sábado, 8 de janeiro de 2011

Henrique Oliveira (O Bêbado e o Poeta)

Pintura a óleo, de Francisco Eduardo
- Faz tempo que não venho num espetáculo
- Tem leão?
- Acho que tem.
- Quer quebra-queixo?
- Quero.
- Chocolate quente também?
- Prefiro uma.
- O circo é um lugar sagrado. Você não pode beber aqui.
- Ué. Não é desrespeito beber da forma que eu bebo. Sabe disso.

A noite começava a chegar quando a fila se formava sob a gigante lona amarela e azul. O chão de terra batida era coberto pelo pó de serra. Um friozinho agradável aumentava a venda do tiozinho da barraca de chocolate quente. Osvaldo, o poeta pacientemente aguardou sua vez e pediu ao tiozinho um chocolate e se ele tinha vodka. O bigodudo lhe serviu a bebida quente e balançou a cabeça para os lados respondendo a pergunta. Enquanto fazia o troco para dez, o tiozinho lembrou.

- Não quer um conhaque?
- Pode ser.
- Com gelo?
- Não precisa. Quero quatro doses.

Antes de voltar pra fila Osvaldo passou na barraquinha de doces e comprou dois quebra-queixos. Num, deu uma pequena mordida. O outro deu para o moleque que pedia para engraxar sapatos.

- Obrigado por guardar o lugar.

A moça de vestido roxo sorriu.

- Está forte o chocolate, bêbado?
- Está bom.
- Vamos sentar aqui.
- Aqui é melhor.
- É muito perto do palco. Assusto-me com as bombinhas dos palhaços.
- Deixa de frescura.
- Demora pra começar?

Osvaldo era homem de bom coração. Com canetas e teclados transformava palavras em obras admiráveis. Era um nobre escritor. Chorava fácil. Seus ápices da felicidade atingiam-se em momentos toscos, ingênuos e infantis. O circo era um deles. As luzes se apagaram, uma lágrima desceu para a bochecha do poeta.

Gritou o homem de cartola e smoking pretos.

- Gosto de malabares.
- Eu também.
- Esses são bons.
- Vou pegar mais um conhaque.

Não tinha fila na barraquinha do bigodudo. “O senhor me vê quatro doses de conhaque e um chocolate quente”, pediu o bêbado, que sentou no banquinho de madeira do meio. O tiozinho, sem fregueses naquela hora, puxou papo com o bêbado. “Frio, né? Não gosta de circo?” O bêbado já tem ela pronta. “Gosto sim, e muito. Estou aqui fora porque queria tomar mais um conhaquinho, mas já vou voltar. Quero ver os palhaços. Adoro os palhaços. Você gosta?” “Gosto também. Já fui palhaço. Era um dos bons. Ninguém ficava sem rir. Tenho saudade daquela época.” O causo foi longo. O bêbado ouviu o bigodudo atenciosamente. Despediu-se do tiozinho e voltou para o circo. O espetáculo chegara ao fim. Sua decepção foi visível. Encheu os olhos de água e partiu em direção a porta de saída.

- Eu não vi nada.
- Quem mandou ficar lá fora?
- Não seja ruim comigo.
- Não estou sendo.
- Vamos passar no bar

Osvaldo puxou a cadeira de uma mesa que estava próxima à parede e se sentou. Puxou uma caneta do bolso, um pedaços de guardanapos do porta-guardanapo e começou a resenhar. O bêbado pediu uma vodka.

- Vai tomar vodka?
- Não quero mais conhaque.
- Você está triste por ter perdido os palhaços?
- Um pouco.
- Vamos voltar ao circo amanhã.
- Ótimo.

O bêbado, completamente embriagado levantou-se. Foi ao balcão.

- Eu quero mais uma vodka. Marca pra mim. Estou indo embora.

Responde o dono do boteco: “Vou pendurar, mas preciso que você me pague na semana que chega. Combinado Osvaldo?” “Combinado”, responde o bêbado que foi para casa terminar o conto que havia começado.

Só fico sóbrio para corrigir a gramática do que crio na embriaguez.
Osvaldo, o poeta.

Fonte:
http://oliveirando.blogspot.com/2009/09/o-bebado-e-o-poeta.html

Lino Sapo (Poesias Escolhidas)


JARDIM DOS SONHOS

Abra seu coração e liberte a solidão
Vá até a porta do egoísmo e o prenda com as algemas do altruísmo.
Ache o lugar onde guardou seu ódio e o extraia até a última gota e as lance no fogo do perdão
Atice com coerência,
Para que a temperatura seja correspondente a da razão.
Para apagar o fogo use a lógica,
Depois junte as cinzas no caco da esperança
E misture com honestidade
Deixe descansar por algum tempo à sombra da ética.
Quando estiverem homogêneas plante uma semente do bem
Aguai todos os dias com muito amor,
Quando a paz estiver desabrochando adube com dignidade
Aguai e adube sempre e em pouco tempo colherás felicidade
Tire uma semente e deixe secar aos raios da sabedoria
Embrulhe na gratidão e amarre com solidariedade
Presentei alguém e peça que continue fazendo
Só assim existirá o jardim dos sonhos
Que brotará unicamente da simplicidade
Para que o jardim seja sempre vivo.
Use como inseticida para o orgulho a humildade

POESIA DA CACHOEIRA

Cachoeira do sapo desvirginada antes de nascer ,
Por tropeiros valentes em suas entranhas a percorrer.
Nascida isolada depois de batizada em recantos tão errantes,
Crescendo cheia de vida adotada por pais distante.
Com remonto de segredos que embeleza o existir,
Triunfante como um cometa no seu curso a seguir,
Foste menina que a infância não celebrou,
Devendo obediência a quem não se importou,
Adolescente rebelde que já que andar sozinha,
Nos caminhos da vida já sabe cobrar carinho.

Sempre fostes mãe antes que soubesse caminhar,
De seca a inverno sempre no mesmo lugar
Um presente que Deus deu a quem não sabe cuidar,
Guardas em teu seio segredos de lutas longas a conquistar.
Tua alma espelha a grandeza daqueles que a povoou,
E chora com saudade aqueles que te amou.
Entre o chorão e o purão tuas lagrimas despejou,
Por Inês que foi embora e Sofia que não chegou.
Tão linda como era quando belas fica a encantar,
Mas triste como Danaê sem a chuva a encontrar.

O sol que brilha nascendo por trás das serras a coroa de magia,
E a criança que chora procurando o peito da mãe
É tão viva quanto a lua que a vigia.
Teus rochedos são tão fortes que parecem Sansão.
Tens ventos suaves que alivia o fardo do pobre coração.
Cachoeira das Damianas,das coroas de espinhos.
Sois cigana que sangra cada ano um pouquinho.
Teu poeta é tão simples que nem parece existir,
Mas te louva com amor e te planta na memória
Para no futuro te dividir.

CACHOEIRA DO SAPO

A minha amada terra (Cachoeira do Sapo)

Onde as águas rolam fortes, onde as pedras são sem igual
Onde o vento é maravilha, onde tudo é bem normal
A natureza é uma beleza, E que por aqui ficou
A fauna e a flora que o tempo conservou.
Tudo é maravilhoso, por aqui se pode ver
Já sabemos quem criou, e agradecemos ao senhor.
Como prova de sua grandeza essa terra povoou
Com criaturas exóticas e homem de valor
Obrigado pelo presente que vós nos deixou
O orgulho dessa gente, é que cachoeira do sapo se tornou.

Que eu sou cachoessapense, eu sou.
Com muito orgulho e muito amor.
Cachoeira do sapo eu sei,
Nesta terra me criei.

Foi aqui que eu nasci, por aqui aprendi
O que deve cultivar, o amor e a alegria
Sempre em grande parceria, eternamente iremos levar.
Nossa dor é quase nada e foi imediatamente superada,
Transformada em piada para quem nos escutar.
E a força dessa gente, se deve ao lugar
Nossa historia é forte, não se pode duvidar
Houve conflitos teve mortes, Mas deixou tudo pra lá
Hoje o povo é feliz e pode se orgulhar,
Pois nos restou, a paz para contemplar.

Que eu sou cachoessapense, eu sou.
Com muito orgulho e muito amor.
Cachoeira do sapo eu sei,
Nesta terra me criei.

De seca a inverno, de janeiro a dezembro
Essa terra não deixou seus filhos morrerem em desalento
Água pra matar a sede e pão pra saciar fome
A vida por aqui é bela, e molda nosso homem
De Pedro leite a Junior Bernardo, de Silvio a andrelino
Vivemos de realizar sonhos, que nasceram quando menino
De Neném loicera a Zé Quixaba, de Nicolau a expedito
Nossa sociedade é organizada, esse é o lado mais bonito
São José nosso padroeiro e também bom protetor
Ajude aos filhos de cachoeira do sapo, a viver com muito amor.

Que eu sou cachoessapense, eu sou.
Com muito orgulho e muito amor.
Cachoeira do sapo eu sei,
Nesta terra me criei.

MINHA TAPERA


Quem dera fosse uma mansão
Com quarto, cozinha, banheiro e salão.
Não, não era.
Era miúda com cacto crescendo em suas telhas,
Como cresce verrugas em crianças que contam estrelas.
Tortinha e pensa,
Baixinha e magra,
Suas varas apareciam amarradas com embira
E coberta com folhas de marmeleiro.
Parecia um menino buchudo e desnutrido
Com os pés cheios de feridas.
Assim, ficava
Quando o barro começava a caí dos paus que a segurava.
Barroquenta e fria,
Com meus pés tocando o chão,
A sentia e a via,
Com os olhos remelentos rodeados de mosquitos.
Suas janelas viam os lados
E quando suas portas se fechavam,
As tramelas eram transpassadas
Para dar segurança;
Segurança desnecessária.

Em suas paredes estavam as digitais
Dos dedos marcados no barro seco,
Legado da luta que foi construí-la.
E as frestas de suas telhas,
Quando não tinha uma lata de óleo aberta substituindo uma,
Clareavam o chão batido do piso.
As restas redondinhas ou ovais
Seguiam seu caminho ao contrário do sol.
Em suas rachaduras,
Ficava o habitat dos insetos,
Que furavam seus buraquinhos redondos.
Maribondos também faziam suas casas
Nas linhas de facheiro ou nos caibros de mufumbo.

Minha tapera,
Que não era só minha,
Abrigava sapos, ratos,
Cobras, lagartixas, víboras, maribondos e muriçocas.
Minha tapera,
Que na chuva quase se desfazia por completa
e que na minha infância seu barro era comestível
Tão fria e lamacenta,
Fedorenta e fumacenta.

Lembro ainda do teu fogão de lenha,
Das tripas e preás espendurados num cordão,
Da portinha toda emendada,
Dos armadores da minha rede,
Do pote no canto da sala,
Do cupinzeiro na furquia.

Ah! Que lembrança salgada,
Lembranças das noites mal dormidas
Em que as goteiras caiam dentro de minha rede
Ou os grilos cantavam nos rachões do barro até de manhã.
Velha minha,
Velha tapera,
Hoje já não estais aqui.
Teu barro foi nas águas do riacho
Que tanto nos acordou no meio da noite (com água)
Querendo nos levar.
Tua madeira foi queimada nos fogões da vizinhança
E nas fogueiras de são João.
Tuas poucas telhas
Não serviram para nada,
Nem mesmo para cobrir a casa do meu cachorro,
Virou aterro para o baldame de tua substituta.

Minha querida tapera,
Da minha infância nostálgica,
Ainda lembro de teus quatros repartimentos,
Da meia parede,
Dos papelões tapando teus buracos,
Das pontas de vara nos portais
Arranhando-nos os braços ao passar.
Quantos sonhos de te substituir
Elaborados dentro de ti!
Separamo-nos
Como quem há tempo desejava.
Mesmo ao longe,
Via-te erguida.
Tristinha,
Como se sentisses a minha saída.
Em pouco tempo,
Viesses ao chão
Se desmanchando por completa
E não duraste muito até desapareceres,
Ficando apenas marcas tuas
Do lugar onde foste erguida.
Não te guardei os restos mortais pequenina,
Mas te gravei pra sempre em meu coração,
Que parece te encontra em cada arranha céu que vejo,
Hoje, ele parece ser do mesmo barro que você,
Pois acolhe a todos
Dentro de seus limites, que queira nele viver.

(Homenagem a tapera em que vivi minha infância)

Fonte:
http://linosapovidaeobra.blogspot.com/

Lino Sapo (1981)


Andrelino da Silva (Lino Sapo) nasceu no dia 06/01/1981, no distrito de Cachoeira do Sapo/RN. Filho do casal José Adelson da Silva e de dona Damiana Lúcia da Silva.

Foi o segundo filho do casal num total de cinco. Após seu nascimento foram morar em outras casas do lugar somando num total de doze casas e um pé de árvore por um dia. Começou seus estudos no Projeto Casulo, e sua primeira serie fez na mesma escola que nasceu, agora reformada e em atividade.

Aprende a ler influenciado pelos livros de cordéis que via seu pai ler. Em 1989, seu pai se separa de sua mãe deixando apenas com seus cinco filhos onde a mais velha tinha 10 anos e a mais nova estava na barriga com dois meses.

Andrelino encontra na escola uma oportunidade de fugir de sua realidade, já que a fome e tantas outras necessidades o faziam sofrer diversas formas de preconceito tanto racial como econômico.

Faz seu ginásio em Cachoeira do Sapo, e conclui seu ensino médio em 1998, aos 17 anos. Considerado como vagabundo por gostar e andar com livros pra cima e para baixo, foi amante da literatura no qual se apaixona por personagens como dom Quixote e Policarpo Quaresma.

Trabalhou como carregador de ração de porco durante nove anos, foi carvoeiro, batedor de tijolo e arrancador de toco. Mesmo não tendo apoio fundou o PLUJET, grupo de jovens que trabalhava com o desenvolvimento social e cultural de Cachoeira do Sapo, no qual ocupava a função de diretor de eventos, colocando sua pequena cidade na mídia ao realizar a festa de comemoração dos 70 anos de Cachoeira do Sapo no ano de 1999.

No ano 2000 foi soldado do exército, onde começou a criar suas primeiras poesias. Ao terminar seu ano no exército retorna para Cachoeira do Sapo onde funda no ano 2001 o Arraiá do Sapo, o primeiro grupo de quadrilha matuta a disputar em festival e a ganhar destaque no meio cultural da região conquistando seus primeiros troféus.

Criador de peças de teatro e também ator, investiu por conta própria na cultura de Cachoeira do Sapo pesquisando e escrevendo história local. No ano de 2003 foi trabalhar em Natal como servente de pedreiro, lugar onde se encanta com a Universidade Federal.

No ano de 2005 presta seu primeiro vestibular. Passando em décimo lugar para o curso de Biblioteconomia, se tornando o primeiro cidadão Cachoeissapense a entrar na Universidade Federal, saindo do interior e estudando somente em escola pública sem nunca ter feito cursinho.

No mesmo ano passa no concurso para agente de saúde da Prefeitura Municipal de Riachuelo. Também começa a fazer o curso de História na Universidade potiguar UNP.

Em 2006 torna-se palestrante do projeto conheça a UFRN através do residente, motivando os alunos do interior do estado através de sua história de vida.

Também leva para o interior a idéia de que é possível chegar a universidade, e começa a dar aulas solidariamente para alunos tanto do interior como de outros.

No ano de 2007 se torna conselheiro da residência universitária CAMPUS II, durante um ano. Nesse mesmo ano escreve a fabula Inês.

Em 2008 apresenta na câmara municipal proposta de um projeto de lei que para cada criança nascida no município, um livro seja comprado, dedicado à criança e inserido na biblioteca pública do município.

Suas poesias são trabalhadas a nível acadêmico e além de despontar o patriotismo da terra que nasceu, apresenta as situações econômica das famílias humildes do interior do estado.

Atualmente Andrelino ou Lino Sapo, nome que ganhou por ser dessa terra e ter herdado do sapo a característica de ser persistente.

Bacharel em biblioteconomia, licenciado em Historia pela UNP, aluno de letras da UFRN, e mestrando de Ciências Sociais pela UFRN. Tem como ícone de suas poesias coisa do sertão de antes, e o conto Conhecendo os Nomes das cidades do Rio Grande do Norte (publicado neste blog), além de livros e outras tantas poesias.

Fonte:
http://linosapovidaeobra.blogspot.com/2010/06/biografia.html

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.89)


Uma Trova Nacional

O galo, olhando a pombinha,
pecou por mau pensamento:
– “Que pena que essa baixinha
comeu tão pouco fermento!...”
(OSVALDO REIS/PR)

Uma Trova Potiguar

Pra velhice não tem rogo,
parece até uma praga;
aos sessenta baixa o fogo
e aos oitenta o fogo apaga.
(HILTON DA C. GOUVEIA/RN)

Uma Trova Premiada

2009 > Bandeirantes/PR
Tema > ARRUAÇA > Vencedor

Baita arruaça, bravatas,
um tremendo sururu...
Frangas, marrecas e patas
brigando por um peru!
(A. A. DE ASSIS/PR)

Uma Trova de Ademar

Fiz a “pergunta" ao espelho,
que para não me ofender,
disfarçou, ficou vermelho
e não quis me responder!
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

A solteirona infeliz
viu sua casa assaltada,
ladrão levou o que quis:
menos a pobre coitada.
(GRAZIELA MONTEIRO/MG)

Estrofe do Dia

Um falso intelectual,
travestido de leitor,
chega ao distribuidor,
um livreiro, sem igual.
Vê o catálogo geral,
pede, demonstrando anseio:
Destes, bote um metro e meio,
e grita todo arrogante,
eu quero encher minha estante,
mas, lê mesmo, eu nunca leio.
(FRANCISCO MACEDO/RN)

Soneto do Dia

– Glauco Mattoso/SP –
PECHINCHADO.
(a Luís Fernando Novoa Garzon)

Comércio entre nações não tem acordo
que seja de interesse a cada parte.
Quem pode mais garante o que lhe farte
e para o menos forte exibe o lordo.

O lado americano quer que o gordo
bocado lhe pertença, e só reparte
com outros seu refugo e seu descarte,
mas isca desse tipo eu cá não mordo.

Agora nos impingem a tal ALCA,
balela disfarçada de franquia
que menos favorece que desfalca.

Não basta o que depena e o que tosquia
da gente quem nos pisa a cara e calca
a sola, e inda esse gringo quer que eu ria?

Fonte:
Ademar Macedo

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Pedro Ornellas (Escolha das Semifinalistas das Melhores Trovas)


Prezados irmãos trovadores!

Encerrada a etapa de indicações pelos autores, na qual todos foram convocados a votar nas trovas indicadas, queremos agradecer a excelente participação, e ressaltar que todas as trovas indicadas eram de alto nível.

Assim, caso tenha indicado trova e ela não tenha logrado os dois votos necessários para entrar na lista, não se aborreça.

Continuemos adotando o espírito expresso pelo Príncipe dos Trovadores, Luiz Otávio, que disse:

Festejo tanto e bendigo,
vitórias que os outros têm,
que a vitória de um amigo
parece minha, também!

Tivemos o seguinte resultado:
Trovadores que votaram: 22

Trovas escolhidas e que entraram na lista das semifinalistas:
1, 2, 4, 5, 6, 7, 9, 11, 15, 19, 20, 21, 23, 27, 29, 32, 33, 34

Estas foram distribuídas nas vintenas finais para escolha das 100 melhores trovas de todos os tempos.

Com essas inclusões finalizamos a etapa de indicações e ficamos com um número total de semifinalistas aumentado para 220 trovas.

Passaremos a enviar as 3 vintenas restantes, para escolha de vocês.

Meu abraço a todos!

Na reta final, fizemos um preâmbulo, convidando os trovadores a sugerir trovas de autoria própria que julgassem merecedoras de entrar para a lista das semifinalistas.

As trovas, por hora, sem menção do autor, para não influenciar na votação foram:
(Em negritado as selecionadas)

-

1
Estamos juntos, mas sós,
nossa solidão somada,
fez de ti, de mim, de nós,
a soma triste do nada!
2
Sozinhas nas madrugadas,
donas do mundo e da lua,
nossas mãos entrelaçadas
seguem juntas pela rua!
3
Quando o mar beijar teus pés,
fita o céu por um segundo,
assim saberás quem és:
um grão de areia no mundo!!!
4
Que pena: o sol, – ato falho –
ao lhe ofertar seu calor,
matou a gota de orvalho
que brincava sobre a flor!...

5
Esbanja carisma a lua,
que, alheia a qualquer conflito,
consegue, pálida e nua,
vestir de charme o Infinito!

6
Ante um grito, não se abata
por não ter respostas prontas,
que o silêncio é a mais sensata
e a mais nobre das afrontas!
7
Meu perdão foi em tributo
a uma lágrima suspensa,
um detalhe diminuto,
mas, que fez a diferença...
8
“Esquece!”, a razão exclama,
quando a saudade decide
acarinhar o pijama
que esqueceste no cabide...
9
Do cais, aceno ao vazio,
enquanto o remorso chora...
Castigo, é alguém no navio,
levando o perdão embora...
10
Quem tem sonhos hoje em dia,
não perca nunca a esperança.
Diz velha sabedoria:
“Quem espera sempre alcança!”
11
Nas noites de dissabor,
quando a saudade é cruel,
o poeta imprime a dor
num pedaço de papel !
12
Eu me lembro, com saudade,
da madrugada de outrora,
mamãe, na extrema bondade:
“Filha acorda, está na hora.”
13
Com pincel remanescente
que a saudade me legou,
pinto a vida sem presente
que o passado me roubou.
14
Da minha terra encantada
eu guardo a estação mais bela,
o canto da passarada
e os meus sonhos de janela!
15
O Deus que fez lago e monte,
que fez céu, mar, noite e dia,
fez do poeta uma fonte
por onde jorra poesia...
16
A mais triste Solidão
que os seres humanos têm
é abrir o seu coração,
olhar... e não ver ninguém!
17
Ao ver, de uma árvore, o corte,
minha angústia é paralela...
Eu sinto as dores da morte,
na dor dos “gemidos” dela!
18
Anote e depois confira,
visando o seu próprio bem:
meia verdade é mentira;
verdade e meia, também!
19
A noite, que nunca passa,
deu à insônia mais destaque
e um relógio, por desgraça,
ri de mim, no tique-taque!
20
De estrelas toda bordada,
porta aberta para a rua,
a tapera abandonada
abriga os raios da lua.
21
Eu faço das fronhas lenços,
nas longas noites sem sono
e os lençóis, braços imensos,
abraçam meu abandono…

22
Vê como a sorte judia
do nosso amor (coitadinho!):
tua cama tão vazia,
e eu na minha, tão sozinho!
23
Sofre o revés mais que justo
quem da ambição não se esquece
ao tentar a todo custo
conquistas que não merece!
24
Venceste alguém... e sorris
numa explosão de prazeres...
Serás, porém, mais feliz
quando a ti mesmo venceres!
25
"Eu volto!" - Falsa promessa
que ela ainda crê verdadeira,
pois, da varanda, não cessa
de contemplar a porteira...
26
Não desgastes, noutros leitos,
o ardor dos abraços teus,
pois teus braços foram feitos
para refúgio dos meus!
27
Navego em noite estrelada,
sulcando as ondas, sem vê-las:
meu corpo está na jangada,
minha alma está nas estrelas!
28
Meu coração foi bagual
redomão e escarceador.
Hoje, manso, lambe o sal
da saudade de um amor.
29
Quando, aninhado em teu peito,
fito teus olhos serenos,
sinceramente suspeito
que no céu há um anjo a menos.
30
Que bom, chegando aos sessenta,
saber, revendo os meus passos,
que é o bom DEUS que me sustenta,
e me carrega em SEUS braços ...
31
Não culpes os infelizes
com rudeza fria e crua,
a culpa dos seus deslizes
pode ser menor que a tua!...
32
Guarda sempre esta mensagem
da própria vida que diz:
É feliz quem tem coragem
de acreditar que é feliz!
33
Percebo, com desconforto,
que ainda sou teu vassalo:
nosso passado está morto,
mas não consigo enterrá-lo!
34
Tanto amor e afinidade
entre nós dois, já se vê,
que perdi a identidade:
eu sou eu... ou sou você?

Fonte:
Pedro Ornellas

Nilto Maciel (Poesias Avulsas)


CONHECIMENTO

Poucos conseguem
entender o verbo,
por mais comum que seja.

Muito menos,
o silêncio.

ARCO ÍRIS

As árvores tocavam alaúde,
requebravam-se bailarinamente
ao escapar dos ventos e das nuvens.

As torres das igrejas e seus pássaros
- geometrias ásperas, cadentes -
desenho branco no reverso azul.

Azafamado, o homem nem sequer
via o menino ver sua partida,
a porta aberta, a rua, seu chapéu.

Quando chovia e o sol brilhava ainda,
via o menino o espectro das cores
nos olhos da menina que sorria.

E longe deles, onde os anjos moram,
o arco-celeste a cauda aberta em leque,
em cores se curvava sobre o mundo.

Os alaúdes não se tocam mais;
há forcas pelos campos e cidades;
morcegos voam pelas sacras naves.

O homem sumiu com seu chapéu de feltro
na curva da avenida, e, mais sisudo,
nem disse ao filho expectante adeus.

Do paraíso os anjos foram expulsos.
Desvaneceu-se o arco-íris, pouco a pouco.
Menina foi, menino foi - partiram.

SONETO CREPUSCULAR

Para Francisco Carvalho

Nos campos de meu pai antigamente
as chuvas inundavam meus pensares
e do pomar do céu pingavam frutos.

Ventos ninavam aves repousadas
nas árvores vigias de seu sono,
sentinelas da luz crepuscular.

As ovelhas baliam suas crias,
os vaga-lumes alumbravam tudo
e a solidão das vacas nos currais.

Duendes se assustavam co’os trovões.
Na escuridão dos quartos o perfume
do amor gemente à sombra dos lençóis.

Invernos que de mim se evaporaram
nos campos de meu pai antigamente.

VISIONÁRIO

Da varanda do apartamento
olho para a cidade.
Torre de marfim,
torre de babel.
Árvores agitadas,
carros correndo na avenida,
pessoas andando à toa,
um cão vadio.
Cheiros diversos,
chiados, barulhos.
Onde estará o centro do mundo?
Onde estará acontecendo
a notícia de amanhã?
Dentro daquele ônibus
viajará a moça iludida
e que poderia estar comigo.
Viajará o rapaz triste,
embriagado e que poderia
me contar sua vida
- arcabouço de um conto.
O motorista irá atropelar
uma criança sem futuro.
No automóvel de luxo
vai a mulher
que brigou com o marido
e anda atrás de vingança.
Na parada de ônibus
talvez esteja o assassino
de logo mais.
Na tela do cinema
a musa de todos nós,
estrela que se apagará.
Numa cadeira
um homossexual olhará
para as pernas do rapaz
que come pipoca.
Noutra cadeira um senhor
alisará o próprio bigode
pensando no passado.
No banco da praça
o mendigo comerá pão
olhando para as nádegas
das mocinhas que passam.
No palácio o presidente
alinhará o decreto
que me dará dor de cabeça.
O deputado beberá uísque
no bar e falará de si mesmo.
Sentado num sofá o homem
lerá o romance da mulher
deitada eternamente
em berço esplêndido.
O poeta escreverá uns versos
que lerão daqui a dez anos,
versos sem rima ou sem ímã,
sem métrica e sem ritmo.
No meio do mato a onça
farejará o veado;
o macaco morderá o rabo
do tatu; a formiga
caminhará sem rumo;
e tudo estará escuro.
No rio o peixe, a água,
o frio, o pescador.
No mar o tubarão,
a baleia, o turbilhão.
No céu a estrela virando pó,
o foguete se espatifando,
o infinito e nada.

Aqui, sozinho, longe e perto
de todos, de tudo,
quero estar no centro do mundo,
na crista da onde,
quero ser testemunha do crime,
da crise, do apocalipse.
Quero ver de perto o amor, o ódio,
a solidão, a multidão.
Quero estar no palco, no show,
no centro da cidade,
do campo, do rio, do mar,
do céu, do universo.
Quero a onipresença,
a onisciência,
toda a ciência.

O JANGADEIRO

Para Edinardo, às vésperas do primeiro
ano de sua partida.

Arrodeio a superesfera
na minha jangada amiga,
rindo de quem me espera,
chorando à moda antiga.

De quantos paus ela é feita
só dizem os jangadeiros
velhos e companheiros,
fugidos da rota estreita.

Não rio por palhaçada
nem choro angustiado;
já me bastava a maçada
de ansiar o desejado.

Levo comigo a coroa
dos filhos da Eternidade,
relendo Fernando Pessoa
frente a toda realidade.

Passeio as nebulosas,
os astros, o espaço sem fim,
saudadoso das carinhosas
meninas do Otávio Bonfim.

De dois velhos meus criadores,
meu primeiro e doce abrigo,
de duas pequenas flores,
em quem pensando prossigo.

De uma soidade que amei
e que na Bahia deixei,
de sete meus germanos
deixados a fazer planos.

Dos pareceiros risonhos
do pobre Amadeu Furtado,
esses bebedores bisonhos
de fel, cachaça e melado.

Mergulho a atmosfera
montado em cavalo-de-pau,
zombando da besta-fera,
lembrando o primeiro mau.

Conduzo comigo um poema
jamais publicado em papel
para reler na suprema
corte do mais alto céu.

Vasculho os tempos perdidos
no carro dos deuses gregos,
tristonho de ver iludidos
os que ficaram aos pregos.

De recordar os pileques
que com meu mano bebi,
choroso de ver os moleques
famintos do que comi.

Cavalgo o cavalo das eras
na mais incrível carreira,
carregando uma flor de parreira
para o homem e para as feras.

Na minha ida desejei
deixar o que sempre sonhei:
projetos de muito amar
para a terra e para o mar.

O mundo que nos aguarda
não tem regulamentos nem leis,
é o país do povo sem guarda,
não tem um, nem dois, nem três,

tem milhões de seres iguais,
é a utopia dos pensadores,
o sonho dos ancestrais,
a terra só dos amores.

Comigo navegam poetas,
revolucionários e santos,
partimos no rumo das metas,
dos fins, começos e cantos

Fonte:
Visionário. Poemas inéditos.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.88)


Uma Trova Nacional

O nosso amor que o destino
vai pintando com ternura,
forma um quadro tão divino
que nem precisa moldura...
(IZO GOLDMAN/SP)

Uma Trova Potiguar

Com as rimas de rebolo
fiz um verso sem projeto
tijolo sobre tijolo,
um verso quase concreto.
(MARIVALDO ERNESTO/PB)

Uma Trova Premiada

2010 > Curitiba/PR
Tema > MADRUGADA > Menção Honrosa

Madrugada, por que insistes
- na solidão que apavora –
em arrastar horas tristes...
se eu anseio pela aurora?
(THEREZA COSTA VAL/MG)

Simplesmente Poesia

MOTE :
Nem tudo que tomba cai.

GLOSA :
Nem todo homem tem brio,
nem toda moça se casa,
nem todo fogão tem brasa
nem toda lã dá pavio.
Nem todo inverno faz frio,
nem todo filho tem pai,
nem tudo o que entra sai,
nem toda fera é valente;
nem todo lorde é decente,
nem tudo que tomba cai.
(MANOEL DE MACEDO/RN)

Uma Trova de Ademar

,

Toda menina é bonita,
toda morena é faceira,
toda cabra tem cabrita,
toda semana tem feira.
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

A saudade é como o espinho
que entra no peito da gente:
no início – dói um pouquinho,
depois... dói profundamente!
(EDMILSON F. MACEDO/MG)

Estrofe do Dia

(Em resposta a de Ontem, de J.Ouverney)

Para ser bom trovador,
inteligência não basta,
que a cabeça se desgasta
e o Q.I. perde o valor!
É preciso estar marcado
com aquele dom sagrado
que em seu coração virá!
Sim, o estudo e a inteligência,
dão-lhe conceitos, fluência,
mas alma à trova... quem dá?!
(CAROLINA RAMOS/SP)

Soneto do Dia

– Ialmar Pio Schneider/RS –
SONETO DO ABANDONADO.

Se teu amor chegasse de mansinho
e aos poucos me envolvesse corpo e alma;
se ele viesse me trazer carinho
quando me desespero e perco a calma...

Se fosses o fanal do meu caminho
e me surgisses numa noite calma,
como alguém que procura um quente ninho
para amar e aquecer o corpo e a alma...

Ambos unidos pelo mesmo afeto,
tanto sincero quanto predileto,
viveríamos horas mais amenas...

Mas enquanto não vens não tenho nada;
minha vida é uma casa abandonada
onde alguém chora a sós amargas penas.

Fonte:
Ademar Macedo

Carolina Ramos (Como de Costume...)


A majestade daquela lua enorme, exageradamente iluminada, não combinava, em absoluto, com o nebuloso astral daquele homem abatido à procura de um jeito honroso para retorno ao lar.

O dia fora terrível! O almoço, desastroso! Homem e mulher, se por uma balela qualquer se desentendem, a cada palavra cavam cada vez mais fundo o abismo que os separa, envolvidos pela avalanche verborrágica, que enrola razões, manipula argumentos, inflama egos e espicaça vaidades, na tentativa insana, de provar quem de fato é o dono da verdade.

Em poucos minutos, aquele casal, até ali tão unido, escorregara do éden conjugal para o inferno dantesco das acusações mútuas.

Lágrimas enxugadas na barra do avental e a batida violenta da porta, foram mais que convincentes para provar que o primeiro round estava findo, mas a luta , não.

Mirna empilhou os pratos sobre a mesa, transportando os copos para a pia, sem conseguir evitar que um deles se espatifasse a seus pés. Catou os cacos resignada. Era o primeiro copo quebrado, daquele bonito jogo azul, bico de jaca, presente de casamento da tia Júlia. Gostava dos copos. E mais ainda, da tia. Contudo, a dor que lhe doía no peito era tão forte que nem sentiu a perda. Com raiva, atirou os cacos na lata de lixo.

Largou-se em seguida na cama, soluçando desconsolada. Algum tempo depois, socava o travesseiro, como quem socasse a cara do marido desaforado...

De volta à pia, filosofava: - Por quê são os homens tão incompreensíveis?! Tão intransigentes, a ponto de comprometerem um diálogo sadio... um acerto de opiniões, uma análise de pontos de vista capazes de levar ao consenso ou, quem sabe, à discordância, já que nem sempre duas cabeças pensam de forma igual. Sempre cheios de razão ...incapazes de admitir um erro... dar a mão à palmatória... E, que fácil seria dizer: - “Desta vez, errei, querida” . Até que aquele querida poderia ser dispensado. Bastaria dizer: - Errei, pronto! Perdoa, sim? – Claro que, depois disso, tudo terminaria bem. Qualquer mulher, mesmo entre raios e trovoadas, agiria assim, com aceitação... com naturalidade. Mas, qual deles à beira de uma tempestade, pensaria em valer-se do guarda-chuva do perdão, mesmo sabendo ser, essa. a única solução?

A esponja da filosofia, ajudou... e a louça foi lavada com requinte. A cozinha, arrumada, ganhou ares de cozinha de revista. Na fruteira, o brilho das frutas foi despertado pela flanela, em lustro vigoroso. As maçãs ficaram mais rubras, apetitosas. A raiva da moça exagerou no esfregão, a ponto de machucar uma delas.

Precisava ficar mais calma. Nenhum homem merecia uma lágrima de mulher – isso lhe dissera tantas vezes a mãe – pobre mãezinha, quantas vezes a vira chorar em silêncio!

O chuveiro lavou-lhe corpo e alma. Maquiou-se com cuidado e perfumou-se. Nenhum gladiador adentra a arena desarmado. Faltava pouco para o retorno do marido. Retornaria? - Ah... haveria de ouvir poucas e boas!

Dedos nervosos pegaram o tricô e ligaram o televisor. Tempo de novela. Tanto drama em casa e aquela mania tola de imiscuir-se nas tramas televisivas, como se a vida não passasse de histórias somadas entre tapas e beijos... briguinhas e abraços , intrigas e enrolações, quase sempre encaminhadas para um final feliz, a premiar bons e castigar maus. Como se tudo pudesse ser resolvido por toques no teclado de um computador, à disposição dos dedos do autor. Como se aqueles dedos fossem pequenos deuses a tal ponto poderosos que capazes de criar vidas, tecer tramas e alterar destinos, a bel prazer.

Envolta em mágoas, Mirna deixou escapar a malha do tricô e perdeu o fio da novela. Ao ouvido atento, porém, não passou despercebido o torcer da chave na fechadura.

Ele! Sequer virou a cabeça ou desgrudou os olhos do vídeo. O tricô...

Esperava pela primeira palavra, que não veio. A tensão cresceu quando sentiu a aproximação do marido. Teve vontade de encará-lo. Conteve-se. Ele sentou-se no sofá ao seu lado. Tenso e mudo.

O corpo da moça retesou-se, pronto para recomeçar a batalha verbal interrompida.

Relaxou, quando sentiu a cabeça do marido aninhar-se no seu colo, como de costume. E, como de costume, os dedos dela deslizaram mansamente pelos cabelos macios, como que alisando, com a ternura de sempre, o pelo macio de um gato fujão.

Naquela noite, o amor falou tão alto... que nem foi necessária palavra alguma!

Fontes:
A Autora
Imagem =
http://www.fotosdahora.com.br

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Pedro Ornellas (Rinha de Trovas) 1, 2, e 3. Rounds

Você não pode perder estes rounds... tem muita gente fugindo, mas tem maluco entrando...

  • 1 Round

    Tudo começou com esse trovemail do Francisco Macedo (RN), para a escolha das melhores trovas:

    Nessa verdadeira "rinha",
    eu digo para vocês:
    Eu votaria na minha,
    se não fosse a dezesseis!

    Eu, Pedro Ornellas , mandei a resposta (a trova 16 é do mano dele):

    De brigas não tenho medo,
    mas quando a briga é trovando,
    Deus nos livre dos Macedo...
    - eles atacam de bando!

    Aí, a Gislaine Canales gostou da brincadeira...

    Esta “rinha” está gostosa,
    pois, vocês dois têm razão,
    motivos, para ser “prosa”...
    E, encontram a perfeição!!!

    A Carolina Ramos tentou fazer um acordo e sair de fininho...

    Eu, que não gosto de briga,
    caio fora no começo...
    e talvez assim consiga,
    no fim, a paz que mereço!

    A Verônica Martins também prefere não se arriscar, e mandou logo duas trovas:

    Já trombei com Ademar,
    fiquei pasma, desmaiei,
    como pode alguém trovar
    com a inspiração de um rei?

    E se trombar com Francisco
    eu vou é morrer de medo,
    não quero correr o risco
    de encontrar com os “Macedo”!

    Já a estratégia do Milton Souza é: "não pode com eles, junte-se a eles":

    Eu não costumo correr,
    mas não gosto de apanhar:
    quero ser, quando crescer,
    um Francisco ou um Ademar...


    O Zé Lucas, que conhece as feras, deixa um aviso:

    Afoito, Chico Macedo
    abriu guerra sem quartel,
    e louco é quem mete o dedo
    em presa de cascavel.

    A Ruth Farah também bateu em retirada:

    Com os Macedo não me meto:
    reconheço meu lugar...
    (Esses "cobras", em dueto
    não têm mais o que inventar...)

    Mas, peraí... parece que finalmente apareceu alguém macho o bastante para enfrentar a temível dupla de cangaceiros potiguares! (carma, Divenei, num tá veno que é só uma força de expressão?)

    Não sou boa no improviso,
    mas, também, não tenho medo
    e, siceramente, aviso:
    Macedo algum me põe medo...

    Agora fiquei preocupado... Coroné Macedo num vai dexá barato, não... vamo esperá pra vê.
  • 2 Round

    Eu bem que avisei! Agora o ômi ficou nervoso! Resposta do Francisco Macedo:

    Do meu “chão” faço a defesa,
    pois de mulher não apanho:
    Mulher minha é “cama e mesa”
    e aqui e acolá, um banho!

    O pior é que você desafiou os dois... e o Ademar Macedo não gostou...

    Já que eu também fui citado
    e a inspiração me sobra,
    Divenei, Tenha cuidado...
    Pisaste em ninho de cobra!

    E agora, Divenei? Será que seus amigos sulistas vão te socorrer?
    Xiii... se depender desses pindamonhangabenses cê tá na roça...
    Eles só sabem mesmo é fazer trocadilhos. Não conte com o Zé Ouverney...

    Macedo com Divenei
    desmontam qualquer enredo;
    eu, como sou Ouverney,
    não sou de ceder, mas cedo!

    E os conterrâneos, será que têm fibra pra enfrentar os terríveis Irmãos Macedo?
    Diz aí Juraci Siqueira:

    Só de na rinha pensar,
    eu chego a tremer de medo!
    Enfrentá-los? Nem pensar!
    Deus me guarde dos Macedo!!!

    Danou-se! Mas nem tudo tá perdido. Apareceu um paulista corajudo, cabra de peito, daqueles acostumados a pegar onça no mato pra surrar com cascavel! O nome desse cavaleiro intrépido e arrojado: Thalma Tavares:

    Se eu entrar nesta porfia
    nenhum Macedo me assusta.
    E se a arma for poesia
    entreverar não me custa.

    E pra mostrar que no nordeste também tem cabra raçudo, que não foge da raia (ou da rinha), eis que surge, batendo de frente com os Macedos, nada menos que ele: Haroldo Lyra:

    Enfrento enxame sem véu,
    não me intimidam abelhas.
    Das colméias puxo mel
    e dos Macedo - as orelhas!

    Nessas alturas, o Francisco Macedo prefere dar uma suavizada e manda um recado pra relienta da Divenei:

    Correr eu não correrei
    desta tão "gostosa rinha".
    Digo à mestra Divenei....
    "Abença" minha madrinha!

    Será que com isso vai esfriar a briga? Ou tem trovador afiando as esporas pra ver se os Macedos fazem jus à fama e têm munição na cachola?
    E a Divenei? Será que se escondeu? Vamos aguardar...

    3 Round

    Nesse 3º round quem se apresentou primeiro foi o cavaleiro andante Thalma Tavares, defendendo a mocinha...

    A Divenei não se esconde,
    é valente, é corajosa
    e de pé sempre responde
    esgrimindo o verso e a prosa.

    O Thalma tem razão... Divenei não se esconde, olha ela aí! Só que em vez de florete, ela empunha uma arma bem mais perigosa:
    a confiança na sedução feminina que bota debaixo da sola qualquer machão arretado do nordeste ou guasca peleador dos pampas...

    Não tenho medo, ao contar,
    (bom que saibam:) porque o medo
    não me faria aceitar
    ser RAINHA de Macedo...

    O Ademar é meu comparsa...
    Temo aumentar muito a sede:
    pois o danado (foi farsa?)
    já me ofereceu sua rede...

    Diva, não precisava ficar revelando esses particulares... tu vais dexá o ômi vexado...

    Tem nada não, pruquê a Carolina Ramos não só confirma o poder da supremacia feminina, como revela a astúcia da fêmea na questão de mostrar quem manda de fato...

    Não entro em briga de macho,
    e se a Divenei entrou,
    com talento, leva, eu acho,
    os louros que nem sonhou!

    Que ante a dama, o homem, de fato,
    mesmo que a sorte o bendiga,
    conhece o momento exato
    de ganhar "perdendo" a briga!

    Enquanto ela sugere que os Macedos entreguem os pontos, o Zé astucioso que só, acha que o abrandamento macediano é pura enganação...

    Isso de pedir "abença"
    é trama sutil e torta,
    Divenei, se você pensa
    que o Chico fugiu... Tá morta!

    E tem razão o Zé! Bastou cutucar o leão que ele esturrou e pulou da moita Ma-cedo do que a gente pensava:

    Sou igual o trem na linha...
    - Que esfria briga que nada!
    Quem se meter nessa "rinha",
    vai levar muita "trovada"

    Com verso faço um facão,
    e com rima, uma pexeira.
    Tenho a métrica na mão...
    - Nordeste é a minha trincheira!

    Quando o leão ruge, só se vê bicho na carreira... até peixe foge! Né memo, Darly Barros?

    Contra a dupla eu não me arrisco,
    - os irmãos têm conteúdo -,
    e , ante o Ademar e o Francisco ,
    sou só um peixe miúdo...

    Tal rinha eu não alimento,
    Só quem é maluco investe
    contra o inegável talento
    desses dois cabras da peste!

    Será que Humberto Poeta entra nessa briga de foice?

    Não entro, pois não sou tolo,
    nessa rusga em tom faceto;
    longe de mim esse rolo,
    nessa briga eu não me meto!

    E o Newton Vieira tem algo a dizer ou prefere ficar no seu cantim, quetim, como todo mineiro que se preza?

    Prefiro ficar na minha:
    entre o Francisco, o Ademar
    e a Divenei, numa rinha,
    acho melhor me calar!

    Dorothy Moretti, será que topa desapartar os briguento?

    Briga de "cabra-da-peste"?!
    Não boto nela o meu dedo;
    sou sapo aqui do Sudeste,
    que se ferrem... os Macedo!

    Roberto Acruche também prefere garantir a integridade do lombo, mas acredita que alguns vão encarar.

    Assim vou saindo fora
    e de longe vou olhar,
    é melhor correr agora
    do que ficar e apanhar.

    Porém... o Thalma e o Lyra...
    Vão querer continuar...
    Da briga, ninguém os tira...
    Não sei como apaziguar!

    Todo esse quiproquó chamou a atenção da Verônica Martins, que pra se safar, dá uma de repórter (policial):

    Debater como os Macedo
    se transformou em notícia!
    Se todos estão com medo,
    Isto é caso de polícia!

    Mas se muitos preferem ficar de longe por amor ao pescoço, outros dão mais que um boi pra entrar na briga... certificando-se, claro, de ficar do lado mais temido... é o caso da Elisabeth Souza Cruz:

    A coisa pegando fogo
    e eu por fora desta briga??
    Também quero entrar no jogo,
    fazer parte desta intriga!!!

    Já que entrei com muito atraso
    perdendo parte do enredo,
    já vou revelando um caso...
    - sou amiga de Macedo!

    Esta dupla é de lascar
    e a eles ... troféu concedo...
    por Francisco ou Ademar,
    tanto faz... tudo é Macedo!

    Elogiar também vale pra ficar de boa... essa é a estratégia do Nilton Manoel:

    Cosme e Damião da trova...
    fundaram até cidade!
    um na aurora se renova
    o outro? é bom de verdade!

    Outros pra apaziguar até misturam atributos lá de riba com os lá de baixo... pexeira com bombacha, chimarrão com chapéu coco... e por aí vai, num é, Lothar Bazanella?

    Mas ôigale briga linda
    que gera versos, não morte,
    dos trovadores de Pinda
    com os gaúchos do norte!

    E no mei de tanto caba froxo, té que einfim apareceu um nordestino da venta roxa.

    O nome dele é Francisco Pessoa, e ele pega pesado:

    Não entendí porque "RINHA"
    pra construir esse enredo,
    pois essa dupla galinha
    até de galo tem medo!

    Sei não, mas acho que o Pessoa tá sentindo arguma tremedeira nos Macedo, pruquê um deis nem deu as cara nesse round...

    Será que vão amarelar??? Será que tão sem munição???
    Sei não... tudo pode acontecer... vamos aguardar!

Fontes:
Pedro Ornellas
Montagem de trova sobre imagem obtida em http://www.senna.globo.com/

Domício da Gama (Maria sem Tempo)


Era magra, pequena, escura. Tinha a extrema humildade dos que vivem longos anos sob o céu destruidor, sem pensar ao menos em resistir à sorte, com a passividade inerte da folha que o vento rola pelos caminhos. Era assim mirrada e seca e sombria, como se tivesse perdido a seiva ao ardor dos estios, como se guardasse das noites sem estrelas o negrume cada vez mais denso.

Era louca, porque só tinha uma idéia, e a criatura humana pode não ter idéias, mas não pode ter uma só. A sua era o angustioso desassossego das maternidades malogradas. Perdera um filho e o procurava. Andava pelos caminhos para buscá-lo e só levantava a voz para chamá-lo, ansiosamente, carinhosamente: "Luciano! Meu filho!..." E escutava longo tempo por trás nas cercas, no aceiro dos matos, à entrada dos terreiros das fazendas, nos desertos e nos povoados, onde quer que a levasse a sua dolorosa esperança. Aquela figura miserável, toda feita num gesto indagador, com a mão abrigando os olhos, à espreita, ou levantando o chale que lhe encobria a cabeça de cabelos hirtos, para ouvir melhor a resposta ideal, aquela encarnação de um desejo sempre iludido enturvava o esplendor do mais radioso meio-dia.

Gente compassiva, donas de casa a quem se apertava o coração ouvindo ecoar pelas estradas o seu reclamo desolador, quiseram rete-la, dar-lhe amparo e agasalho: "Aonde vai, Sinhá Maria? Fique com a gente, mulher! Por estes sóis que matam, assim ao desabrigo do tempo, o que faz uma criatura de Deus? Descanse uns dias e vá então..." Mas a louca se escusava resolutamente: "Não tenho tempo, minha senhora. Vou ao encontro do meu Luciano, que me disse que havia de voltar. Como não tenho mais casa, preciso de estar no caminho. Não vá ele passar enquanto aqui estou..." E se precipitava para fora exalando o seu grito: "Luciano! Meu filho Luciano!..."

E Maria sem Tempo não era uma lição, nem um castigo, nem um exemplo. Se alguma coisa ela provava, era que há sofrimentos que nada provam e que nada justifica, que são, pela razão obscura daquilo que tem de ser. A sua miséria nem mesmo era trágica, porque não exclamava, não lutava, não indagava. O céu rigoroso era-lhe como um senhor cruel, que a pobre escrava não entendia e sob cujos golpes se encolhia apenas. Vivera para ser mãe: sofria disso, como disso outras jubilam.

Quem a encontrava pelos desertos, longe de todo o amparo, às horas tristes do dia, pensava logo com piedade na solidão da sua alma. Mas se iam falar-lhe, ela se não mostrava agradecida à sociedade que lhe queriam dar: recaía logo no seu silêncio absorto, tão ocupado pelo seu sentimento.

O meu Luciano! dizer estas palavras era para ela o mesmo que sentir-se viva. Dizia-as alto, gritando, clamando, enchendo as grotas e os recantos das florestas com o seu alarido de araponga louca; dizia-as baixinho, suspirando, fundindo o coração num ajoelhamento de prece, na prostração suprema do supremo amor. E às vezes, caminhando horas ao longo da praia, com os cabelos sacudidos pelo vento do largo, vacilando sobre a areia branca e infirme que entontece, ela cantava ao mar em fúria a canção monotonamente sublime da sua pena sem fim.

Eles eram dois humildes e mansos e os soberbos e violentos lá de longe fizeram uma guerra para mal deles, uma guerra de tantos anos durando já que os cabelos da mulata tiveram tempo de embranquecer. E o seu Luciano sempre por lá, longe da sua velha, que só tinha a ele no mundo, e que não pudera opor-se a que partisse, porque com o poder de homens, que o vieram buscar naquela noite, tinha-se juntado todo o poder celeste, estrondando numa trovoada de arrasar o mundo. Quando chegaram os homens malditos, ela estava com o filho rezando o Magnificat, à claridade da vela benta em frente ao registro da advogada contra o raio. A voz dele tinha uma toada grave e cheia de fervor, que lhe quebrava a ela a friura do medo no coração. Ai! não era dos raios e coriscos do céu que a pobre mulata devia recear! Num silêncio entre dois refegões de vento, bateram de repente à porta. Luciano foi abrir e logo um homem entrando, antes de dizer uma palavra, lhe foi deitando a mão. O rapaz deu um pulo, esquivando-se, mas o outro gritou e a casa se encheu de gente armada, soldados, que subjugaram o seu filho e o amarraram. Ela conhecia um dos homens, o que tinha entrado primeiro: de joelhos, como tinha ficado diante da santa, arrastou-se aos pés dele. "Seu Capitão, não me tire o meu filho, que não cometeu crime. Tenha piedade de uma pobre mãe..." O Capitão, meio embaraçado, sem convicção, resmungou umas frases, falou em defesa da pátria, em honra nacional ofendida, dever de todo brasileiro e não sei que mais. Mas a mulher não lhe deu ouvidos; viu que lhe tiravam o filho para a matança nos campos do Sul e desatinou de todo, a pedir, a suplicar, de rastos pelo chão, beijando os pés e abraçando pelos joelhos os seus carrascos, sem poder mais chegar ao filho das suas entranhas. O Capitão começou a se incomodar com a cena e deu ordem de partir, apesar da tempestade no seu auge. Então Maria se endireitou, arquejante sobre os joelhos, e viu, enquadrado pela porta aberta sobre a noite negra cortada de relâmpagos, o seu belo rapaz, que, sem chapéu, de roupas rotas mostrando o peito nu, levantava para ela as mãos algemadas, num gesto de adeus, e lhe dizia com voz trêmula e sentida: "Não se desconsole, Mãe, que ainda hei de voltar..." Nesse instante um fuzil cegou-a e o estampido imediato de um trovão derrubou-a por terra. Quando tornou a si estava sozinha no meio da noite escura. Parece que esta lhe entrou deveras pela mente, e lhe apagou as últimas claridades que lá luziam. Ela se desinteressou de tudo o que ocupa as vidas mais humildes, desprendeu-se por uma inatenção absoluta dos fatos que podem servir de marca aos dias, perdeu a noção do tempo, perdeu as suas afeições menores, enclausurou-se, absorveu-se no seu único sentimento transformado em culto, endoideceu.

Como sempre fora uma pobre inteligência, a sua loucura não se caracterizou senão por uma teimosia especial, passiva, mas inflexível, uma recusa absoluta a ceder aos argumentos dos que queriam convencê-la de que o filho não andava por aquelas bandas e que não era gritando pelos caminhos que ela havia de o recuperar. Ele lhe dissera que havia de voltar... Essa promessa lhe não deixava lugar no espírito nem para a idéia da morte. Quando lhe disseram que Luciano morrera num combate, que um voluntário, que voltava ferido, o tinha visto cair ao seu lado no campo e ao seu lado morrer no hospital de sangue, ela sacudiu a cabeça, incrédula. A força da idéia fixa venceu-lhe a timidez natural e lhe tirou todos os escrúpulos e receios que a pudessem deter no cumprimento do seu fadário. Na abstração poética é assim um caráter heróico.
Os sinais físicos de loucura estavam nos seus olhos perdidos como os de um cão de caça, desatentos ou muito atentos, mas sem simpatia, e nos cabelos hirtos, eriçados, como num perene arrepio de pavor. O resto, mãos e pés de nômade selvagem, miséria profunda do corpo desprezado, fizera-o o ascetismo inconsciente da sua existência errante. A voz cantante, plangente antes, arrastava-se apoiando demais em certas sílabas, como quem chama. E falando baixo tinha umas inflexões escuras, vindas mais de dentro, o tom reflexivo de quem pensa em voz alta.

Sonhava muito, quando dormia, e prolongava o seu sonho, sempre o mesmo, pela vigília. Era com o dia da volta dele que sonhava, com a hora em que, avistando-o, lhe dissesse: "Bendito seja Deus, meu filho, que te torno a ver!" Ele abaixaria os olhos diante do seu olhar carinhoso, com os seus modos tão bonitos de bom filho e depois lhe contaria o que tinha visto pelas terras longes, a história da sua ausência, as grandezas do mundo, as lindezas das outras gentes, tudo o que ela nem podia imaginar que fosse, tudo evocaria o som da sua voz, cuja lembrança bastava para lhe encher a ela os olhos de lágrimas. E voltariam a levantar a casa arruinada, o ninho velho donde a má sorte os enxotara, a refazer a vida antiga, humilde e pobre, que ela não trocaria pela de uma rainha, com Luciano...

Sonhava, e procurava o seu sonho, correndo as estradas. Mas não se afastava dos sítios familiares, algumas léguas de circuito, três municípios, a pátria. Mais longe já parece que a língua mudava ou pelo menos mudavam os costumes. Eram mais duros para a pobre mãe, como se ela pudesse fazer mal, ou não entendiam-na e desconfiavam. Um dia chegou ao pé de uma cidade muito bonita: as casas tinham vidros que faiscavam ao sol; nas ruas passava muita gente, toda calçada de botinas, os homens de gravata ao pescoço, as mulheres de chapéus com flores, todos muito soberbos; carros e cavaleiros passavam a toda a pressa, fazendo muito barulho nas pedras da calçada. Apareceram uns soldados e a pobre Maria fugiu espavorida. Era ali sem dúvida que moravam os que lhe tinham arrancado o seu Luciano. Disseram-lhe mais tarde que ela quase tinha estado na Praia Grande, que era para onde iam os designados para o recrutamento militar, mas que não era ali que eles batalhavam.

O invencível terror do desconhecido a impediu de ir procurar o filho aos campos do Sul. O Sul sabia ela onde era. De lá vinham as piores borrascas. E os tiros de canhão, que diziam de gala na cidade, para ela eram batalhas mais perto, a guerra que se aproximava. Se com a guerra lhe aparecesse um dia de repente Luciano! Quando o ar estava pesado, o tempo de oraça, ela escutava estremecendo o troar surdo dos canhões que salvavam no Rio, avaliando a aproximação da guerra pela sonoridade mais clara dos tiros, que lufadas de aragem quente e a banzeira traziam.

Um dia de verão, depois do meio-dia, ela vinha subindo da restinga do mar para a terra firme. Não passava ninguém pelas estradas. O sol de fogo retorcia a folha das árvores e fazia ferver o miolo da doida vagabunda. No grande silêncio da calma acabrunhante só se ouvia o zumbido do enxame de mutucas importunas, que acompanham a gente pelos caminhos à beira dos charcos, e o canto de galos longe. O chão escaldava; a doida movia rápida os magros pés descalços e caminhava de braços levantados, sustentando o chale acima da cabeça. Mas de instante a instante parava, com um gesto de impaciência, e se abaixava para atirar uma pedrada ou um punhado de areia aos camaleões cinzentos, que vinham pôr-se à beira do caminho, debaixo dos gravatás de folhas de serra e flor vermelha, e lhe faziam sinaizinhos brejeiros com a cabeça, quando ela passava. Sobre a ponte do Paracatu parou para ver uma cobra verde, que se lavava no magro fio d’água que ainda corria. Depois entrou na sombra do caminho estreito, com árvores dos dois lados, um desfiladeiro entre a lagoa e a barranca de um morro a pique, e se deteve a colher os cachinhos de jatitás verdes para refrescar a boca sequiosa. Passou um cavaleiro pela estrada e no ouvido ficou-lhe a cadência do meio galope, acompanhamento da toada favorita de Luciano, quando falquejava no mato:

Os olhos de Joanita
São pretos como carvão...

Fora ela que lha ensinara, em pequenino. Vinha de tão longe a cantiga do Mineiro da serra! Vinha de antes das tristezas dela... Cerrou-se-lhe a garganta e retomou a estrada.

Já ia pondo a mão à cancela do campo do capitão Rosa, quando um tiro de canhão atroou os ares; depois outro e outro e em seguida um estrondo prolongado, como o de uma casa desabando.

Maria sem Tempo pensou na guerra. Chegara enfim! A artilharia destruía as grossas muralhas da casa da fazenda. Só lhe admirava aquele silêncio depois da catástrofe. Deu a volta para ir espreitar pela outra cancela, e não entendeu mais nada, quando viu a casa em pé, o gado no campo e na lombada do morro do Cantagalo e o eito de escravos no trabalho, manejado as enxadas, em que o sol faiscava. Ali estava tudo em paz; no céu nem uma nuvem quebrava a dureza do azul implacável: donde vinha então aquele troar de canhões?

A doida aproximou-se da fazenda, mas saíram-lhe cães bravos ao encontro e ela regressou do meio da ladeira. Deu então volta ao morro pelo lado do brejo, para entrar pelo engenho. Mas ao passar pelo campinho de dentro, onde se soltavam os animais de sela e as lavadeiras estendiam a roupa a corar, pareceu-lhe que ouvia deveras a cantiga do Mineiro da serra, a cantiga da saudade, que lhe entrava pelos ouvidos, em vez de ressoar-lhe apenas da memória esvaída. Transpôs a cerca de bambus em moitas sussurrantes e encontrou um cavouqueiro, dos que ali andavam a arrebentar pedra para construção, que descia da pedreira e vinha jantar. Maria perguntou-lhe ansiosamente: "O meu filho? é o meu Luciano quem está cantando?" O homem respondeu: "É o Luciano, sim; mas não vá para lá agora, que ele vai pegar fogo à mina." A doida não lhe deu mais atenção e embarafustou pelos cafezais acima. Chegando à entrada da pedreira, viu um rapaz meio pendurado de uma corda de nós, que acabava de arranjar os estopins e punha fogo à mina. Ela gritou: "Meu filho? És tu, meu Luciano?" O Chico Macaé, que já ia marinhando pela corda acima, voltou-se espavorido: "Meu Deus! que faz aí, Sinhá Maria? Fuja, que aí vai pedra! Corra, suma-se depressa, mulher!" E como ela estacasse atônita, ele lançou mão de uma pedra para afugentá-la. A mãe louca viu o gesto e, pondo as mãos na cabeça, despenhou-se pelo cafezal da grota. Alguns segundos mais e a mina rebentava e Maria sentia cair-lhe em torno uma chuva de pedras miúdas, enquanto ao longo da pedreira as grandes lascas desabavam fragorosamente.

Maria sem Tempo caiu extenuada sob uma grande mangueira no meio do campo. Na perturbação da emoção profunda todas as idéias se lhe confundiram e o desvario completo entrou-lhe na mente.

Era aquilo a guerra e era o seu filho que a fazia contra ela. O homem dissera que era ele e a cantiga a não enganara. Para se encontrarem daquele modo vivera ela tão longos anos, penando pelos caminhos! À idéia de que pudera ter morrido aos golpes do filho estremecido, um calafrio sacudiu-a toda convulsivamente e por fim as pernas se lhe inteiriçaram. Depois, a necessidade de abandonar toda a esperança quebrou-lhe as derradeiras forças. Uma toalha de gelo espremeu-lhe o coração num grito de agonia infinita e Maria sem Tempo morreu.

Algumas horas depois formava-se uma trovoada e um raio caía sobre a árvore que abrigava o cadáver. A tempestade passou e os escravos que, voltando da roça, foram ver o tronco lascado descobriram a morta. Os respingos da chuva lhe tinham coberto o rosto de terra e os olhos esgazeados já pareciam olhar do fundo da sepultura. Um dos escravos se abaixou para lhos fechar, dizendo: "Coitada de Sinhá Maria! Vá que ela agora descanse de procurar o filho!..." E outro, velho, resmungou, sem saber que tão bem dizia: "Esta morreu de ser mãe..."

(Histórias curtas, 1901.)

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

Domício da Gama (1862 – 1925)


Jornalista, diplomata, contista e cronista, nasceu em Maricá, RJ, em 23 de outubro de 1862 e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 8 de novembro de 1925.

É um dos dez acadêmicos eleitos na sessão de 28 de janeiro de 1897, para completar o quadro de fundadores da Academia Brasileira de Letras. Escolheu Raul Pompéia como patrono, ocupando a Cadeira n. 33.

Domício Afonso Forneiro nasceu em Ponta Negra, Maricá, aos 23 de outubro de 1863, sendo filho de Domingos Afonso Forneiro, pequeno comerciante, e de Mariana Rosa Loreto. De origem humilde, desde a infância mostrava uma inteligência viva e brilhante.

O sobrenome Gama, que sempre trouxe consigo, herdou-o de seu padrinho, o Pe. Sebastião de Azevedo Araújo e Gama, vigário de Maricá durante 41 anos, no período de 1851 a 1892.

Seus primeiros estudos se passaram no Colégio Henrique, no Rio de Janeiro. Matriculou-se posteriormente na Escola Politécnica, mais precisamente em 1878, mas desistiu logo a seguir, ao perceber que sua vocação não era lidar com ciências exatas. Dedicou-se com sucesso ao estudo de Literatura e Geografia, que realmente o apaixonavam.

Não contando com a ajuda de pessoas importantes, foi vencendo sozinho, em decorrência de seus esforços e de sua inteligência singular. Mesmo sem recursos, fez-se repórter da "Gazeta de Notícias", exercendo o cargo com eficiência, tornando-se amigo e auxiliar do famoso jornalista Ferreira de Araújo.

Em 1888 encontramo-lo na Europa, correspondente internacional da Gazeta de Notícias. Durante este tempo aprofundou mais os seus estudos de Literatura e Geografia. Membro integrante do Sindicato da Imprensa Estrangeira, atuou com brilho durante a célebre Exposição de Paris, ano 1889. Motivado pelo Barão do Rio Branco, de quem era amigo particular, trabalhou no Comissariado da Emigração da Europa.

Lidou na Política Exterior Brasileira, consagrando-se ao lado do Barão do Rio Branco. Diplomata arguto e competente, era sempre lembrado nos casos mais exigentes da Diplomacia Brasileira. É assim que o vemos auxiliando o Barão do Rio Branco nas questões do Amapá, Missões e Acre.

Pertencem-lhe, na história da Diplomacia do País, as boas relações com o Peru, em 1906, e com a Argentina, pouco depois. Com larga visão política e grande capacidade, houve-se bem ao substituir Joaquim Nabuco, em Washington.

Foi secretário de Legação na Santa Sé, em 1900 e ministro em Lima, em 1906, onde desenvolveu grande e notável a atividade, preparatória da política de Rio Branco, coroada pelo Tratado de Petrópolis.

Embaixador em missão especial, em 1910, representou o Brasil no centenário da independência da Argentina e nas festas centenárias do Chile.

Embaixador do Brasil em Washington, de 1911 a 1918, foi o digno sucessor de Joaquim Nabuco, por escolha do próprio barão do Rio Branco.

Ao celebrar-se a Paz européia de Versalhes, Domício, como ministro das Relações Exteriores, pretendeu representar o Brasil naquela conferência, propósito que suscitou divergências na imprensa brasileira. Convidado para a mesma embaixada, Rui Barbosa recusou, e o chefe da representação brasileira foi, afinal, Epitácio Pessoa, eleito pouco depois, em seguida à morte de Rodrigues Alves, presidente da República.

Domício foi substituído na Chancelaria por Azevedo Marques, seguindo como embaixador em Londres, em 1920-21. Foi posto em disponibilidade durante a Presidência Bernardes.

Sua atuação como Embaixador Brasileiro em Londres valeu­-lhe as seguintes observações, feitas por Pandiá Calógeras, em sua obra "Estudos Históricos e Políticos": "só quem conhece os meios oficiais londrinos pode apreciar o prestígio que cercava esse diplomata calmo, sisudo, inimigo da ostentação e atento a quanto interessasse ao Brasil". E disse ainda mais: "a sua perda é um empobrecimento mental e moral para o País".

Em 1919 foi Presidente da Academia Brasileira de Letras, em substituição a Rui Barbosa.

Domício da Gama era colaborador da Gazeta de Notícias ao tempo de Ferreira de Araújo.

Escreveu "Contos a Meia Tinta" (1891 ) e "Histórias Curtas" ( 1901 ). Foi ainda Diretor de Publicação do Atlas de Geografia Física e Política e do Atlas de História Antiga e Moderna.

O seu estilo é primoroso, leve e sutil, prenhe de originalidade, e revela o espírito profundamente observador do literato.

Como tantos outros vultos ilustres, faleceu esquecido depois de tão numerosos serviços, aos 8 de novembro de 1925, na cidade do Rio de Janeiro

Fontes:
Academia Brasileira de Letras
Texto do livro "Maricá meu Amor", de Paulo Batista Machado, disponível em http://www.marica.com.br/2003b/2910domicio.htm

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.87)


Fazendo uma Miscelânea de Todas as Idéias...
Saiu mais ou menos assim:

Uma Trova do Nacional

Luto por meus ideais,
com audácia entre os abalos,
que não abalam jamais
a esperança de alcançá-los!
(WANDA DE PAULA MOURTHÉ/MG)

Uma Trova Potiguar

No Brasil fez-se imponente
uma saudável mistura,
desse povo tão valente
formou-se a nossa cultura.
(HÉLIO ALEXANDRE/RN)

Uma Trova Premiada

2008 > Ribeirão Preto/SP
Tema > SANTOS REIS > 4º Lugar

Em janeiro, dia seis,
Gaspar, Melquior, Baltazar
representam Santos Reis
no festejo popular!
(MARIA DA C. FAGUNDES/PR)

Simplesmente Poesia

– Walter de Oliveira/PB –
VERBO ENCARNADO.

O Verbo mais conjugado
Não é verbo nem sujeito:
Falo do Verbo Encarnado
No tempo mais que perfeito.

Assim foi no seu passado,
Verbo puro sem defeito,
O mais nobre predicado,
No mais sagrado conceito.

E o Verbo se fez homem.
Espero que todos tomem
Sua vida como exemplo

E habitou entre nós
Eu e Ele, tu e vós
E todos nós como templo.

Uma Trova de Ademar

Emigrante e peregrino,
eis como me vejo agora,
sem lar, sem paz, sem destino,
sofrendo de mundo afora!
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram:

Felicidade... Quem sabe
dizer tudo que ela seja?
É tão grande e, às vezes, cabe
num “sim” que a gente deseja.
(CARLOS GUIMARÃES/RJ)

Estrofe do Dia

Perdoe-me pelo excesso de poemas e músicas,
Mas te amar me enche de inspiração...
O seu amor me dá uma poesia por segundo,
Uma música por minuto,
Um livro por hora,
Uma coletânea de amor por dia.
Perdoe-me por lhe dar uma rosa por dia,
Um buquê de flores por semana,
Uma floricultura por mês.
Perdoe-me pelos pleonasmos,
Mas te amar é tão gostoso,
Que repito as palavras e as ações.
Basta eu fechar os meus olhos,
Que vejo a sua face à minha frente,
Você não sai da minha mente.
Mais uma vez estou aqui,
Falando de você e de mim,
Como é bom falar de nós dois.
Amar-te é tão esplêndido
Que registro estas estrofes de amor
Por toda a minha vida,
Minha namorada querida.
ALEXANDRE MOREIRA/SP

Soneto do Dia

– Francisco Macedo/RN –
LAMBENDO O CHÃO.

O homem sobre a calçada, chão imundo,
se não de sangue, mas, é meu irmão,
não sei qual o motivo, qual razão,
dele ser, hoje, um pária deste mundo.

Eu paro, olho, reflito num segundo:
- Eu poderia estar “lambendo o chão”!,
{ter igual ou pior situação...}
- Por ele o meu respeito mais profundo!

O que outros pensam dele, pouco importa,
o que ele faz, ou como se comporta,
seus problemas, talvez, que fossem meus.

Se nada faço para socorrê-lo,
pelo menos eu posso compreendê-lo:
Somos todos iguais perante Deus.

Fonte:
Ademar Macedo

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Trova 188 - Roberto Pinheiro Acruche (São Francisco de Itabapoana/RJ)

Fonte:

Nilto Maciel (A Poética de Linhares Filho)


Sou contemporâneo de Linhares Filho. Quase da idade dele. Um pouco mais novo. Em poesia, estreou em 1968, com Sumos do tempo. Ano de terríveis confrontos sociais no Brasil e no mundo, ano em que me vi no meio do turbilhão político. Por isso, talvez, não pude acompanhar o nascimento literário do poeta de Lavras da Mangabeira. Passada a cólera, a ira, o tumulto, a agitação nas ruas (seguiu-se a fase do silêncio ao ar livre e do gemido nos cárceres), passados os devaneios juvenis, salvo das garras das aves de rapina dos anticomunistas, voltei-me para os livros. Linhares também deve ter se recolhido naquele período, pois em sua biografia há um hiato prolongado a separar o livro inicial do segundo e do terceiro: A metáfora do mar no Dom Casmurro (ensaio crítico) é de 1978, e Voz das coisas, (poemas), do ano seguinte. É a partir desses anos meu conhecimento dele. Ou de sua obra literária.

Ganhei dele, agora, final de 2010, mais três volumes: Com a palavra (palestras); 50 poemas escolhidos pelo autor (Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2008) e No limiar do inverno (Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2010), de poemas. Poderia comentar toda a obra em verso de Linhares, se não me faltassem a dedicação de leitor ou o senso e a sabedoria de crítico. Direi, porém, duas ou três palavras apenas a respeito de sua poética, deixando para outrem o pesquisador da literatura, o analista minucioso e atento de Machado, Pessoa, Torga, Camões, Saramago, Drummond e outros.

A poesia de Linhares Filho tem roupagem tradicional, sobretudo pelo uso frequente do verso medido e rimado. Entretanto, vai além disso, com a manipulação de múltiplos recursos formais: do soneto ao verso livre e a poemas de variados feitios, em versos decassilábicos ou de cinco, seis, sete e oito sílabas. O apego à vestimenta da tradição o livrou da aventura pela chamada poesia de vanguarda, pelo antiverso, pelo poema visual e outras modalidades de efêmera duração. Isto é, consciente e conhecedor do fenômeno estético, tem pleno domínio da técnica do verso. Sem se apegar, com fanatismo, à métrica e à rima, faz uso também do verso branco, como em “Das coisas”. Quanto à rima, ele a pratica muito bem, em todas as suas modalidades ou tipos: consoante, aguda, esdrúxula, grave, etc.

Não bastasse isso, é conhecedor dos sortilégios da linguagem, da densa elaboração da linguagem, da melodia do verso, a exemplo dos bons cultores do verso. Encontramos em seus poemas o “encanto verbal” (Drummond) ou a “pureza vernácula” (Iranildo Sampaio), tão afastados de uma infinidade de escritores que estudam pouco, leem quase nada e se acham gênios. Em Linhares a tal pureza vernacular pode ser constatada com facilidade, como quando pomos em linha reta, ou de prosa, alguns versos: “Certo é que, sob o rescaldo da fogueira antropofágica do teu povo caeté, já se ateara teu desafio, e, da fornalha a vir, manarão as larvas de um vulcão, fluindo sempre, em rio” (“A Lêdo Ivo, ante Réquiem”).

A poesia de Linhares foi chamada por alguns críticos de intimista. Pois o poeta não se deslumbra com o circunstancial e o efêmero, embora não os deixe de lado. Em seus livros há poemas de puro descritivismo ou de saudação: “És, Cidade Maravilhosa, / luz do Sudeste, glamourosa / fidalga” (...). Ou “Cidade show, cidade shopping, / cidade grávida, / devolves à Nação inteira” (“Ode à Pauliceia”). Assim como há observações de fatos: O terremoto do Haiti.

Como percebeu Adriano Espínola, outro poeta admirável, Linhares Filho “encara com a maior seriedade os graves problemas do homem, em termos existenciais, sociais e metafísicos”. São muitos os seus poemas em que se vê além da matéria, como ser, como parte do Todo. E se explica: “Por isso também canto salmos e hinos”. Ou composições recheadas de religiosidade: “Ao Espírito Paráclito”, “Ato de Humildade” (“Sei que, apesar de tudo, / não sou maior em nada”), “Amor Perene” (“Entre nós Deus habita, e por seu nome / cumprimos nosso ideal de amor eterno”).

Como todo grande poeta, Linhares é bom filho e sabe amar seus pais espirituais, os poetas que nos antecederam aqui e alhures. Sua obra é plena de “ressonâncias intertextuais”, de que fala José Augusto Cardoso Bernardes. Não apenas nas muitas homenagens a poetas cearenses e de outros Estados (Anderson Braga Horta, Cassiano Ricardo, Dias da Silva, Drummond, Dimas Macedo, Filgueiras Lima, Lêdo Ivo, Machado de Assis, Manuel Bandeira), mas aos estrangeiros de sua predileção, como Camões (“E cada vez que nos sentimos tristes, / ou do amor com enganos, desenganos, / mais, ao lermos teus poemas, te sublimas!”), Borges, Heidegger, Pessoa, Torga, presentes também em epígrafes.

Como observou Sânzio de Azevedo, outro poeta e crítico de reconhecido talento, o autor de Tempo de colheita “é um desses artistas verdadeiros, um poeta no sentido mais nobre do termo”. Isto é de fácil comprovação, como no último verso do belíssimo poema “A Machado de Assis, morto vivo”: “A Dor dos que ainda ficam te saúda!

Fonte:
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com/2011/01/poetica-de-linhares-filho-nilto-maciel.html

Linhares Filho (Poesias Avulsas)


A MINHA MÃE, HABITANTE DA MORTE

Tua branca rede já não se arma
para a sesta. Todavia guardo,
com o ranger longínquo dos armadores,
a placidez do teu sono
a entreter o meu sonho
No teu aposento, mansa e invisível, dorme uma ave.
À mesa posta, entre o apetite e a lembrança,
há uma cadeira sem dono.
Falta ao alimento o tempero
que de tuas mãos ninguém pôde aprender.
Mas junto a mim está um cântaro
que se encheu de lágrimas que libertam.
As dálias do jardim continuam a florescer,
cada ano, tão brancas, tão viçosas!
Contudo
parecem reclamar a sutileza
de um carinho que o meu sono não esquece...
Teus pincéis dormem
com a resignação de pincéis,
Minha alma imperfeita,
a despeito de teres sido
artista perfeita, pede, todo dia,
os últimos retoques.
Santa e elmo,
no navio em que eu encontrar borrasca,
os teus olhos serão santelmo...
No silêncio noturno não se ouvem mais
os passos cautelosos com que fechavas
a janela que dá para a rua,
no entanto percebo,
na lã escura da noite,
o abrigo do teu xale.

A MACHADO DE ASSIS, MORTO VIVO

De que maneira a fundo iremos conhecer-te,
se muita vez estás noutro lugar,
mil cabriolas a dar
com a manipulação freqüente de um falar
e dois entenderes?
O que propões, porém, vamos tateando,
e o teu pungente riso saboreando.
Algo fica, afinal, de tuas reticências –
mesmo sem se atingir total a tua essência
e não obstante a previsão de Cubas –,
também nas duas tais colunas da opinião,
não só numa terceira, a dos agudos,
e assim o teu discurso não é vão.
De além dos vermes que roeram
as tuas frias carnes
sem deixar boca para rir
nem olhos para chorar,
escuta-me com a alma que restou
do teu grande naufrágio
(longe do feroz ágio e do pedágio).
Aqui estou para dizer-te o quanto
ainda te ouvimos, lemos e te amamos.
Ensinaste-nos que há sempre
uma gota da baba de Caim,
tanto a vontade como a ação umedecendo
de indivíduos, de classes ou de tribos.
Que por batatas uns aos outros se consomem.
(Quantos, qual tu sem Deus, acham que a morte é o fim!)
Joaquim Maria, as tuas esquivanças,
silêncios e trejeitos e artimanhas
deram-nos luz para a experiência do homem.
E, quanto a nado, mar, navegação,
embora cada um de nós manobre
bem a seu modo o timão,
para o leitor abriste uma Escola de Sagres,
onde muito se pode observar,
dos olhos de ressaca em tua Capitu
até os confins da Europa no seu corpo,
que por Bentinho, enfim, é rejeitado.
Fizeste de Escobar o próprio Rio Cobar,
para em Ezequiel, homônimo do bíblico,
denunciar-se por fumos todo um fogo,
a culpa intencional da sedução de um mar...
E fizeste surgir a dúvida no ar.
Ora com humour, ora com ironia,
contra Leibniz puseste Schopenhauer.
Em Maistre e Sterne filtraste
a sátira menipéia.
E o vulnerável, mestre, apanhas com mão fria.
Sobressai-te um vigor: a sensual latência,
quase sempre consciente e deletéria,
qual sangue a latejar por dentro de uma artéria.
Evidenciando aqui, ali insinuando,
soubeste registrar o desconforto,
o descontentamento e a frustração
da nossa humana condição
desde o emplasto de Brás Cubas
à solda da opinião.
E aqui ficamos tristes e inquietos
com as mil formas de ser da humana Dor.
Muito amor ainda falta e pão. Faltam mais tetos,
a paz pública falta e a paz interior.
Sentimo-nos pequenos e incompletos.
Da glória arrebatou-se-nos a palma.
Hoje, além de buraco haver na alma,
que no teu tempo e já bem antes se feria,
há buracos no asfalto e em nossa economia,
várias lesões em corpos pelo césio,
e há buracos até na camada de ozônio
que protege do Sol a pobre Terra,
a que a nossa ambição tanto se aferra.
E a interjeição de dor em muitos deste agora
sem tílburis, lampiões a gás na rua, alcaides
– ai, ai! – enfatizou-se tanto, tanto,
que eles a sua dor gritam em AIDS.
Mas resta uma esperança, a de que um dia,
segundo está em Dante e em Bento Santiago,
nós nos encontraremos renovados
tal como as plantas novas,
além da lágrima e do riso,
além de qualquer jogo ou quaisquer provas.
Se o mundo mostras sempre negativo,
passas de vivo morto a morto vivo.
És trágico, mas és eterno na arte.
Por isso, estou aqui para saudar-te.
Das nuvens não cairás nem de um terceiro andar.
Sei que Oblivion jamais te pode apear.
O olvido esquecerá quem o lembrou tão bem...
E de Saturno não te atingirá o desdém.
Habitas aureolado o símbolo, meu bruxo.
Por tudo o que tu foste e és, te amamos!
De louro te ofertamos novos ramos
pela meia palavra, a sugestão,
a agudeza do olhar, as linhas do debuxo,
a tradução da alma e o bom uso do não.
Até o dia, afinal, da grande muda!
A Dor dos que ainda ficam te saúda!

DAS COISAS

Meus cabelos captam a voz das coisas
do espaço e do inespaço.
As coisas: fungíveis e infungíveis,
móveis, imóveis e semoventes,
operam o fenômeno ou são o númeno.
Queiramos ou não,
as coisas nos cercam, nos integram,
ou são presença na nossa memória.
E nos espreitam com o enigma
de seu olho plurimático.
Aonde ninguém vai,
aí penetra o olhar de alguma coisas.
Testemunhas de virtudes e munditudes,
de todas as nossas contradições,
do sem-saber-para-onde-ir.
Levam a marca dos nossos
usos e abusos.
Sofrem conosco? Riem conosco? ou de nós?
Confidentes na solidão,
inconfidentes para a perícia.
As coisas nos encantam e desencantam.
Umas coisas, talvez,
nos libertem algum dia,
e outras decerto dependurada
trazem a morte consigo.
As coisas nos mandam e desmandam,
formam, deformam,
informam, transformam.
As coisas nos assaltam e improvisam.
Com o xadrez de situações elaboram
mais a surpresa do que a expectativa.
As coisas nos precederam e nos sucederão.
(É preciso reagir contra certas coisas.)
Sentimo-nos sós no meio das coisas.

ODE A FERNANDO PESSOA

1.
Morreste, afinal, ó poeta geral,
ou prossegues, lívido, a cantar
à paz de teu silêncio
e ao verde-azul
do mar?
Se ponho — sim, estás vivendo em mim.
Se digo — não, contemplo-te em canção,
qual fantasma, insone, a vagar
em nossa solidão.
Se morreste, também morreu Ricardo
e Álvaro se foi, partiu Alberto.
Ou todos esses e quantos mais tu foste
— como as máscaras gregas da tragédia —
só viveram no poema, no teu verso,
pendurados na dor dos vilancetes?, no teu verso,
pendurados na dor dos vilancetes?
Pode um poeta perder o seu futuro
ou a morte não passa de interlúdio
no resfolgar fatal de seus ginetes?
E o fingimento? E todo o sal do mar
nascido das guitarras marinheiras
na hora de cantar?
Ai, cantar e chorar
são sempre a mesma cousa!
Ambos rimam conosco e inscrevem-se na lousa
que vai cobrir o que de essência somos.
E tu, irmão do Tejo, do Lima e do Montego,
por que tão perto estás e és cacto com medo
a perecer no meio de um deserto?
Oh, o teu verso tão certo a brilhar
sobre os homens e o mar
português!
Teu verso que se fez
de sono, mito, encantação e olhar.
Mesmo não crendo, creste. E assim criavas
novas formas de fé que alimentavam
a lenta sombra rubra da existência.
E foste na tarde a sobretarde
e no real/irreal a consciência
em fome de verdade.
E cantaste da vida a brevidade
entre o sempre e o jamais, a mágoa
e a História.
E nossa foi
tua vasta visão premonitória.

2.
É certo: em brumas sobrevéns
de Alcácer-Quibir.
Foi-te dado com isso pressentir
o mistério do tempo e da memória,
o lá-dentro das cousas e o lá-fora,
a estrada de Delfos e de Ofir.
Então, se tal se deu, nunca morreste.
Estás nos tombadilhos, a boreste,
com capa e pince-nez, a viajar.
E aqui ficamos a te reinventar
como as nuvens inventam sua sombra
de naves fantásticas no mar.
O mar de Camões. O reino das canções.
A concha dos mistérios e navegações.
E aqui te esperamos.
Virás — quem sabe — de qualquer ilhota
(ao lado de Almada e Sá-Carneiro)
no solitário voar das gaivotas.
Ou te erguerás, triunfal, a qualquer hora,
de algum poema teu, à luz de auroras.
Ou talvez desardomeças num soneto
inglês. E todos de uma vez
gritaremos teu nome que não some
e é camerata, e luz, e dor, e ritmo,
ou sagrado logaritmo
nas álgebras
do poema.

3.
No tempo te saúdo. Não te enxergo
na morte silenciosa. E só estás mudo.
A tua voz se oculta entre as ramagens
da árvore da vida. A tua voz
ferida. A tua voz
tão perto e tão distante.
Voz, como os perfumes, caminhante,
na curva e contracurva de algum fado.
E aqui estou, igual a ti, parado,
a louvar tua face essencial.
Teu sonho delirante e teu naval
olhar.
Ou o teu guitarreio e suspirar.
Ou o maldizer. Ou o teu saber.
Ou o teu grito crescendo em solidão
no reino de Netuno ou de Plutão.
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