quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Linhares Filho (Poesias Avulsas)


A MINHA MÃE, HABITANTE DA MORTE

Tua branca rede já não se arma
para a sesta. Todavia guardo,
com o ranger longínquo dos armadores,
a placidez do teu sono
a entreter o meu sonho
No teu aposento, mansa e invisível, dorme uma ave.
À mesa posta, entre o apetite e a lembrança,
há uma cadeira sem dono.
Falta ao alimento o tempero
que de tuas mãos ninguém pôde aprender.
Mas junto a mim está um cântaro
que se encheu de lágrimas que libertam.
As dálias do jardim continuam a florescer,
cada ano, tão brancas, tão viçosas!
Contudo
parecem reclamar a sutileza
de um carinho que o meu sono não esquece...
Teus pincéis dormem
com a resignação de pincéis,
Minha alma imperfeita,
a despeito de teres sido
artista perfeita, pede, todo dia,
os últimos retoques.
Santa e elmo,
no navio em que eu encontrar borrasca,
os teus olhos serão santelmo...
No silêncio noturno não se ouvem mais
os passos cautelosos com que fechavas
a janela que dá para a rua,
no entanto percebo,
na lã escura da noite,
o abrigo do teu xale.

A MACHADO DE ASSIS, MORTO VIVO

De que maneira a fundo iremos conhecer-te,
se muita vez estás noutro lugar,
mil cabriolas a dar
com a manipulação freqüente de um falar
e dois entenderes?
O que propões, porém, vamos tateando,
e o teu pungente riso saboreando.
Algo fica, afinal, de tuas reticências –
mesmo sem se atingir total a tua essência
e não obstante a previsão de Cubas –,
também nas duas tais colunas da opinião,
não só numa terceira, a dos agudos,
e assim o teu discurso não é vão.
De além dos vermes que roeram
as tuas frias carnes
sem deixar boca para rir
nem olhos para chorar,
escuta-me com a alma que restou
do teu grande naufrágio
(longe do feroz ágio e do pedágio).
Aqui estou para dizer-te o quanto
ainda te ouvimos, lemos e te amamos.
Ensinaste-nos que há sempre
uma gota da baba de Caim,
tanto a vontade como a ação umedecendo
de indivíduos, de classes ou de tribos.
Que por batatas uns aos outros se consomem.
(Quantos, qual tu sem Deus, acham que a morte é o fim!)
Joaquim Maria, as tuas esquivanças,
silêncios e trejeitos e artimanhas
deram-nos luz para a experiência do homem.
E, quanto a nado, mar, navegação,
embora cada um de nós manobre
bem a seu modo o timão,
para o leitor abriste uma Escola de Sagres,
onde muito se pode observar,
dos olhos de ressaca em tua Capitu
até os confins da Europa no seu corpo,
que por Bentinho, enfim, é rejeitado.
Fizeste de Escobar o próprio Rio Cobar,
para em Ezequiel, homônimo do bíblico,
denunciar-se por fumos todo um fogo,
a culpa intencional da sedução de um mar...
E fizeste surgir a dúvida no ar.
Ora com humour, ora com ironia,
contra Leibniz puseste Schopenhauer.
Em Maistre e Sterne filtraste
a sátira menipéia.
E o vulnerável, mestre, apanhas com mão fria.
Sobressai-te um vigor: a sensual latência,
quase sempre consciente e deletéria,
qual sangue a latejar por dentro de uma artéria.
Evidenciando aqui, ali insinuando,
soubeste registrar o desconforto,
o descontentamento e a frustração
da nossa humana condição
desde o emplasto de Brás Cubas
à solda da opinião.
E aqui ficamos tristes e inquietos
com as mil formas de ser da humana Dor.
Muito amor ainda falta e pão. Faltam mais tetos,
a paz pública falta e a paz interior.
Sentimo-nos pequenos e incompletos.
Da glória arrebatou-se-nos a palma.
Hoje, além de buraco haver na alma,
que no teu tempo e já bem antes se feria,
há buracos no asfalto e em nossa economia,
várias lesões em corpos pelo césio,
e há buracos até na camada de ozônio
que protege do Sol a pobre Terra,
a que a nossa ambição tanto se aferra.
E a interjeição de dor em muitos deste agora
sem tílburis, lampiões a gás na rua, alcaides
– ai, ai! – enfatizou-se tanto, tanto,
que eles a sua dor gritam em AIDS.
Mas resta uma esperança, a de que um dia,
segundo está em Dante e em Bento Santiago,
nós nos encontraremos renovados
tal como as plantas novas,
além da lágrima e do riso,
além de qualquer jogo ou quaisquer provas.
Se o mundo mostras sempre negativo,
passas de vivo morto a morto vivo.
És trágico, mas és eterno na arte.
Por isso, estou aqui para saudar-te.
Das nuvens não cairás nem de um terceiro andar.
Sei que Oblivion jamais te pode apear.
O olvido esquecerá quem o lembrou tão bem...
E de Saturno não te atingirá o desdém.
Habitas aureolado o símbolo, meu bruxo.
Por tudo o que tu foste e és, te amamos!
De louro te ofertamos novos ramos
pela meia palavra, a sugestão,
a agudeza do olhar, as linhas do debuxo,
a tradução da alma e o bom uso do não.
Até o dia, afinal, da grande muda!
A Dor dos que ainda ficam te saúda!

DAS COISAS

Meus cabelos captam a voz das coisas
do espaço e do inespaço.
As coisas: fungíveis e infungíveis,
móveis, imóveis e semoventes,
operam o fenômeno ou são o númeno.
Queiramos ou não,
as coisas nos cercam, nos integram,
ou são presença na nossa memória.
E nos espreitam com o enigma
de seu olho plurimático.
Aonde ninguém vai,
aí penetra o olhar de alguma coisas.
Testemunhas de virtudes e munditudes,
de todas as nossas contradições,
do sem-saber-para-onde-ir.
Levam a marca dos nossos
usos e abusos.
Sofrem conosco? Riem conosco? ou de nós?
Confidentes na solidão,
inconfidentes para a perícia.
As coisas nos encantam e desencantam.
Umas coisas, talvez,
nos libertem algum dia,
e outras decerto dependurada
trazem a morte consigo.
As coisas nos mandam e desmandam,
formam, deformam,
informam, transformam.
As coisas nos assaltam e improvisam.
Com o xadrez de situações elaboram
mais a surpresa do que a expectativa.
As coisas nos precederam e nos sucederão.
(É preciso reagir contra certas coisas.)
Sentimo-nos sós no meio das coisas.

ODE A FERNANDO PESSOA

1.
Morreste, afinal, ó poeta geral,
ou prossegues, lívido, a cantar
à paz de teu silêncio
e ao verde-azul
do mar?
Se ponho — sim, estás vivendo em mim.
Se digo — não, contemplo-te em canção,
qual fantasma, insone, a vagar
em nossa solidão.
Se morreste, também morreu Ricardo
e Álvaro se foi, partiu Alberto.
Ou todos esses e quantos mais tu foste
— como as máscaras gregas da tragédia —
só viveram no poema, no teu verso,
pendurados na dor dos vilancetes?, no teu verso,
pendurados na dor dos vilancetes?
Pode um poeta perder o seu futuro
ou a morte não passa de interlúdio
no resfolgar fatal de seus ginetes?
E o fingimento? E todo o sal do mar
nascido das guitarras marinheiras
na hora de cantar?
Ai, cantar e chorar
são sempre a mesma cousa!
Ambos rimam conosco e inscrevem-se na lousa
que vai cobrir o que de essência somos.
E tu, irmão do Tejo, do Lima e do Montego,
por que tão perto estás e és cacto com medo
a perecer no meio de um deserto?
Oh, o teu verso tão certo a brilhar
sobre os homens e o mar
português!
Teu verso que se fez
de sono, mito, encantação e olhar.
Mesmo não crendo, creste. E assim criavas
novas formas de fé que alimentavam
a lenta sombra rubra da existência.
E foste na tarde a sobretarde
e no real/irreal a consciência
em fome de verdade.
E cantaste da vida a brevidade
entre o sempre e o jamais, a mágoa
e a História.
E nossa foi
tua vasta visão premonitória.

2.
É certo: em brumas sobrevéns
de Alcácer-Quibir.
Foi-te dado com isso pressentir
o mistério do tempo e da memória,
o lá-dentro das cousas e o lá-fora,
a estrada de Delfos e de Ofir.
Então, se tal se deu, nunca morreste.
Estás nos tombadilhos, a boreste,
com capa e pince-nez, a viajar.
E aqui ficamos a te reinventar
como as nuvens inventam sua sombra
de naves fantásticas no mar.
O mar de Camões. O reino das canções.
A concha dos mistérios e navegações.
E aqui te esperamos.
Virás — quem sabe — de qualquer ilhota
(ao lado de Almada e Sá-Carneiro)
no solitário voar das gaivotas.
Ou te erguerás, triunfal, a qualquer hora,
de algum poema teu, à luz de auroras.
Ou talvez desardomeças num soneto
inglês. E todos de uma vez
gritaremos teu nome que não some
e é camerata, e luz, e dor, e ritmo,
ou sagrado logaritmo
nas álgebras
do poema.

3.
No tempo te saúdo. Não te enxergo
na morte silenciosa. E só estás mudo.
A tua voz se oculta entre as ramagens
da árvore da vida. A tua voz
ferida. A tua voz
tão perto e tão distante.
Voz, como os perfumes, caminhante,
na curva e contracurva de algum fado.
E aqui estou, igual a ti, parado,
a louvar tua face essencial.
Teu sonho delirante e teu naval
olhar.
Ou o teu guitarreio e suspirar.
Ou o maldizer. Ou o teu saber.
Ou o teu grito crescendo em solidão
no reino de Netuno ou de Plutão.
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