passando a perna
tem a nossa gratidão…
BELMIRO BRAGA
*
Eles não querem, na certa,
que eu coma, de modo algum,
O esculápio escreve: dieta!
E o padre manda: jejum!
CALIXTO DE MAGALHAES
*
Pão-duro a mais não poder,
o meu compadre Zulmiro,
em vez de dar, quis vender
o seu último suspiro...
CARLOS GUIMARÃES
*
Deu a tantos seu carinho
que no enlace, em confusão,
deu o sim para o padrinho
e o beijo no sacristão!
CAROLINA RAMOS
*
Quando te vejo passar,
vou pensando, sem querer,
que não posso nem provar
o que a terra vai comer...
COLBERT RANGEL COELHO
*
Durante o racionamento,
nada de luz... nem de vela…
Na confusão do momento,
beijei a sogra... e não "ela"!
FRANCISCO MADUREIRA
*
— "Eu sou rica", ela falava.
"Tenho rendas, investi."
— De tal modo se sentava,
que por pouco não as vi…
ILDEFONSO DE PAULA
*
És mesmo uma coisa rara,
que a estética repele,
pois que tu tens nessa cara
muito mais rugas que pele...
J. DIAS DE MORAES
*
A rescender mil perfumes,
o transviado, em trejeitos,
é um tipo da maus costumes,
mas de costumes bem feitos...
JOÃO RANGEL COELHO
*
Eu fui ao encontro tão crente,
por seu tom de voz tão terno...
E voltei de lá descrente:
vá ser feia assim no inferno!
JOAQUIM MACEDO FERNANDES
*
Morte, delicadamente,
faço-lhe um pedido justo:
não venha, assim de repente,
eu posso morrer de susto...
JOAQUIM PADILHA VAZ
*
Quando o Godofredo sai,
gorducho como ninguém,
não se sabe se ele vai,
não se sabe se ele vem...
JORGE ROCHA
*
Jurou jamais ver bebida
e agora o pobre coitado,
durante o resto da vida,
só bebe de olho fechado.
JOSÉ GOMES PIMENTA
*
Veja você se me explica
o que é justiça. — Pois não!
É aquilo que crucifica
um justo e solta um ladrão...
JOSÉ NOGUEIRA DA COSTA
*
Toda a desgraça do Alfredo,
que se encontra na prisão,
foi descobrir um segredo:
— o do cofre do patrão!
JOUBERT DE ARAÚJO SILVA*
Desculpe-me quem puder,
mas a História se enganou:
depois que fez a mulher,
nunca mais Deus descansou!...
MAGDALENA LÉA*
No nosso andar compassado,
dávamos voltas na praça.
Casalzinho enamorado:
eu sem jeito e tu sem graça...
MARIO PEIXOTO
*
É muito linda e singela
a tua blusa bordada.
Mas, para mim, minha bela,
ficas mais bela... sem nada!
NELSON FERREIRA DA LUZ
*
De tanto matar desejos,
hoje beijas bem melhor.
Pena é que agora os teus beijos
são beijos dados de cor...
PAULO EMÍLIO PINTO
*
Desce à campa a sogra má,
e explica um verme sereno:
— Hoje, irmãos, jantar não há,
porque este prato é veneno!
P. DE PETRUS

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. Rio de Janeiro/GB: Artenova, 1972.

Dan Brown (Inferno)


Inferno é o sexto livro de ficção do escritor dos Estados Unidos Dan Brown e o quarto a ser protagonizado pelo simbologista Robert Langdon. Segundo divulgado, o livro foi lançado em 14 de maio de 2013 pela Doubleday, em 20 de maio, no Brasil e em 10 de Julho em Portugal pela Bertrand Editora.

Em 15 de janeiro de 2013, Dan Brown divulgou o título do livro em seu site, após avisar os seus leitores para ajudar a "revelar" um mosaico digital com mensagens no Twitter e no Facebook.

Conforme divulgado pela editora, o livro é ambientado na Itália e em um dos centros da história mais duradoura e misterioso: a obra literária Inferno de Dante Alighieri.

No Langdon de volta para o coração Inferno... seguimos Robert da Europa, onde ele se entrelaça em um mistério com ramificações globais... ligado aos detalhes sinistros e verdadeiramente fascinantes da obra magistral de Dante. ”

O professor Robert Langdon, da Universidade Harvard, desperta em uma cama de hospital com um ferimento na cabeça e sem conseguir se lembrar do que aconteceu nos últimos dias. Ao olhar pela janela, descobre que está em Florença, na Itália. Logo, os médicos Sienna Brooks e Marconi entram em seu quarto e o explicam que ele sofreu uma concussão ao levar um tiro de raspão e deu entrada no pronto-socorro do hospital por conta própria.

Repentinamente, Vayentha, uma assassina profissional que havia perseguido Robert anteriormente, invade seu quarto, atira no médico e tenta chegar até ele, que é agarrado por Sienna e retirado do hospital às pressas.

Eles fogem para o apartamento da médica, onde Robert descobre que Sienna é uma superdotada. Mais tarde, ele encontra um cilindro em um bolso secreto de seu paletó (tão secreto que nem ele mesmo sabia que existia). O cilindro contém o símbolo de risco biológico. Robert decide então ligar para o consulado estadunidense, onde descobre que estão a sua procura. Instruído por Sienna, ele dá o endereço do prédio à frente, para se certificar de que realmente seu consulado enviará funcionários da representação diplomática. Contudo, é Vayentha quem chega ao local, levando Robert e Sienna a acreditarem que o governo estadunidense quer Robert morto.

Robert decide então abrir o cilindro e encontra um cilindro ósseo medieval dotado de um projetor laser que projeta uma versão levemente modificada do Mapa do Inferno de Sandro Botticelli. Na parte de baixo da ilustração, há uma inscrição onde pode-se ler: verità è visibile soolo attraverso gli occhi della morte (a verdade só pode ser vislumbrada através dos olhos da morte). Repentinamente, soldados de preto invadem o prédio de Sienna, que consegue escapar por pouco com Robert. Ambos seguem em direção à Cidade Velha, acreditando que o cilindro está relacionado a Dante Alighieri. Contudo, eles descobrem que a polícia de Florença e os carabinieri fecharam as pontes e procuram por eles. Eles correm para uma obra perto dos Jardins Boboli onde Robert acende o projetor novamente e percebe que dez letras, que formam a palavra "CATROVACER", foram adicionas a cada uma das dez camadas do Inferno, e que as camadas foram rearranjadas. Ao organizá-las de modo a ficarem como na pintura original, Robert chega às palavras "CERCA TROVA" - as mesmas palavras na pintura A Batalha de Marciano de Vasari, localizado no Palazzo Vecchio. Robert e Sienna escapam dos soldados e vão à Cidade Velha usando o Corredor de Vasari.

Robert observa A Batalha de Marciano tentando encontrar respostas. Uma curadora o encontra e o leva para a diretora do museu, Marta Alvarez. Marta havia encontrado Robert e Ignazio Busoni, diretor da Santa Maria del Fiore na noite anterior e lhes mostrado a máscara mortuária de Dante, mas Robert, devido à sua amnésia, não lembrava de nada. Fingindo se lembrar do encontro, Robert pede para ser levado novamente ao local, mas a máscara desapareceu. Checando as câmeras de segurança, eles vêem Robert e
Ignazio tomando a máscara. Os seguranças do museu dominam Robert enquanto Marta liga para Ignazio, mas é informada por sua secretária de que ele sofreu um infarto. A secretária pede para falar com Robert e reproduz um recado que Ignazio deixou antes de morrer: "Os portões estão abertos para você, mas não demore. Paraíso 25."

Robert e Sienna fogem dos guardas, mas os soldados chegam. Eles escapam pelo sótão da Apoteose de Cosimo I. Vayentha encurrala os dois, mas Sienna e empurra para sua morte metros abaixo. Roberto conecta "Paraíso 25" com o Batistério de São João, onde ele e Sienna encontram a máscara mortuária de Dante com uma charada deixada por seu atual dono, um geneticista bilionário chamado Bertrand Zobrist. Um homem chamado Jonathan Ferris, que esconde um ferimento em seu peito, aparece e afirma ser da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ele ajuda os dois a fugirem dos soldados. A charada é uma estrofe do Inferno de Dante, que os leva até Veneza, onde Jonathan sofre uma parada cardíaca e Robert é capturado por um grupo de soldados. Sienna consegue escapar .

Robert é levado a Elizabeth Sinskey, diretora-geral da OMS, e finalmente descobre o que está acontecendo. Bertrand, que cometeu suicídio uma semana antes, era um cientista transumanista radical que havia desenvolvido uma praga biológica que mataria boa parte da população da Terra para resolver o problema da superpopulação. Elizabeth violou o cofre particular de Bertrand, encontrou o cilindro e convocou Robert até Florença para ver se ele conseguia entender as pistas. Durante o encontro, Elizabeth costurou um bolso secreto em seu paletó e colocou o cilindro lá dentro para deixá-lo seguro. Contudo, Robert parou de se comunicar com Elizabeth depois de seu encontro com Marta e Ignazio, e a OMS passou a desconfiar dele. Os soldados que perseguiam Robert eram na verdade uma equipe de emergência da OMS e nunca tiveram a intenção de matá-lo.

Quanto a Bertrand, este havia pago uma organização secreta (chamada simplesmente de "Consórcio") para que o deixassem isolado e incomunicável por algum tempo enquanto desenvolvia a praga, e também para que protegessem o cilindro até uma certa data. Ele também deixou um vídeo perturbador com eles, que deveria ser enviado a toda a imprensa mundial no dia seguinte aos eventos do livro. No vídeo, uma espécie de balão pode ser visto flutuando em uma caverna subaquática, com uma substância escura dentro.

Quando Elizabeth roubou o cilindro, o Consórcio se viu forçado a proteger o que quer que ele apontasse. Eles sequestraram Robert após o encontro com Marta e Ignazio, mas ele ainda não havia desvendado todas as charadas, então, eles o injetaram uma dose de benzodiazepina para forçar a amnésia. Criaram também um falso ferimento na cabeça e uma encenação para forçar Robert a encontrar mais respostas. Sienna, Vayentha, Jonathan e até o suposto atendente do consulado estadunidense eram todos atores trabalhando para o Consórcio, sendo que Jonathan era também o médico supostamente assassinado no início da história. O ferimento em seu peito foi resultado de uma explosão mal calculada para simular o tiro que supostamente recebeu de Vayentha. O líder do Consórcio, chamado simplesmente de "Diretor", ao descobrir o plano bioterrorista, se vê forçado a se submeter à OMS para deter a praga.

Descobre-se que a substância contida no balão do vídeo é uma praga prestes a ser liberada, e Robert descobre que o local onde a praga está fica abaixo da Santa Sofia em Istambul, onde Enrico Dandolo está enterrado. Sienna, que estava desaparecida, também segue para lá, onde é perseguida por Robert, o Consórcio e os agentes da OMS, que descobrem que ela na verdade trabalhava por Bertrand, sua paixão secreta. Robert e Christoph Brüder, chefe da equipe da OMS que também é ligada ao Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças, descem até a Cisterna da Basílica, e descobrem que Sienna já está lá. O balão que continha a praga, feito de uma material hidrossolúvel, já havia se desfeito uma semana antes, e todos descobrem que, na verdade, a praga já estava espalhada pelo mundo todo, já que o local é muito visitado por turistas de vários países. Para fugir, Sienna cria um tumulto ao gritar que o local está pegando fogo.

Sienna revela que nunca quis liberar a praga, mas sim detê-la. Contudo, ela não confiava na OMS, pois achava que, uma vez que as amostras de vírus fossem levadas por eles, elas acabariam caindo nas mãos de governos interessados em criar armas de destruição em massa. O Diretor tenta fugir do domínio da OMS com a ajuda de policiais disfarçados, mas acaba preso pela polícia de verdade mais tarde. Sienna decide ajudar a OMS a lidar com a situação em troca de anistia.

A praga criada por Bertrand, na verdade, é um vírus vetor que infectará todas as pessoas da Terra, mas terá efeito em apenas 1/3 delas, selecionadas aleatoriamente, causando uma modificação no DNA que provoca a infertilidade. Desta forma, a humanidade é forçada a entrar em uma nova era, pois qualquer tentativa de reverter o vírus pode provocar efeitos genéticos colaterais perigosos.

Fonte:
Wikipedia

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 189


Contos e Lendas do Mundo (Inglaterra: O Rei dos Gatos)


Numa tarde de Inverno, a mulher do coveiro estava sentada junto da lareira, com Old Tom, o seu grande gato preto, ao lado, à espera, semi-adormecidos, de que o dono da casa regressasse. Por fim, entrou precipitadamente e bradou:

- Quem é Tommy Tildrum?

Estava tão nervoso, que a mulher e o gato o olharam fixamente, empenhados em averiguar o que tinha.

- Que te aconteceu? - inquiriu ela. - Porque estás tão interessado nisso?

- Devias ter visto o que me sucedeu! Preparava-me para abrir a sepultura do velho Fordyce e creio que adormeci. O caso é que acordei ao ouvir o miar de um gato.

- Miau - fez Old Tom.

- Sim, exatamente desse modo! Espreitei por cima da sepultura, e que te parece que vi?

- Como queres que o saiba? - replicou a esposa.

- Imagina nove gatos pretos, todos iguais ao nosso Old Tom, com uma mancha branca no peito. E que achas que transportavam? Uma pequena urna, com uma mortalha de veludo preto por cima, e, sobre ela, uma coroa de ouro, enquanto, a cada passo que davam, gritavam em coro: "Miau!"

– Miau! - ecoou Old Tom.

- Sim, exatamente desse modo! - afirmou o coveiro. - A medida que se aproximavam, pude vê-los melhor, pois os olhos emitiam um clarão verde e fixavam-se em mim. Oito deles transportavam a urna, precedidos pelo maior, que caminhava com uma dignidade impressionante... Repara como o nosso Old Tom me olha! Até parece que entende tudo o que digo.

- Continua, continua - urgiu a mulher. - Não te preocupes com ele.

- Como dizia, avançavam com lentidão e aprumo, continuando a gritar "Miau!" a cada passo que davam.

- Miau! - tornou a repetir Old Tom.

- Sim, exatamente nesse tom, até que chegaram ao local, colocaram-se em volta da sepultura de Fordyce, mesmo diante de mim, e ficaram a olhar-me em silêncio... Mas repara no Old Tom, que não afasta a vista de mim, como eles!

- Continua, continua - estimulou a mulher. - Não te preocupes com ele.

- Onde é que ia?... Ah, já sei! Olhavam-me todos fixamente. Por fim, o que vinha à frente adiantou-se um passo e, em voz débil, juro-te que isto é verdade, disse-me: "Comunica a Tom Tildrum que Tim Toldrum morreu." Foi por isso que te perguntei se sabias quem era Tom Tildrum. De contrário, como lhe posso comunicar que Tim Toldrum morreu?

- Repara no Old Tom! - exclamou a mulher.

Ficaram ambos embasbacados, quando o gato arqueou o corpo, eriçou o pelo e bradou:

- O velho Tim morreu? Então, passei a ser o rei dos gatos!

E escapou-se velozmente pela chaminé, para não tornar a ser visto.

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999.

Miguel Reale (Poemas Escolhidos)


A ASTRONOMIA

Perdido na harmonia azul do céu
vive o astrônomo as linhas estelares
e vai aos poucos descerrando o véu
dos planetas e séquitos lunares.

Pontos negros ou pontos luminosos
são plataformas de outras descobertas,
sempre o contraste entre as desertas
regiões de luz e os esplendorosos

astros que nas galáxias vão traçando
a trajetória de infinitas formas,
que a luz do cálculo reduz a normas,

No céu as ciências vão se reencontrando,
e quanto mais se lançam no infinito
mais se converte a realidade em mito.

VIDA OCULTA

A carta mais bela que recebi não foi escrita
e o mais suave beijo o recusado.
Só há esperança se o caminho finda;
sem pétalas a rosa é mais amada.

Sei que este dia será melhor que ontem
mas o de ontem será melhor um dia.

A vida é um saber nunca sabido
fora do tempo em formação ainda,
como a onda que ao longe nos atrai
e nunca é a mesma que nos chega à praia.

Fecho os olhos e enxergo,
enxergo de olhos fechados
mundos ocultos que à luz não via,
e minhas são as sombras desses mundos
que dançam como duendes desgarrados.

ETERNA JUVENTUDE

Quando em meus olhos os teus olhos pousas
vejo-te jovem como via outrora:
luz interior não é como são cousas
pulverizadas pela mó das horas.

Amar é ver o mundo em transparência
iluminando o corpo que envelhece,
reconduzido o curso da existência
à fonte espiritual que não perece.

O nosso novo e antigo amor perdura
iluminado por uma luz tão pura
que, por mais que este mundo aziago mude,

sentiremos até o fim da vida
a velhice corpórea adormecida
no milagre de nossa juventude.

O ESPELHO

Embrenhei-me na selva dos sentidos
à procura de um espelho
que me ofertasse paz e poesia
em ninho de tempo oculto.

Espelho só meu
sem mancha ou distorções
puro brunido ensimesmado,
de ver-me todo num bater de pálpebra,
a realidade numa só figura.

Procurei-o na terra do sem-fim
remota e noturna
onde tudo o que há principia.
Procurei-o nos desvãos das matas,
oculto sob as pérolas do orvalho
no filete de água que murmura
antecipando o reboar do oceano.

Procurei-o no sol, nas nuvens,
no voo errante das aves
na terra gorda que tudo absorve,
nas teias, nos ninhos, nas colmeias.

E o espelho foi surgindo no meu peito
à medida da angústia e da procura,
espelho igual aos demais espelhos.

LUZ INTERIOR

Não de luz, mas de sombra são meus versos,
humildes desajustados,
como quem vem de longe e se arreceia
de inesperado encontro.

A sombra é luz filtrada esmaecida
homóloga à vida interior reflexa
manso fluir de águas profundas
numa réstia de musgo e pedras brancas.
Não é à plena luz do sol a pino
mas quando ele se quebra no horizonte
que o espírito perplexo se inclina
e vê na sombra o que a luz lhe esconde.

COLUNAS DO TEMPO

Ardem meus pés na turfa da existência,
pés doridos de avanços e recuos,
nem há como atenuar a dor intensa
que é látego de nervos e perguntas.

Sinto-me planta um plátano partido
pés fincados no chão,
estaca lavrada e fria
relegada à beira do caminho.

É o que resta da vida em labirinto
esgalhada em mil aspirações,
vida barroca incerta e retorcida
à sombra de arabescos e ouropéis.

Como as colunas dóricas perduram!
Esguias retilíneas intocáveis
em sua heráldica forma para o alto,
sem frisos ou volutas perturbando
a serena ascensão vertical.

Quem já se lembra dos antigos ritos
à luz do templo - templo eleusínio
na secreta unidade da semente
donde brotam vitórias e derrotas
que são vaidade e cruz da espécie humana?

É tarde, é muito tarde!
Nem há mais púlpito ou monge que o proclame
para que as horas voltem à sua fonte
na comunhão dos homens e dos deuses.

ASSIS

À clara luz do plenilúnio,
envolta no seu manto franciscano,
surgiu Assis ante meu olhos,
fonte de amor e de consolo humano.

Senti a mansidão do lobo
e a frescura da água em minha testa,
homens e coisas na unidade
espiritual da natureza em festa.

A muito custo reprimi o impulso
de me ajoelhar ao diálogo dos sinos
e me quedei, pálido de espanto,
não me ajoelhando com os peregrinos.

Não quis me ajoelhar naquela hora
que era a hora do amor e da piedade,
mas desde então vive de joelhos
minha alma insone em busca da Verdade.

Fontes:
Academia Brasileira de Letras
– Cláudio de Cápua (org.). Itinerário Poético II: coletânea. 1996.

Miguel Reale (1910 – 2006)


Miguel Reale, filho do médico italiano Biagio "Brás" Reale e de Felicidade Chiaradia, mineira de ascendência italiana nasceu em São Bento do Sapucaí/SP, a 6 de novembro de 1910. Brás Reale, que fora médico do Exército Italiano e clinicava em São Bento, resolve se mudar com a família para o Rio de Janeiro, então a Capital Federal. Lá, instalou farmácia e consultório. Certa noite, as ondas do mar invadiram a farmácia e destruiram tudo o que ali havia. Desanimado com o sucedido, Brás Reale se transferiu para a cidade de Itajubá, em Minas Gerais. Miguel Reale lá viveu até 1921. Em 1922, ingressou no Instituto Medio Dante Alighieri, em São Paulo, diplomando-se em 1929. Em 1930, Reale apoiou, como outros estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo, o golpe de Estado que alçou Getúlio Vargas ao poder.

Foi casado com Filomena "Nuce" Pucci por 63 anos, com quem teve os filhos Ebe, Lívia Maria e Miguel Júnior.

Concorreu à Assembleia Nacional Constituinte para a Constituição de 1934 e fundou o jornal "Ação", em 1937. Formou-se pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1934), onde foi professor catedrático (1941) e por duas vezes reitor eleito (1949 — 1950; 1969 — 1973).

Em 1969 foi nomeado pelo presidente Artur da Costa e Silva para a “Comissão de Alto Nível”, incumbida de rever a Constituição de 1967. Resultou desse trabalho parte do texto da Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, que consolidou o regime militar no Brasil.

Ocupou a cadeira 14 da Academia Brasileira de Letras, a partir de 16 de janeiro de 1975. Escreveu coluna quinzenal no jornal O Estado de S. Paulo, na qual tratou de questões filosóficas, jurídicas, políticas e sociais da atualidade.

Foi supervisor da comissão elaboradora do Código Civil brasileiro de 2002, cujo projeto foi posteriormente sancionado pelo presidente da República Fernando Henrique Cardoso, tornando-se a Lei nº 10.406 de 2002, novo Código Civil, que entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003.

Miguel Reale teve atuação de relevo no campo da filosofia, tendo sido um dos fundadores da Academia Brasileira de Filosofia e do Instituto de Filosofia Brasileira de Lisboa, Portugal. Foi organizador de sete Congressos Brasileiros de Filosofia (1950 a 2002) e do VIII Congresso Interamericano de Filosofia (Brasília, 1972), relator especial nos XII, XIII e XIV Congressos Mundiais de Filosofia (Veneza, 1958; Cidade do México, 1963; e Viena, 1968), conferencista especialmente convidado pela Federação Internacional de Sociedades Filosóficas para os XVI e XVIII Congressos Mundiais (Düsseldorf, Alemanha, 1978; e Brighton, Reino Unido, 1988), e organizador e presidente do Congresso Brasileiro de Filosofia Jurídica e Social (São Paulo, 1986, João Pessoa, 1988 e Paraíba, 1990).

    Advogado militante de 1934 a 2006, com a publicação de dezenas de pareceres e razões forenses.
    Consultor Jurídico da Presidência da Light - Serviços de Eletricidade S.A., posteriormente Eletropaulo – Eletricidade de São Paulo S.A., de 1979 até 2006.
    Membro do Conselho de Administração da Eletropaulo – Eletricidade de São Paulo S.A., de abril de 1981 a abril de 1985.
    Ex-vice-presidente da Fundação Armando Álvares Penteado.
    Ex-presidente da Fundação Moinho Santista.
    Catedrático de filosofia do direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1941); Professor Emérito da mesma Faculdade (1980)

Doutor honoris causa da Universidade de Gênova; Universidade de Coimbra; Universidade de Lisboa; Universidade Kennedy de Buenos Aires;Pontifícia Universidade Católica de Campinas (SP) e de Goiás; Universidade Federal do Paraná, Pernambuco, Goiás, Paraíba e Rio Grande do Sul; Universidade do Chile (Valparaíso); Faculdade de Direito de Caruaru (PE); Universidade de Lima (Peru); Professor honoris causa do Centro de Ensino Unificado de Brasília - UniCEUB

Conselheiro efetivo da Academia Interamericana de Direito Internacional e Comparado;     Do Conselho do Internationales Jahrbuch für Interdisciplinäre Forschung – Munique (Alemanha); Do Conselho Editorial dos Archives de Philosophie du Droit, Paris

Membro correspondente do Instituto de Derecho Parlamentario do Senado da República – Argentina; da Academia Interamericana de Direito Internacional e Comparado; da Academia Brasileira de Letras (Cadeira número 14); da Academia Brasileira de Letras Jurídicas; Membro Titular da Academia Paulista de Direito; da Academia Paulista de História; da Academia Paulista de Letras; da Associação Internacional de Direito Comparado, com sede em Paris; Membro de Honra da Associação Latino-americana de Estudos Germanísticos (ALEG); Presidente de Honra da Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito (ABRAFI); Presidente do Instituto Brasileiro de Filosofia e Diretor da Revista Brasileira de Filosofia; Presidente honorário do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, com sede em Lisboa; Sócio correspondente da Academia das Ciências do Instituto de Bolonha; da Academia das Ciências de Lisboa; da Academia Nacional de Ciências de Buenos Aires; Sócio honorário da Sociedade Mexicana de Filosofia, etc.

Recebeu diversos diplomas e condecorações no Brasil e exterior.

Faleceu em São Paulo, a 14 de abril de 2006.

Algumas Obras

Atualidades de um Mundo Antigo (1936); Filosofia em São Paulo (1962); O Homem e seus Horizontes (1980); A Filosofia na Obra de Machado de Assis (1982); Introdução à Filosofia (1988); Filosofia do Direito (1953); O Direito como Experiência (1968); A Política Burguesa (1934); Teoria do Direito e do Estado (1940); Cem Anos de Ciência do Direito no Brasil (1993); Poemas do Amor e do Tempo (1965); Poemas da Noite (1980);     Sonetos da Verdade (1984); Vida Oculta (1990); De Tancredo a Collor (1992), etc.

Fonte:
Wikipedia

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 188


Isabel Furini (Proteção)

Fonte: Facebook

Olivaldo Júnior (Pequeno Conto do Amor que Nunca Chega) (ou "Não sei dançar")


Se você quiser, eu posso tentar, mas
Eu não sei dançar
Tão devagar, pra te acompanhar
Trecho da letra de Não sei dançar, de Alvin L.,
gravada em 1991 por Marina Lima


Era um homem que tinha passado pouco mais de três décadas de sua vida. Sabia que a vida é vivida aos poucos e que não adianta querer dar o passo maior que a perna. A passada deve soar como um acorde de resposta a outro acorde, que lhe pergunta. Porém, a resposta a tantas noites vazias custava a chegar àquele homem que esperava o "célebre" amor que nunca chega. "Chega!", disse o pobre para si mesmo numa triste manhã de sábado. Estava exausto.

O homem da nossa história comportava-se como se a vida já tivesse dado o que tinha que dar. Não sabia até então que a vida era um contínuo estalar de dedos, uma pista de dança em que uns valsam, outros sambam e ainda outros simplesmente balançam a cabeça para cima e para baixo, num sinal de que acompanham o ritmo frenético do "bate-estaca" numa "rave". Estava cansado de não ter nenhum par com que dançar e, assim, dividir a pista com seu ser.

Sabia que teria que aprender a dançar se quisesse mesmo um par para a próxima dança. Assim, começou a pensar na hipótese de entrar para uma academia de dança e finalmente aprender a tão famosa dança de salão. Nem tinha sapatos próprios para isso, pensava, mas nada que uma ida a uma loja do Shopping não lhe pudesse sanar. Seria um pé-de-valsa em meio a tantos pés quebrados, sem força, nem ânimo para a dança. Animava-se.

Passaram-se alguns dias após a nova iluminação, sua ideia de aprender enfim a dançar. A preguiça dos dias, o serviço num trabalho que não lhe exigia o quanto ele sabia ser capaz de render, a falta de motivação que quase sempre lhe sobrevinha, e foi deixando de lado a luminosa ideia de dar seus giros de rostinho colado ao do amor. O que lhe acende a alma para o dia a dia e lhe abaixa a luz quando a lua sobe. O amor que nunca chega. Nem sabe dançar.

Fonte:
Colaboração do autor

Silmar Böhrer ( Divagações Poéticas) 6


Têm tido estado distantes
os meus brejeiros versinhos,
andam por outros caminhos
os mensageiros errantes ?
****************************************

a vida é muito simples
para ser complicada
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Será uma ave graciosa
volitando pelos ares,
ou é nuvem majestosa
em constantes avatares ?
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corruíra e sino-dos-ventos
mágicos momentos
mui musicais
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nesta vida
temos
de tudo um pouco
e tantas vezes
o tudo
é pouco
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viver vida leve
viver sem preconceitos
****************************************

Quando nos versos me empenho
eu indago sem discernimento,
trovas - engenhos do meu invento
ou inventos do meu engenho ?
****************************************

Muito específicos,
precisamos ser variedade.
****************************************

Chegando ao final do ano
com a minha garimpagem,
ilusão e desengano
também trago na bagagem.

Fonte:
Colaboração do autor.

Carlos Drummond de Andrade (Juiz de Paz)


O juiz de paz chegou cedo ao cartório. Era dia de muito casamento — o santo da folhinha ajudava. Aquele cartório! Feio, desarrumado como todos os cartórios. E por que se casam tantas pessoas no Brasil? Por que estão fazendo sempre a mesma besteira? Não aprendem?

O oficial-maior apareceu vinte minutos depois, para desagrado do juiz de paz. Quando o magistrado chega — mesmo sendo juiz de paz, a majestade é uma só — o cartório deve estar preparado como um templo, os acólitos em seus lugares. Mas o oficial-maior é mulher, e mulher não tem jeito não.

— Quantos, hoje?

— Dezessete.

Barbaridade. Trinta e quatro noivos, suas famílias e testemunhas espremendo-se na salinha e nos corredores, fazendo barulho de motor. O juiz de paz não pensou na renda, pensou na amolação.

— Silêncio!

A energia da voz e da campainha fez estremecer os nubentes. Moças nervosas ficaram com medo — de quê? É tudo tão inseguro hoje em dia, nunca se sabe se haverá mesmo casamento ou se, à última hora…

Chamado o primeiro par, rapaz e moça aproximam-se um tanto estúpidos, como acontece nessas ocasiões, e sentam-se. O oficial-maior anota nomes e endereços das testemunhas. O juiz manda que todos se levantem e é obedecido, menos pelo oficial-maior.

— A senhora não vai se levantar?

— Não.

— Como juiz, ordeno ao sr. oficial-maior que se levante e proceda à leitura do termo.

— Vou ler sentada.

— Não ouviu minha ordem?

— Não recebo ordens do senhor.

— De quem recebe, então?

— Do doutor corregedor da justiça.

— Pois então não há casamento.

Os noivos entreolham-se, estupefatos. A noiva, lacrimejante:

— Não faz assim com a gente, seu juiz!

— Sinto muito, mas todos os casamentos estão suspensos.

Um rumor de onda batendo na praia acolhe a declaração. O oficial-maior continua sentado(a). Interessados apelam.

— Por que a senhora não se levanta? Que que custa!

— Já fiquei sentada muitas vezes, hoje é que ele implicou. Não pode fazer isso.

— Não impliquei nada. É da lei.

— Implicou. Vive implicando comigo. Sou uma pobre moça solteira, mas não admito ser humilhada.

O corregedor, procurado pelo telefone, não foi encontrado. O juiz de direito da vara de família atendeu depois de muito número discado, e respondeu que só resolvia consulta por escrito.

O juiz de paz estava sem cabeça para redigir. O oficial-maior, passado o instante de bravura, chorava baixinho. Três partidos se haviam formado. Não se humilha uma mulher. A um juiz não se desacata. Ela devia ceder. Ele é que devia. Que é que a gente tem com isso?

— Se quiser, eu mesma redijo para o senhor.

Era o oficial-maior, oferecendo colaboração ao juiz de paz.

Ele pensou que fosse ironia, mas o tom era sincero. Começaram a elaborar a consulta. Ela achava as palavras por ele. E foi escrevendo por conta própria: a serventuária rebelde tinha vinte anos de serviço, estava cansada, reumática.

Enquanto podia levantar-se, não deixou de fazê-lo. Agora, era um sacrifício. Ele olhava-a escrever e tinha uma ruga na testa.

— Pode parar. Não vou fazer consulta nenhuma.

Ela encarou-o.

— Reconheço que tenho andado nervoso, essa dor de cabeça constante. Vou ao médico. Tenho sido um juiz de paz ranheta. Me perdoe. Também essa vida que eu levo, tão sozinho…

O oficial-maior retirou o papel da máquina. Os dois voltaram a seus postos, e os noivos foram chegando e casando. Só um havia desistido — Deus sabe por quê. Durante o quinto casamento, o oficial-maior fez menção de levantar-se,como quem diz: agora, chega; mas o juiz, com um gesto, aconselhou-lhe ficar como estava.

Três meses depois, o juiz de paz estava casado com o oficial-maior.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 historinhas.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 187


Lucília Trindade Decarli (Jardim de Trovas)


Ah, cruel felicidade,
não te deixaste encontrar...
Quanto mais avança a idade,
menos posso te alcançar!
*
A noite é das mais bonitas
e ouço os teus passos na rua...
No espaço em que tu transitas,
fazemos ronda, eu e a lua!
*
Audácia e muito trabalho,
quando quiseres vencer
e o grande segredo, espalho:
— nunca deixes de aprender!...
*
Comparo, aqui, consternada
ao ver teu olhar, tão frio:
— é como apalpar o nada
ou ir de encontro ao vazio...
*
Creio que é feliz na Terra,
quem realiza o sonho belo
de morar no alto da serra:
— seja em choupana ou castelo!
*
Da face do mundo inteiro
tirei um saber profundo...
É o trabalho, e não dinheiro,
a força que move o mundo!
*
Da sedução ao cinismo
o encanto agrada e maltrata;
pode lançar para o abismo,
depois que ao céu arrebata!
*
Detectado no planeta
o aquecimento global,
talvez não mais se cometa
o infame crime ambiental!...
*
Em caminhos separados
por conta de um dissabor,
fomos dois equivocados,
mas... vencidos pelo amor!
*
Em ti quis analisar
tudo o que encanta e seduz,
mas não pude decifrar,
do teu sorriso, esta luz!
*
Entre lágrimas e risos
caminhamos nesta vida,
muitas vezes indecisos
na chegada e na partida...
*
É troca de amor fecundo
a toda mãe, concedida:
ela põe vida no mundo,
nela o mundo põe mais vida!
*
Fico a rondar madrugadas,
quando em mim grita a saudade
das noites afortunadas
ao luar... na "'flor da idade"!
*
Forte o fogo a crepitar,
desolação da queimada:
— faz a fauna dispersar
e a flora em cinzas... mais nada!
*
Meus versos exprimem mais,
grande inspiração mantenho,
se ouço acordes passionais
de um belo tango portenho!
*
Na cadência que seduz
e eleva o ardor da paixão,
dançar tango, à meia-luz,
faz transbordar a emoção!
*
Não quero, aqui, dirimir
nem citar os mais cantados,
mas para um tango ''sentir",
só mesmo os apaixonados!...
*
Não são as joias mais caras
que mais encantam a mim,
mas, sim, as belezas raras
das "flores" do meu jardim!
*
Nos alvos lençóis da cama,
pela insônia se antevê
a dimensão do meu drama
pela falta de você...
*
Nunca se dê por perdido
nos labirintos da vida;
a entrada perde o sentido,
se não se busca a saída!...
*
Os santos Anjos de Deus
aos quais Deus nos quis confiar,
os caminhos meus e os teus
hoje e sempre irão guardar!
*
Para o poeta, a partida
não é o maior dos reversos…
O tempo lhe ceifa a vida,
mas deixa vivos seus versos!
*
Parecendo até miragem
é todo encanto o luar,
que transcende na paisagem,
ao incidir sobre o mar!
*
Passei a ser um brinquedo
do teu encanto sem par,
porque o perdão te concedo,
sempre que queres voltar!
*
Pela vereda florida
contemplo a casa deserta;
lembro a infância, ali vivida...
— Quanta saudade desperta!
*
Pequenina, mas grandiosa!
E, aqui, tento descrevê-la:
quatro versos, "rubra rosa",
com o brilho de uma estrela!
*
Quem dera que, neste mundo,
a paz não fosse quimera,
mas o saber mais fecundo
praticado em qualquer era!
*
Rejeitando os meus fracassos,
num desvario sem fim,
sonho que estou nos teus braços
e amas loucamente a mim.
*
Saudade; dor que não passa
e até provoca arrepio...
É como dormir na praça
sem coberta e exposta ao frio...
*
Segue a vida sempre cheia
de encantos e desencantos,
na alegria, que permeia
a tristeza... e um mar de prantos!
*
Seja aqui, seja acolá,
minha alma sossega e pensa,
que comigo sempre está
o Pai — Eterna Presença!...
*
Sendo a vida grande empreita,
precisamos nos lembrar,
que nunca chega à colheita
quem se esquece de plantar!
*
Sendo esse amor desmedido,
segue isento de protesto:
ama a mãe, filho bandido,
tanto quanto o filho honesto!
*
Sendo lua em céu escuro
e sol sempre a iluminar,
o grande amor que eu procuro,
talvez não possa encontrar...
*
Ser nau ou pequeno barco,
a sorte as cartas vai dar,
mas o horizonte, eu demarco,
e o que vale é navegar!...
*
Seu amor, maior que o mundo,
deu a todos por igual...
Nesse intuito um dom fecundo:
que haja a paz universal!
*
Soberana a natureza,
com destreza singular,
multiplica-se em beleza
na tarde crepuscular!
*
Sozinho em seu camarim,
o idoso ator, envergado,
sente ter chegado ao fim
toda a glória do passado…
*
Tendo agora os teus carinhos,
sei porque sobrevivi
aos mais íngremes caminhos
que pisei longe de ti...
*
Ter sempre o filho aninhado
nas asas de seu querer,
da mãe é o mundo encantado...
Mas o impede de crescer!
*
Transgrides a natureza,
crente que a podes burlar?...
Ouve e acolhe esta certeza:
— o excesso ela irá cobrar!

Fonte:
Lucilia Alzira Trindade Decarli. Inquietude. Bandeirantes: Sthampa, 2008.

Arthur de Azevedo (Na Horta)


Morava o barão da Cerveira num belo palacete que, a pedido da baronesa, mandara edificar no centro de uma grande chácara do Andaraí Grande.

A baronesa, as meninas e os meninos, seus filhos, desfrutavam a beleza e o conforto da encantadora vivenda, ele não, porque, apesar de enriquecido e quarentão, conservava o costume, adquirido desde os primeiros tempos da sua vida comercial, de sair de casa pela manhã e só voltar à noite, para dormir.

Os domingos e dias santificados, em vez de gozar as delícias do descanso, passava-os o barão a examinar e pôr em ordem contas e outros papéis de umas tantas associações, que eram, como dizia ele, a sua cachaça.

- És um esquisitão! observava continuamente a baronesa. Não valia a pena comprarmos esta chácara!

- Gozando-a vocês, gozo-a eu!

Entretanto, num belo domingo de sol, sentiu o barão desejos de percorrer os seus domínios, e o fez, com espanto da família e do chacareiro, o José, que estava acocorado diante de um grande canteiro de repolhos, e se levantou, surpreso e respeitoso, quando viu aproximar-se o patrão.
* * *

Antes do baronato, o barão chamava-se modestamente Manuel Barroso.

Nascera em Portugal, numa aldeola do Minho, que não figura nos compêndios de geografia. Veio aos dez anos para o Brasil, num navio de vela, entregue aos cuidados de um homem de bordo, e consignado a uma casa comercial do Rio de Janeiro.

Não conhecera os carinhos maternos: contava apenas três anos quando perdeu a mãe. O pai, que ficara viúvo e com dois filhos, confiou-o e mais o irmão a uma família, que pouco se preocupou com a educação dos dois rapazes.

- O mais velho irá para o Brasil, sentenciava o pai; o mais novo há de ser padre, se Deus nos der vida e saúde!
* * *

Veio o Manuel para o Brasil e teve a felicidade de encontrar excelentes amos, que o obrigaram a aprender a ler por cima e fazer as quatro operações.

Mal aprendera a escrever, o pequeno pegou na pena e fez uma carta ao pai, pedindo que lhe mandasse novas suas e do mano, mas tanto essa como outras ficaram sem resposta.

Com aqueles simples conhecimentos - ler, escrever e contar - entrou na vida, e não foram necessários outros para que lhe sorrisse a fortuna. A sua inteligência, realmente notável, supria tudo. Não havia na praça farejador de bons negócios que lhe levasse as lampas; mas o que contribuía, principalmente, para fazer dele um dos negociantes mais estimados do Rio de Janeiro, era o escrúpulo honrado com que sempre se havia em todas as suas relações comerciais. Ao contrário do que geralmente se observa, Manuel Barroso não se satisfazia apenas com ganhar dinheiro; tinha muito prazer em dá-lo a ganhar aos outros.

O grande caso é que o nosso aldeão aos vinte anos estava perfeitamente encarreirado, como se costuma dizer - e aos trinta era rico - e aos quarenta riquíssimo, tendo percorrido já toda a escala do medalhão comercial: diretor de bancos e companhias, provedor de irmandades, ministro de ordens terceiras, comendador, conselheiro e barão. Não lhe faltava nada, nem mesmo o retrato a óleo.
* * *

Aos trinta anos casou-se com uma moça, pobre - uma excelente senhora brasileira, que não poderia encontrar melhor esposo, e, logo depois de casado, resolveu dar, em companhia de sua mulher, um passeio à pátria, e visitar o lugarejo onde nascera, e do qual saíra havia já vinte anos.

Não achou lá ninguém. O pai falecera pouco depois da sua vinda para o Brasil, e o irmão abandonara o lugar, ignorando todos o rumo que tomara. A própria família, que o acolhera depois da morte da mãe, tinha desaparecido. Finalmente, o Manuel encontrou na povoação apenas dois ou três companheiros de infância, que o supunham morto. A sua viagem foi desoladora.

Entretanto, o "brasileiro" não saiu da aldeia sem deixar nas mãos do pároco a soma precisa para a reconstrução da capela em que fora batizado, e outra soma, ainda maior, para ser distribuída pelos pobres.

Voltando ao Brasil, o venturoso casal começou a ter filhos que foi um louvar a Deus; não se passaram dez anos sem oito batizados; mas o destino, mostrando-se a Manuel Barroso, mais que aos outros homens, desejoso de equilibrar e harmonizar entre si as circunstâncias, aumentava-lhe os haveres ao mesmo tempo que os filhos, de sorte que a verdadeira prosperidade do nosso homem começou com a sua prolificação.
* * *

A manifestação mais flagrante e ostensiva da sua fortuna era aquela magnífica propriedade do Andaraí Grande, em cuja chácara o deixamos percorrendo pela primeira vez os canteiros de uma horta opulenta.

Dissemos que o hortelão se levantara surpreso e respeitoso ao avistar o patrão.

O pobre homem descobriu-se humildemente e ficou um tanto curvado, a rolar o chapéu entre as mãos.

O barão deu-lhe um bom-dia afável dizendo-lhe:

- Cubra-se, homem! Olhe que está sol!

E ia passando; mas na fisionomia simpática d0 hortelão brotou um sorriso que o fez parar.

- Então? Trabalha-se?

- Alguma coisa, s'or barão, alguma coisa.

- Mas hoje é domingo.

- Isso não quer dizer nada.

- Há quanto tempo está você cá em casa?

- Saberá vossoria que haverá oito meses pelo São João.

- Está satisfeito?

- Se estou satisfeito! Não, não devo estar?! A s'ora baronesa e os meninos são tão bons para mim.

- Você é de Portugal ou das Ilhas?

- Sou do Minho.

- Também eu. De Braga ou de Viana?

- De Viana.

- Também eu.

- Nasci ali perto da Vila Nova de Cerveira, num lugarzinho chamado de São Miguel das Almas.

- Em São Miguel? Como se chama você?

- José Barroso.

- Oh, diabo! Você é filho de João Barroso?

- Sim, s'or barão.

- Sua mãe chamava-se Maria José?

- Sim, s'or barão; mas não a conheci. Meu pai queria que eu fosse padre, mas, coitado, morreu logo... deixou-me ao deus dará. Estive na África... não arranjei nada... vai então resolvi embarcar para o Brasil. Pelo Santo Inácio, vai fazer um ano que cá estou.

- Você não tem um irmão?

- Não sei se o tenho ou se o tinha. Saiu da aldeia ainda o nosso pai era vivo. Disseram que tinha vindo para o Brasil. Nunca mais tive noticias dele.

E o hortelão agachou-se de novo diante de seu canteiro.

- Homem! Deixa lá esses repolhos, exclamou o barão, e dá cá um abraço! Teu irmão sou eu!...

Imaginem a cena que se passou.
* * *

Quando a baronesa viu entrar em casa o marido de mãos dadas ao chacareiro, ficou muito admirada e perguntou:

- Que foi isto? Encontraste alguma coisa que te desagradasse?

- Pelo contrário: encontrei um irmão! Teresa, abraça teu cunhado; meninos, meninas, tomem a bênção a seu tio!...

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 186


Nilto Maciel (A Lenda de Um Reizinho - Capítulo Exótico)


Fui o primeiro deles. Assim, posso falar a respeito de nós, inclusive dos mortos. Eu me sabia superior aos homens em todos os sentidos. Depois de mim veio aquela onda de dar aos bebês humanos o meu nome. Talvez assim esses futuros cidadãos se parecessem comigo. Além disso, o controle da natalidade deixou de interessar aos casais. Todo mundo queria procriar. Para ter filhos como eu. Logicamente que o fenômeno não se deu da noite para o dia. Antes de um ano de idade, meus cinco primeiros homônimos moravam no mesmo prédio onde eu vivia. Fora daí ninguém mais sabia de mim. Porque meu pai fez chantagem com os pais desses pobres meninos. Se revelassem o segredo de minha excelência genética, ai deles. Doenças terríveis, demência, venditas extraterrenas.

Esses cinco homens abençoados tiveram a graça de nos visitar por acaso. Souberam do nascimento de uma criança num dos apartamentos do prédio e acharam aquilo digno de curiosidade ou zelo. A mãe seria uma garota de uns dez anos de idade. No mesmo dia nasci. Moravam meus pais vizinhos à infeliz menina. Bateram os cinco curiosos à nossa porta, sob ameaças. Falaram de crime, barbaridade, desrespeito às crianças e coisas assim. Arrombariam a porta, se não lhes dessem passagem pacífica. Eu mesmo a abri, com a ajuda de uma cadeira. E conversamos até mesmo sobre a hediondez praticada na mãe de dez aninhos.

Difícil é falar do espanto dos visitantes. Nenhuma palavra humana será disso capaz. Um me chamou de boneco, outro de bruxo, um terceiro de diabo. Meu pai me socorreu a tempo. Explicou tudo pacientemente, apesar da ira, do medo, do desespero, da impotência daqueles cinco zeladores. Negavam tudo, minha presença, minha palavra, meu gesto, minha existência, minha possibilidade, e arregalavam os olhos, gritavam, se esmurravam – quase loucos. Até que ouviram a primeira versão da chantagem. E, de repente, fecharam os olhos, calaram-se, aquietaram-se – mansos e crentes de tudo.

Esses meus homônimos entram na nossa crônica de forma esdrúxula, porque nada os assemelhava a mim e a meus semelhantes. Nunca passaram de meninos comuns. De qualquer forma, tiveram sua importância um dia, quando foi decretada a eliminação de todas as crianças de nome igual ao meu.

Coitados desses meninos humanos! Numa só noite milhares deles desapareceram. Dos nossos, porém, apenas quatro ou cinco não escaparam ao ferro. Os salvos, também quatro ou cinco, refugiaram-se debaixo d’água.

Para os assassinos sua tarefa se cumpriu integralmente, enquanto nasciam outros semelhantes meus.

Sempre fomos minoria, apesar de em determinado tempo existirem vários milhares de homônimos meus, muito depois da chacina oficial.

Nasce-se como eu ou o comum dos homens. E isso não conseguiram entender nem os pais de crianças normais nem os assassinos.

Passada a época da repressão, virei professor. Ora, apesar de ser uma questão de nascença o ser como eu, aprender é preciso. Aprendi muito com os homens, inteligentes e idiotas, pobres e ricos, orientais e ocidentais, selvagens e civilizados. Assim, resolvi passar aos meus semelhantes os meus conhecimentos. Nada de meninos comuns. Esses não me compreendem. Fiz disso minha profissão durante alguns anos, até formar meus substitutos. Aposentei-me. E veio a decadência.

Alguns de meus alunos foram de imediato comprados a peso de ouro ou alugados aos nobres europeus e orientais, gângsteres americanos e tiranos da América e África.

Antes disso, porém, já compravam, a baixo preço, de pais pobres que não podiam enviá-los à escola e criá-los à nossa maneira. De meus oitocentos alunos nem todos estudavam às custas dos pais, mas de seus compradores ou alugadores.

Depois da escola, dediquei-me simplesmente a pesquisas. O tempo passava e já existiam milhares de semelhantes meus, umas centenas maduros e alguns poucos quase velhos. Os compradores preferiam os adolescentes, de quem faziam preceptores de seus filhos. Com isso, queriam fazer destes excelentes homens, para mais tarde vendê-los.

Os velhos também tinham boa cotação, em razão da experiência e dos conhecimentos adquiridos. Geralmente, porém, já viviam a serviço de filhos de nobres, burgueses e estadistas. Alugá-los, no entanto, era mais rendoso, porque o envelhecimento ou a morte repentina representavam prejuízos enormes. A menos que estivessem com saúde.

Durou algum tempo esse tipo de comércio. Depois as coisas mudaram de figura: só se comprava um semelhante meu para revendê-lo e não mais para criá-lo e fazer dele preceptor. A vez dos especuladores, intermediários.

As notícias de lucros fáceis, ao chegarem aos meus ouvidos, tocaram fundo minha fome de poder. Decidi comerciar também. E saí pelo mundo com o intuito de comprar meus melhores ex-discípulos. Estive no Oriente Médio. Os árabes não cediam suas mercadorias nem por mil barris de petróleo. Na Índia, não as cediam nem por toneladas de filosofia. Na China, não as trocavam nem por duas Formosas. Na URSS, os burocratas não as trocavam por nenhuma regalia.

Numa Feira Internacional encontrei um eslavo velho, quase de minha idade. Seu preço, um absurdo. Noutro stand deparei um africano negro, na casa dos quarenta anos. Ser jovem compensava sua má qualidade ou origem. Um argentino, de meio século de vida e peronista, revelou então minha identidade, e adeus sossego. Apareceram os comerciantes, e eu acabei comprado. No leilão, fui vendedor de mim mesmo. Vendi-me a um reizinho de uma ilha dos confins do mundo.

Fonte:
Nilto Maciel. Punhalzinho Cravado de Ódio, contos. Secretaria da Cultura do Ceará, 1986.

Argentina de Mello e Silva (Jardim de Trovas) 2


A Noite — irmã da Saudade,
dela um dia alguém já disse:
Tão curta na mocidade,
como é longa na velhice...!
*
As alegrias e as dores
seguem os mesmos caminhos:
são iguais àquelas flores
que a gente colhe entre espinhos.
*
As maiores despedidas
são mudas. A gente sabe
que o que coube em duas vidas
numa palavra não cabe.
*
A trova para ser bela
não pode ser complicada.
Ela deve ser singela,
dizer tudo, em quase nada.
*
Com amor tu me dizias:
''tudo podes, tudo eu posso".
Ai de nós, tu te esquecias
que este mundo não é nosso!
*
Entre mim e ti havia
o tempo nos separando:
tu eras meu dia-a-dia,
eu era teu quando-em-quando.
*
Eu creio que Deus existe
nas profundezas do Amor,
quando num pântano triste
vejo nascer uma flor.
*
Há mãos que colhem as rosas...
há mãos cruéis que magoam.
Benditas as mãos rugosas,
trêmulas mãos que abençoam!
*
"Homem não chora'' e com isto
muita gente se enganou.
O maior homem foi Cristo,
e quantas vezes chorou...
*
Jamais o mal será eterno
para quem, em doce espera,
semeia no seu inverno
as rosas da primavera.
*
Já te quis, glória fugaz...
Já te amei, mundo inclemente...
Hoje quero e peço: Paz!
Como o tempo muda a gente.
*
Mocidade! Sonho, enredo,
tempo fugaz de uma flor.
Cada sorriso é um segredo,
cada segredo é um amor.
*
Muita gente há que não sabe
se uma trova tem valor.
Mas ela inteirinha cabe
na alma do trovador.
*
Não sei de vitórias plenas
em batalhas que não vi.
Mas sei de glórias serenas
nas lutas que já venci,
*
Na voz de um sino que tange
no dobre final da hora,
há sempre a ceifa do alfange
e um anjo que canta e chora.
*
No cair das tardes calmas
há tanta melancolia!
Parece que as próprias almas
soluçam no fim do dia!
*
No outono da vida a gente
não conta o tempo em auroras;
vai contando, tristemente,
na breve fuga das horas.
*
O amor é um raio profundo
de luz numa solidão.
Se não vale inteiro um mundo
vale, ao menos, a ilusão,
*
Por longos anos viveu.
Seu destino foi tão lindo!
Minha Mãe nunca sofreu
porque as mães choram sorrindo...
*
Quando Deus me pôs na alma
a humildade da alegria,
deu-me a bênção, deu-me a palma
deu-me o dom da poesia.
*
Quando vislumbro a procela
nas nuvens, em céu tristonho,
eu me debruço à janela
e abro a cortina do sonho.
*
Saudade! Tu és somente
a visita inesperada
que bate á porta da gente
depois da festa acabada.
*
Se a Esperança é uma quimera
mas pode alegrias dar,
é feliz sempre o que espera
porque viver é esperar!
*
Sempre em busca de uma flor
onde minha mão alcança,
se perco a rosa do Amor
colho o Lírio da esperança!
*
Senhor! Em prece conclamo:
(eu sei que tudo tem fim)
poupa-me ver os que amo
morrerem antes de mim.
*
Seu olhar curioso brilha,
quer ser moça a pequenina.
Se soubesses, minha filha,
como é linda ser menina!
*
Sorria na mocidade!
De risos faça um buquê.
breve virá a saudade
para chorar com você.
*
Vejo Deus na pura lida,
na humildade do caminho;
nas coisas simples da vida,
na Mãe que embala o filhinho!
*
Velhice ! Final de festa,
quando um triste violão
tange em surdina a seresta
nas cordas da solidão!

Fonte:
Argentina de Mello e Silva. Trovas dispersas. Curitiba/PR: Centro Paranaense Feminino de Cultura, 1984.

Contos e Lendas do Mundo (Dinamarca: O Príncipe-Veado)

Era uma vez um viúvo e uma viúva que casaram um com o outro. Cada um deles tinha uma filha — a do marido era formosa e elegante e a da mulher muito feia. A viúva tinha inveja da enteada, por ser muito mais bonita que a sua filha, pelo que passava o tempo a pensar como a podia prejudicar, e tratava-a pessimamente. O marido permanecia quase todos os dias fora de casa, de manhã à noite, razão pela qual não se achava muito informado sobre a situação da jovem.

Uma noite, quando já estavam todos deitados, bateram à porta, e a mulher disse à filha que fosse ver quem era. Como esta não se mostrasse muito entusiasmada em obedecer, a enteada ofereceu-se para o fazer, mas não lhe permitiram, pois a mulher desejava que fosse a filha. Por conseguinte, a jovem retirou o ferrolho, abriu a porta e viu um veado ou algo parecido. Sem perda de um segundo, pegou numa vassoura e fez menção de o agredir, conseguindo assim pô-lo em fuga. Depois, fechou de novo a porta e foi contar o sucedido à mãe.

Na noite seguinte, quando se preparavam para aferrolhar a porta, voltaram a bater, mas desta vez a filha da mulher não se atreveu a ir abrir, e ninguém se opôs a que o fizesse a enteada, à qual se deparou com o mesmo veado.

— Coitadinho — murmurou ela. — De onde vens?

— Sobe para o meu dorso, menina! – indicou o veado.

Mas ela disse que não estava disposta a fazê-lo, pois já tinha dificuldades suficientes ao carregar consigo próprio. O veado explicou que era a única maneira de o poder acompanhar, perante o que ela subiu em seu dorso — pois não queria continuar em casa — e partiram.

Pelo caminho, chegaram a uma planície, e ele perguntou:

— Que dirias se, um dia, nos pudéssemos divertir aqui?

No entanto, a jovem não conseguia conceber como ambos poderiam se divertir naquele prado. Finalmente, chegaram a um enorme palácio. O veado introduziu a companheira e disse-lhe que, dai em diante, teria de viver lá completamente só, mas teria todos os desejos realizados, e que tentasse passar o tempo o melhor que pudesse. Garantiu-lhe que, um dia, viria visitá-la e pediu que não entrasse num lugar em que havia três portas — uma de madeira, outra de cobre e a terceira de ferro. Não as devia abrir sob pretexto algum.

Entretanto, estava intimamente convencido de que seria a primeira coisa que faria.

Ela passou o resto do dia totalmente só. Chegou a noite e, na manhã seguinte, decidiu percorrer todo o palácio. Invadiu-a então uma vontade tão forte de abrir a porta de ferro, que não lhe pôde resistir. Fez-o e viu lá dentro dois homens que remexiam com as mãos e os braços uma caldeira de alcatrão, aos quais perguntou porque procediam assim sem usarem qualquer proteção. Eles responderam que estavam condenados a fazê-lo até que uma alma cristã lhes fornecesse algo para remexer o alcatrão. Sem hesitar, ela pegou numa acha, improvisou com ela uma espécie de colher plana e entregou-a aos homens.

O dia foi-se escoando e anoiteceu. Na manhã seguinte, ela ouviu muito barulho na corte e viu vários homens que davam de beber aos cavalos e numerosos serviçais a limpar as pratas. Todos estavam muito ocupados e moviam-se de um lado para o outro. A jovem teve então vontade de abrir a segunda porta. Era a de cobre, e viu duas raparigas que atiçavam uma chama com as mãos. Perguntou-lhes porque o faziam e responderam que tinham sido condenadas a proceder assim até que uma alma cristã lhes fornecesse alguma coisa para substituir as mãos. Sem hesitar, ela foi buscar uma barra de ferro, que lhe agradeceram com gratidão.

Na manhã seguinte, todo o palácio estava cheio de moças, que varriam, lavavam e punham tudo em ordem. Deixou o dia decorrer sem fazer nada, mas, a certa altura, não se pôde conter mais — tinha de abrir também a porta de madeira. Quando o fez, encontrou-se perante o veado num leito de palha e perguntou-lhe, naturalmente, porque estava ali deitado. Ele explicou que tinha de se conservar assim até que um alma cristã lhe limpasse a sujeira. Sem hesitar, a jovem pegou num molho de palha e começou a limpá-lo. A medida que o fazia, o veado transformava-se no príncipe mais atraente que ela jamais vira.

Depois, contou-lhe que todo o palácio tinha sido encantado, porém ela agora conseguira quebrar o feitiço, pelo que queria desposá-la, e foi uma boda extraordinária que se prolongou por vários dias.

Passado algum tempo, ele perguntou à esposa se queria convidar a madrasta e a filha e ela respondeu que sim, que gostaria muito de as voltar a ver. O marido disse então que não poderia estar presente, quando chegassem, e recomendou-lhe que, ao servir vinho ou qualquer outra coisa, deixasse cair uma gota no sapato. Ele apareceria então e a limparia. Além disso, advertiu-a de que não desse à madrasta nada que fosse uma, duas ou três coisas — tinham de ser mais de três, como cereais ou algo do gênero.

Quando a madrasta e a filha chegaram, a princesa — pois agora era princesa — mostrou-se muito atenciosa. Ofereceu-lhes vinho e deixou derramar uma gota no seu sapato dourado. No mesmo instante, surgiu o príncipe, que limpou a nódoa com o lenço. Se as outras ainda não estavam abismadas com o que as rodeava, ficaram-no sem dúvida quando o viram aparecer. Mais tarde, saíram ao jardim, e a madrasta empenhou-se em que a princesa lhe colhesse uma maçã, mas ela não quis. A mulher insistiu que queria maçãs que não fossem mais de três. No entanto, a princesa manteve a sua posição e disse-lhe que teria todas as que desejasse, quando estivessem maduras.

A outra ficou então furiosa. De regresso a casa com a filha, corroía-a a inveja de não ter sido esta a alcançar semelhante felicidade. Estava tão indignada, que não se conteve de a acusar culpada de tudo. A filha insurgiu-se e, palavra puxa palavra, acabaram por se puxar os cabelos, até que se desfizeram e converteram num monte de seixos rolados.

É este o motivo por que há tantos seixos rolados no mundo.

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 185


Elisa Alderani (Sonho de Valsa)




Como é fácil deixar-se transportar em um tempo cronologicamente longínquo, escutando uma música; neste caso uma valsa. Tempo que, está vivo no agora, neste preciso instante. Um CD toca uma valsa...

Vejo-me menina, magra, de trancinhas apertadas, vestidinho simples, sempre de manguinha comprida com saia pregueada.

Lá estou eu, naquela pequena casa, sem luxo, frente a um magnífico jardim. Um pequeno aparelho de rádio tocando. Foi um presente de meu irmão mais velho que já trabalhava na fábrica da cidade. Comprado a prestação, fazia a alegria de minha mãe.

Ela amava ouvir programas musicais, consertos sinfônicos e música clássica, especialmente as valsas de Viena.

- Agora, agora, vem aqui "Lisute". Com este apelido ela me chamava, pegava-me pelas mãos e ensinava-me a dançar a valsa…

Assim, olha: "Um, dois, três, e um, dois, três"... O vestidinho rodado abria, eu fechava os olhos e sonhava estar em um lindo salão de baile, dançando com um príncipe. O vestido era de seda e o sapatinho de cristal... Igual a história de Cinderela.

A música acabava e tudo ficava como antes. Eu voltava contente ao brinquedo posto de lado e minha mãe retomava o trabalho deixado, voltava ao fogão, Ela sabia cozinhar muito bem, até os ingredientes mais simples se transformavam em pratos deliciosos; especialmente os doces e os bolos faziam a alegria na hora da merenda.

Acredito piamente que também ela, por um momento, a duração da valsa, viveu meu mesmo encanto, deixando-se transportar pelo lindo sonho de valsa...

A realidade de Cinderela iria reconduzi-la com um sorriso à nossa casinha pobre, mas cheia de paz e serenidade.

Fonte:
Elisa Alderani. Flores do meu jardim – Fiori del mio giardino. Edição bilingue. Ribeirão Preto/SP: Legis Summa, 2008.

Professor Garcia (Trovas que Sonhei Cantar) 6


A cruz que a pobre criança,
carrega sem perceber...
Tem os braços da esperança
e a luz do eterno viver!
*
Ama mais!... Sê mais feliz!...
Que esse amor, nas horas calmas,
será qualquer cicatriz
que dói no fundo das almas!
*
Aos ritos do amor se entrega
um casal apaixonado,
que até nos olhos carrega
o silêncio do pecado!
*
As borboletas formosas
imitando o beija-flor,
deixam nos lábios das rosas
eternos beijos de amor!
*
A tapera, no abandono,
afirma que em seu tormento,
sempre escuta a voz do dono
quando sopra a voz do vento!
*
À tarde, é que se descobre,
o quanto o sol nos afaga;
se apaga essa luz tão nobre
só a saudade não se apaga!
*
Desde minha juventude
que eu faço versos feliz...
Já fiz todos quanto pude,
mas o que eu quero, não fiz!
*
Essas roseiras viçosas
que a mão de Deus recupera,
nos dão de presente as rosas
que eclodem na primavera!
*
Faz ó Deus, que eu seja forte.
que em mim, brilhe a eterna Luz!
Que até meu fim, que eu suporte
os braços de minha cruz!
*
Fostes primavera em flor,
ó, mãos, na infância da idade!…
E hoje, no outono do amor,
sois estações de saudade!
*
Graças a Deus!... Minha aurora,
me reflete a mesma luz
daquela Estrela, que outrora,
brilhou nos braços da cruz!
*
Meu sertão não tem floresta,
é pobre o pó deste chão...
Mas esta paz que me empresta
me faz amar meu sertão!
*
Muito além, das nuvens densas,
do azul, desse mundo assim...
Reside o Pastor das crenças
desse Infinito sem fim!
*
Nas nuvens, da cor de neve,
com tinta rubra e dourada...
Deus mostra a paz que descreve
os arrebóis da alvorada!
*
Na tapera abandonada,
toda noite, a vela acesa...
Mostra a saudade sentada
repartindo o pão na mesa.
*
Na velha praça, à distância,
escuto um grito de dor,
da sombra de minha Infância
juntando cacos de amor!
*
Nossa vida se assemelha
à flacidez de uma vela,
que o tempo, a cada centelha,
enruga a beleza dela!
*
Ouvindo a voz do acalanto
dos fados sentimentais,
tentando acalmar meu pranto
dobrei a dor dos meus ais!
*
Quando a aurora adormecida,
rasga o ventre da alvorada...
Ouve-se o choro da vida
nos braços da madrugada!
*
Quando a noite me conduz,
minha inspiração vagueia
sob a neblina de luz
dos raios da lua cheia!
*
Quando nasce uma criança,
Deus vem do céu, para vê-la.
É uma estrela de esperança
enchendo a vida de estrela!
*
Quem és tu? fala destino,
aonde vais, de onde vens?
Sou teu viver peregrino,
dono de tudo que tens!
*
Se alguém me ferir, não ligo;
só perdoar me convém!...
Perdão - resposta e castigo
a quem coração não tem!
*
Se as rimas são maltrapilhas,
assumo os versos que faço...
No passo das redondilhas,
eu tento acertar meu passo!
*
Sem mágoa e sem dissabor,
onde eu pisar neste chão…
Que brote a rosa do amor,
nunca a flor da solidão!
*
Se na fé, tu te assemelhas,
ao justo Mártir da cruz...
Serás luz, entre as centelhas,
de outras centelhas de luz!
*
Sozinho!... E, no velho outono
da vida, na noite fria!...
A nostalgia, sem sono,
me esquenta a noite vazia!
*
Teu adeus trouxe os tormentos,
e com tanta fugacidade...
Que até nos uivos dos ventos
escuto a voz da saudade!
*
Uma aranha tão singela,
nada faz, que a nada ofenda;
é uma tecelã tão bela
que dorme em rede de renda!
*
Usando as tintas mais belas,
curto os sonhos de menino.,.
Pintando vergéis nas telas
dos arrebóis do destino!
*
Vai com fé, que a vida é bela,
se crês filho, a paz te alcança;
que a fé brilha, e o brilho dela,
mantém acesa a esperança!

Fonte:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó: Ed. do Autor, 2018.

Rachel de Queiroz (A Casa e a Máquina)

    
Dentro das nossas casas de cimento e vidro escutamos os protestos do Ministro de Minas e Energia Shigeaki Ueki e sentimos o consolo da sua ilustre solidariedade.

Mas creio que já vem tarde. Por esta fase da civilização, pelo menos, teremos que nos conformar em viver dentro das condições que nos são impostas pela moda arquitetônica  e ambiental. Novos ricos em lua-de-mel com a técnica, os homens de agora não acreditam mais em vida natural, o seu ideal de conforto e status é o que as máquinas lhes dão, sem se importarem com o que as máquinas lhes tomam.

     Maquinolatria. É esta a nova fé.

     O Ministro Ueki reclama e muito bem contra a arquitetura que domina o Brasil, agora; arquitetura que tem horror aos elementos naturais do ambiente e faz questão de manter os usuários dos seus prédios em condições rigorosamente artificiais, como se eles não ocupassem o seu habitat nativo, onde proliferam homens e bichos há uma dezena de milhões de anos, usando e adorando o Sol, eterna fonte de luz e vida. Os novos buracos de morar inventam-se não para homens sadios e criados no planeta Terra, mas para inquilinos de uma cápsula espacial ou uma colônia na Lua.

Aí está Brasília para quem quiser ver. Linda, claro, mas em alguns casos tão insensata que a gente até duvida.

Edifícios que crescem tanto debaixo do chão quanto por cima dele — e por que debaixo do chão? E tudo tão fechado em cima quanto embaixo. Tudo lacrado no vidro e no alumínio, para que um sopro de ar de fora não penetre.

E, como diz o ministro, tudo revestido de cortinas porque há que tapar a transparência do vidro que deixa ver a luz do Sol e a paisagem exterior. A ideia, parece, é criar condições artificiais tão perfeitas, que o mesmo edifício possa ser construído na Groenlândia ou na África Equatorial, no Canadá e no Amazonas. sem nenhuma alteração importante.

O ar se aquece ou se esfria, conforme a necessidade, e tudo se faz por intermédio de máquinas, climatizadores, focos de luz, elevadores. Parece que esses arquitetos sofrem de horror e repugnância ao natural, e a concepção que têm de paraíso seria o universo de um robô.

Não entendem que a máquina deve ser apenas corretiva ou supletiva das falhas do ambiente natural, que o homem é um bicho da terra e não uma criatura de laboratório. A arte e a indústria podem lhe aliviar os desconfortos excessivos, mas não condicioná-lo à existência de um micróbio de proveta. Desde a hora em que nasce numa sala de partos esterilizada até que morre noutra sala igual, a de Tratamento Intensivo, o homem moderno é maquinizado. E vocês já pensaram que, com o tempo, isso pode começar a gerar monstros, numa etapa mutante robotizada, do velho homo sapiens criado do barro?

E depois como é caro. Em vez de uns milheiros de tijolos e alguma madeira que isolavam a morada contra o sol e a chuva, o calor e o frio, em vez do sábio jogo de janelas criando correntes cruzadas de ventilação, em vez do vidro usado apenas como pequena vidraça para admitir a luz dia — sim, em vez de em casas, nós praticamente vivemos em máquinas sofisticadas, dependendo em tudo da corrente elétrica a caríssima corrente elétrica. Além do custo da construção, pois, acrescente-se o custo da manutenção. E se a corrente elétrica dá o prego, então o mundo se acaba, é o caos, é o pânico, como aconteceu anos atrás em Nova lorque, no seu já histórico black-out.

E como é estúpido. Fortaleza, minha terra natal, lavada dos ventos da praia, tapa as janelas e liga o condicionador de ar! E tapa aquele sol radiante, acende o globo de luz. Nos navios, trancafia-se tudo, como num submarino, como se o miraculoso ar marinho, lá fora, fosse um gás letal. O bom é o ar de dentro, cheirando a tinta e a enjoo, viciado, depois de passar por todos os pulmões e todas as gripes de bordo.

Porém o exemplo mais gritante da Maquinolatria a gente vê é nos campos de futebol. Eles pagam ingresso caro, enfrentam as dificuldades do trânsito, a fim de assistirem ao jogo com os seus próprios olhos. E ficam o jogo todo com o rádio de pilha colado ao ouvido, para que o locutor lhes diga que é que eles estão vendo!
(30/12/1974)

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.