quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Waldomiro Waldevino Peixoto (O Tempo na Ficção)


Não é possível entender uma obra de ficção sem perceber todos os fundamentos de sua estrutura formal. Entre eles está o tempo. “É o tempo, sem dúvida, que detém a essência da vida, e talvez de toda a realidade” já nos disse Bérgson. Essa importância do tempo o fez tema global e predominante na literatura recente. Se a literatura espelha a natureza humana e se o homem é cada vez mais consciente da penetrante e precária natureza do tempo, essa consciência tem sido cada vez mais, também, refletida nas obras literárias.

A sociedade moderna instituiu a ditadura do tempo cronológico, sujeito a relógio, calendário e planejamento. Há uma obsessão por planejamentos em quase todas as atividades humanas. Mas o tempo interior do homem não é rigoroso, não se mede por relógios e calendários, não obedece a planos pré-estabelecidos. O tempo cronológico consiste num esforço para opor uma barreira ao tumulto subjetivo, presenças da memória, duração interior, aspectos humanos imprevisíveis e incontroláveis. A literatura tem o poder de tirar de sintonia os elementos marcados pelo relógio e criar outros que são representações do espírito humano.

A ficção trata do tempo cronológico, mas fundamentalmente trabalha com o tempo psicológico, porque sua essência está intimamente relacionada ao conflito humano e este é a pedra fundamental da literatura de qualidade.

Luiz de Toledo Machado afirma que “nas sociedades arcaicas e antigas o homem percebia o tempo como um fenômeno cíclico, repetitivo, como um eterno retorno. Na cultura ocidental o conceito de tempo foi alterado, passando a ser entendido como sucessão, continuidade e consecutividade (...) Contudo o homem moderno traz dentro de si, inerente à sua realidade psicológica, tanto o tempo cíclico enraizado na inconsciente, que é a morada dos símbolos, mitos e arquétipos, como o tempo-sucessão, idéia que contém valores culturais e históricos”.

O tempo integra a essência da vida e do ser humano. Faz parte deles. A literatura – como a música – é manifestação temporal por excelência. O fato literário expressa, com palavra sugestiva e transubstanciadora, uma experiência real ou imaginária, num instante do viver.

Enquanto fazemos alguma coisa, um milhão de outras acontecem simultaneamente. Essa simultaneidade não é possível apreender na obra literária. No máximo, consegue sugeri-la, pois o poder expressivo da palavra faz-se pela sucessão natural. Quando o escritor codifica sua linguagem para reproduzir fatos, ele fica preso a essa sucessão. Quando o leitor decodifica a linguagem do escritor e toma conhecimento dos fatos por este narrado acaba por se submeter, também, ao mesmo fenômeno da sucessão.

Os fatos podem estar potencializados na mente do escritor como ocorrência simultânea, nos moldes da vida, mas, ao submetê-los à impressão na folha de papel, troca-se a simultaneidade da realidade “real” pela sucessão da realidade “transfigurada” pela literatura.

No momento em que escrevo estas linhas, tenho diante de mim o papel e a pena que nele desliza; ouço rumores de crianças que brincam no parque; penso no problema que expresso; um rádio distante transmite notícias; ouvem-se buzinas de automóveis. A ficção do fluxo de consciência e do monólogo interior cuidou de expressar, com recursos indiretos, essas coexistências, mas a instantaneidade e simultaneidade, perseguidas em tais intentos, somente se realizaram através de referências sugeridas, não de fatos concretos”. (Raúl Castagnino)

Como podemos perceber, a arte literária está impregnada de tempo: no conteúdo – porque faz parte do conflito humano – e na forma – porque sua matéria-prima, a linguagem, está umbilicalmente presa ao fenômeno da sucessão. E talvez o grande desafio do escritor resida no conflito entre a simultaneidade dos fatos narrados, o conteúdo (tempo narrado) e a sucessão narrativa (tempo de narração).

Ler e escrever estão presos à sucessão, portanto a literatura é uma arte temporal em todas as suas instâncias, tanto da criação do autor quanto na recriação do leitor.

Fontes:
Academia Ribeiraopretana de Letras. Ribeirão Preto , SP - Ano III - Nº 8 - Março/2004
Imagem = criação de C. E. Kluger, Calpar Comércio de Calcário Ltda.

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