terça-feira, 18 de janeiro de 2011

André Luiz Nakamura (Mitos e Lendas do Folclore Brasileiro) Parte I


Desde sempre a humanidade se atormenta com as clássicas indagações pra as quais não houve e ainda não há respostas satisfatórias: de onde, por quê e para quê viemos? Para onde vamos?

Diante dos fenômenos da vida que lhe eram totalmente inexplicáveis, a criativa imaginação do homem primitivo atribuiu a autoria e o comando do universo, bem como sua própria existência nele, a fantásticas criaturas, a entidades sobrenaturais (a que futuramente se chamariam mitos).
Entre nós, é claro que os primitivos habitantes das terras que posteriormente se denominariam brasileiras, quais sejam, os índios, também daquele modo agiram ao se defrontar com o mesmo drama existencial.

Destarte, a exemplo de outros povos, também eles povoaram as matas, os rios, as montanhas, o mundo, com entes sobrenaturais, dando nascimento, assim, aos mitos brasileiros (juntamente com as duas outras culturas que depois formariam a brasileira).

O chamado pensamento mítico representaria, então, o estágio infantil da mentalidade humana na sua sempre ascensional trajetória evolutiva.

Lévi-Strauss, no entanto, em “O Pensamento Selvagem”, delineou uma “analogia formal” entre o pensamento mítico e o pensamento científico, argumentando que aquele seria a “metafórica expressão” deste. A civilização, desse modo, teria sido edificada através dos mitos.

Mesmo na atualidade, a despeito de ter a ciência progredido e elucidado alguma parte dos muitos mistérios da vida que assombram a humanidade, os mitos continuam a surgir e a renascer nas reminiscências populares, haja vista que a mencionada perplexidade que acometia o homem primitivo representava não só a crise existencial da humanidade diante do mundo, mas também a do homem diante de si próprio. Essa, aliás, certamente permanecerá, em maior ou menor grau.

Os segredos da alma humana, os sentimentos, medos, desejos, paixões, raivas, a luta contra selvagens instintos (o lobisomem que habita o homem), enfim, tudo aquilo que se encontra no interior da alma humana, e que a razão não é capaz de explicar, exterioriza-se e reflete-se nos mitos.

MITO – CONCEITO

Tendo em vista o que expusemos no tópico anterior, poderíamos conceituar “mito” como sendo configurações de entes fantásticos e sobrenaturais produzidas pelo imaginário popular em virtude da necessidade de se buscar explicação para a existência do universo e da própria humanidade, bem como para o que se encontra no interior da alma humana sem elucidação racional.

A essa motivação não se pode deixar de acrescentar também o prazer e a necessidade do homem de contar e ouvir histórias, pois o sonho e a fantasia, com efeito, fazem parte de seu espírito.

Ressalte-se, ainda, que mito também pode se referir a objetos, lugares e épocas, tendo ainda o sentido de utopia, segundo o Aurélio.

Exemplifiquemos parte de tal acepção com o chamado “Mito da Idade do Ouro”, “o mito da perfeição do princípio”, presente em quase todas as mitologias, segundo o qual no início dos tempos, quando da criação do homem, este vivia usufruindo uma felicidade plena.

O “Mito da Idade do Ouro” é também “futurizado” de acordo com algumas crenças no “fim dos tempos”. Um novo mundo, com uma nova humanidade, então, surgirá (os mortos também voltarão), para viver uma vida paradisíaca, sem dores, sem sofrimento, sem tristeza, sem morte.Vejamos mais alguns conceitos de mito:

Consoante o escólio de Leda Tâmega Ribeiro (“Mito e Poesia Popular”), “a palavra mythos, que originariamente significava ‘fábula’, ‘conto’, ‘fala’, ou simplesmente ‘discurso’, passou a ser usada em oposição a logos e história, vindo a denotar, então, ‘aquilo que não pode realmente existir”.

“(...) A palavra grega mythos referia-se fundamentalmente à atividade de contar e não ao conteúdo daquilo que é contado”.

O referido termo, prossegue a autora citando Mircea Eliade, “tornou-se em nossos dias, de certa forma, equívoco, podendo tanto significar ‘ficção’ ou ‘ilusão’, como ‘tradição sagrada’, ‘revelação primordial’ ou ‘modelo exemplar’”

“O mito é narração alegórica, que em geral procura explicar acontecimentos anteriores aos fatos históricos” (Veríssimo de Melo, “Folclore Brasileiro: Rio Grande do Norte”).

“Mito é uma narrativa de um fato que transcende a natureza humana. Seus personagens são entes sobrenaturais (...) Nasceu da necessidade do homem de explicar o mundo em que vivia e de sua própria presença nele (...) narra as façanhas de entes sobrenaturais, graças aos quais passou a existir uma realidade ou parte dela, como, por exemplo, uma ilha, uma espécie animal, vegetal ou mineral, um comportamento humano, uma instituição, etc.” (Antônio Henrique Weitzel, “Folclore Literário e Lingüístico”).

“O mito na história da civilização é um conjunto de lendas (grifamos) e narrações que referem personagens e acontecimentos anteriores aos fatos históricos conhecidos e que, por isso mesmo, se entretecem com episódios maravilhosos e fantásticos” (Luís da Câmara Cascudo, “Dicionário do Folclore Brasileiro”).

Vale lembrar que atualmente o termo é também usado para tratar do fenômeno de popularidade criado em torno de astros e estrelas do cinema e da televisão, a que alguns chamam “mitos fabricados”.

MITOS BRASILEIROS

Os mitos que se configuraram no Brasil, a exemplo do que se deu com o próprio povo brasileiro, ostentam também a forte marca da miscigenação, pois são eles provenientes de diversas culturas, sendo três suas fontes primordiais: os portugueses, os índios e os negros.

Para a grande maioria dos autores, foi prevalente a influência do colonizador português, que trouxe consigo mitos de quase todo o acervo europeu.
Raros, então, os mitos que por aqui se conservaram “originais” e nenhum o que se manteve imune à influência lusitana.

Em contrapartida, também os Lobisomens e Mulas-sem-cabeça que os portugueses para cá trouxeram adquiriram nestas terras cores locais e tropicais, “abrasileirando-se”.
Em segundo posto, na ordem de influência apontada pela maior parte dos folcloristas, encontram-se os de origem indígena, os primeiros a serem catalogados pelos portugueses, logo se confundindo os mitos de ambas as origens.

Os negros escravos, naturalmente, também para cá vieram acompanhados de seus mitos, os quais tinham grande força religiosa, requerendo rituais, danças, oferendas, etc. Os relatos sobre seus entes fantásticos que regem as forças da natureza certamente influenciaram na configuração dos nossos mitos.

No entanto, tomando-se a acepção folclórica do termo, i.e., sem implicações religiosas, são poucos os mitos de origem africana. Câmara Cascudo realça que é no ciclo da angústia infantil que mais se faz notar a influência negra na formação da mitologia brasileira:

“Rara será a aparição assombrosa que ainda mais terrível não ficasse através dos lábios africanos (...) O papel das ‘tias’ e dos ‘tios’ portugueses aqui lhes coube (...) A nossa Scheherazade foi a Mãe Preta...” (“Mitos Brasileiros”).

Para Théo Brandão (“Folclore de Alagoas”) “nossos mitos são restos, reelaborações, cruzamentos superposições dos mitos dos povos formadores da etnia brasileira”.

CLASSIFICAÇÃO

Alguns autores estabeleceram uma classificação para os mitos brasileiros.
O insigne folclorólogo Luís da Câmara Cascudo distribuiu-os em “primitivos e gerais” e em “secundários e locais”. Dentre os primeiros estariam o Saci-Pererê, o Jurupari, o Boitatá, o Lobisomem, a Mula-Sem-Cabeça, o Curupira, o Anhangá, Botos e Mães d´Água...

Todos os demais que constam do rol que logo apreciaremos seriam “secundários e locais”.

Cascudo (em “Mitos Brasileiros”) apresenta ainda mais duas subdivisões, a que denominou “Ciclo da angústia infantil” (Cuca, Mão-de-Cabelo, Chibamba, etc.) e “Ciclo dos monstros” (Capelobo, Gorjala, Mapinguari, Bicho-Homem, Labatut, Pé-de-Garrafa, Quibungo, etc.).

Merecem destaque esses “ciclos”.

Nos da angústia infantil, a exemplo do que se pretendia com as narrativas de contos de fadas, percebe-se neles um nítido propósito disciplinar.

Com relação ao ciclo dos monstros, bem a propósito, o célebre folclorólogo fala sobre o “ataque inesperado e predatório de gente de fora” e uma conseqüente reação mental dos índios frente ao inimigo estrangeiro e invasor, cuja imagem é por aqueles deformada, transformada em monstro.

Alceu Maynard Araújo (em “Folclore Nacional”), seguindo Basílio de Magalhães (em “Folclore no Brasil”), ordenou-os em primários e secundários.

Os mitos primários são: saci, mula-sem-cabeça, lobisomem, curupira, caipora.

Os secundários, segundo o mesmo autor, compreendem gerais: boitatá, mãe-do-ouro, minhocão, etc., e regionais: corpo seco, porca de sete leitões, mão-de-cabelo, cavalo branco, etc.

Entendemos que os vocábulos “primitivos” e “primários” foram utilizados pelos referidos autores com a acepção de “principais”, de forma a opor-se a “secundários” (usado por ambos os folcloristas), podendo-se deduzir que seriam os primeiros os mais conhecidos.

Nesta modesta abordagem do assunto, não estabeleceremos nenhum tipo de classificação pois, na atualidade, em vista do recrudescimento dos meios de comunicação, com inclusão da Internet, essa se torna uma tarefa difícil.

LENDA

Proveniente do latim legenda, do verbo legere = “ler” (e, por extensão, “algo digno de ser lido”), era esse o termo usado para designar as histórias sobre santos que eram narradas nos refeitórios dos conventos ou em cultos religiosos com o escopo de se estabelecerem edificantes referenciais com que se deveriam identificar os ouvintes.

Não quer isso dizer, porém que ensejou o advento das lendas; outros povos, primitivos, também tinham seus relatos fantásticos (a que depois se denominou “lenda”) sobre eventos originalmente verdadeiros, ou considerados como tais; sobre heróis que podem ou não terem realmente existido; ou sobre feitos “heroicizados” pela imaginação popular.

A lenda é também considerada como a “imaginação da História” tendo em vista que esta, em sua “infância”, não foi nada além de uma sucessão de lendas oralmente transmitidas de geração a geração, com o sempre presente gosto popular pela fantasia.

Com o passar dos tempos, o sentido do vocábulo se foi ampliando, de maneira a abranger outras formas de narrativa, como veremos.

LENDAS – CLASSIFICAÇÃO E CONCEITO

Costumam classificá-las em pessoais, locais, episódicas e etiológicas.
A primeira espécie, a das “pessoais”, subdivide-se em heróicas (que versam sobre figuras históricas); hagiográficas ou hagiológicas (sobre santos) e anedóticas (sobre pessoas pitorescas).

As heróicas são aquelas que enaltecem com as cores da fantasia os feitos de figuras históricas. São heróicas, por exemplo, nossas muitas lendas sobre os bandeirantes cujas andanças, desbravando sertões, cativando gentios, descobrindo minas, ensejavam e divulgavam muitas lendas.

Merecem destaque as hagiográficas ou hagiológicas. Inúmeros são os exemplos de lendas brasileiras sobre santos que deliberadamente teriam dado origem a muitas cidades e bairros, sendo-lhes os padroeiros. Suas imagens recusavam-se a sair no local que designaram para seus santuários, como dizem ter ocorrido na cidade de Nazaré Paulista.

Hélio Damante (“Folclore Brasileiro – São Paulo”) dá outros exemplos:
“O encontro de imagens, caso do Bom Jesus de Iguape, do Bom Jesus de Pirapora e de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, mesmo se tratando de fatos historicamente comprovados, sempre aguçou a imaginação de devotos e deu origem a um particularizado lendário, enriquecido pela iconografia dos milagres e ex-votos, sonhos e visões”.

As locais tratam de temas ligados a uma determinada localidade, versam sobre rios, montanhas, lagos, cavernas, etc. São também denominadas tópicas e geográficas.

As episódicas dizem respeito a eventos e acontecimentos de interesse de uma localidade.

As etiológicas, que buscam explicar a origem de plantas, de animais, se sobrelevam nas fantasiosas narrativas indígenas sobre a origem da mandioca, do milho, da lua, etc.

Essa classificação, com base na apresentada por Antônio Henrique Weitzel “Folclore Literário e Lingüístico”), fornece elementos para alguns conceitos de “lenda”.

Vejamo-los:
“A lenda é uma narrativa em torno de um fato real, com uma explicação ou interpretação de uma figura, uma realidade, um acontecimento histórico, em torno da qual a fantasia cria uma série de coisas irreais e até mesmo inverossímeis” (Renato Almeida “Inteligência do Folclore”).

“A lenda é a imaginativa sobre a realidade, realidade que pode ser o homem, o vegetal, o animal, os elementos da natureza, os acidentes geográficos, etc. Reveste a vida dos santos, dos heróis e dos bandidos; explica a razão do que vê e não compreende; aponta o que acredita ser a origem das coisas e dos fenômenos” (Maria de Lourdes Borges Ribeiro, “Folclore”).

No entanto, cumpre-nos acrescentar que o termo “lenda” não é usado apenas para significar “narrativa fantasiosa sobre a realidade”. Relatos sobre seres e fatos inverossímeis são também chamados “lendas”. Há fantásticas histórias protagonizadas, por exemplo, por seres imaginários a que consensualmente se denominou mitos, como o Curupira, o Saci, a Mula-Sem-Cabeça. Existem, pois, “lendas” acerca de “mitos”.

São também chamadas de “lendas” histórias sobre tesouros enterrados, sobre fantasmas, almas penadas, e, bem assim – dentre outras – sobre corpos de “espíritos puros” (“corpos santos”) que, sepultados, se mantiveram intactos sob a terra, e que seriam encaminhados em sigilo ao papa pelo vigário, segundo crença popular, informa-nos Saul Martins (“Folclore Brasileiro – Minas Gerais”).

Na seara do folclore, se o vocábulo lenda fosse utilizado apenas para se referir a histórias fantasiosas sobre santos, heróis, bandidos, simples seria distingui-lo de “mito”. No entanto, a amplitude conceitual que se lhe deu, narrativa fantasiosa sobre a realidade, pode ter sido o ponto de partida para a confusão de mito com “lenda” (de que a seguir trataremos), visto que se passou a assim denominar tanto as fantásticas narrativas indígenas sobre a origem de plantas como aquelas que versam sobre a criação do mundo, sobre os fenômenos atmosféricos, etc.

MITO E LENDA – DISTINÇÃO

Considerando-se a polissemia dessas palavras, ou seja, os muitos sentidos que adquiriram, em virtude também das próprias definições que se lhes deram, ambos os vocábulos são freqüentemente confundidos.

1. A Enciclopédia “Mérito” registra que “o mito situa-se nos tempos ante-históricos e representa um ser ou episódios sobrenaturais, enquanto a ação das lendas decorre no mundo, entre os homens, não recuando para além da origem dos povos cristãos”.

Observe-se, porém, que renomados folclorólogos brasileiros, posteriormente, registraram histórias sobre a criação do mundo e da humanidade, cultivadas oralmente pelos índios (predecessores dos cristãos), às quais se denominaram e ainda se denominam “lendas”.

2. Em conformidade com a Enciclopédia Mirador, o que distingue o mito da lenda é a natureza dos relatos, observando que o primeiro “fornece o fundamento de toda a vida social e tem caráter religioso”. (...) “A lenda,’história falsa’, narra feitos de alguns heróis populares, explica particularidades anatômicas de certos animais, etc. ao passo que o mito, ‘história verdadeira’, se reporta à criação do mundo e dos homens, à origem da morte, etc”.

Nesse sentido, Antônio Henrique Weitzel (“Folclore Literário e Lingüístico”), ao falar sobre a ambivalência do mito em Folclore, apontando, de um lado, o fato (crença), e do outro, a narrativa (literatura oral) – que seria a forma explicativa do mito – argumenta que “esse ato de crença é que irá distinguir o mito de outras formas narrativas, como a lenda”.

Com o devido respeito, é possível divergir-se dessa distinção, pois – para exemplificar – as lendas sobre santos ou mártires, chamadas hagiológicas ou hagiográficas pelos estudiosos do assunto, também podem implicar crença nos relatos (e/ou crendice?) por parte dos narradores. A própria origem do vocábulo, como vimos, remonta a histórias sobre santos contadas em convento.

É oportuno lembrar, entrementes, que Théo Brandão (“Folclore de Alagoas II”), quando defendeu, anteriormente, a mesma idéia do citado folclorista, dizendo que “fica implícita a noção de que o mito aquele que o relata nele acredita inteiramente, enquanto assim não o considera aquele que o recolhe como tal”, acabou por deixar à vontade o uso dos controvertidos vocábulos ao expor sua conclusão:

“Daí que a mesma narrativa possa ser catalogada como mito, lenda, conto ou acontecimento real, segundo as convicções do narrador, do coletor ou do divulgador”.
Para o mesmo autor, a melhor definição dos mitos é a de que “são narrações em que se procura explicar a origem dos seres vivos e de certos objetos ou a origem de algum costume”.

Aleixo Leite Filho (“Noções de Folclore”) preleciona algo similar:
“(...) é uma criatividade da imaginação popular que tem como principal preocupação descrever a origem dos seres, dos objetos e dos fatos”.
O problema é que ele í está se referindo a lenda...

3. Vejamos outros pontos de vista considerando-se mais propriamente a acepção folclórica dos termos.

Segundo o Prof. Renato Almeida em “Curso de Folclore” (registra a Profª Palmira M. Degásperi Rodrigues, em “Mito e Lenda, Implicações Filosóficas”, anuário do 29º Festival do Folclore), consiste no fato de que o primeiro é “uma entidade fantástica, de pura imaginação”, enquanto a segunda “é uma narrativa fantasiosa sobre um fato real”.

Essa última distinção, data maxima vênia, também apresenta algumas imprecisões, pois contempla apenas uma das acepções de “mito” e “lenda”. O mito também é “narrativa”, i. e., sua conceituação compreende também essa característica (diversos folclorista, e os dicionários inclusive, a registram), e quanto à lenda, esta, como já dissemos, não significa apenas história fantasiosa sobre a realidade, visto que existem narrativas fantásticas sobre seres e fatos também imaginários, a que chamam “lendas”. Há lendas, por exemplo, sobre o Curupira, o Lobisome, a Iara, o Saci, etc., enfim, há lendas em torno dos mitos.

4. Câmara Cascudo, com o peso de sua autoridade no assunto, pontifica: “Muito confundida com o mito (a lenda) dele se distancia pela função e confronto. O mito pode ser um sistema de lendas, gravitando ao redor de um tema central, com área geográfica mais ampla e sem exigências de fixação no tempo e no espaço”.

Para o ilustre folclorista Basílio de Magalhães (“O Folclore no Brasil”) “do mito, - transfiguração dos seres e fenômenos naturais em corpos inaturais e forças sobrenaturais, totens e tabus, pelo eu projetivo do homem inculto, - foi que se geraram as lendas, os contos e as fábulas da tradição popular. O que caracteriza a lenda é a apoteose, ligada a proezas heróicas ou a maravilhas supra-sensíveis”.
Tendo em vista o escólio dos dois mestres, do qual se depreende o estabelecimento de uma espécie de hieraquia entre os dois fenômenos, na qual o mito ocuparia o alto posto, há quem o interprete “a contrário senso”, de modo que lendas também podem vir a tornar-se mito.

Um bom exemplo dessa interpretação extrai-se da consagrada telenovela “Roque Santeiro”, que foi recentemente reprisada pela segunda vez, tamanho o seu sucesso.
Numa etapa inicial, pode-se-ia denominar “lendas” as histórias que se contavam na fictícia cidade de Asa Branca sobre o mártir que morrera em defesa desta, lutando contra os bandidos que a saquearam. Paulatinamente, a reiteração e a progressiva expansão dessa lenda pelo Brasil, a que se acresceram milagres atribuídos ao “Roque Santeiro”, consagraram-lhe o status de mito (era apenas esse o termo que usavam na novela para aludir ao herói). O ponto central da trama era o fato de estar vivo o protagonista, o que culminou numa luta entre o Roque Santeiro vivo e o mito, que os poderosos da cidade, por interesses, queriam preservar – assim como a respectiva população, mesmo sem o saber, haja vista que precisa de mitos.

No entanto, ainda nos suscitam dúvidas os elementos distintivos apontados por Cascudo e Basílio de Magalhães, segundo os quais dos mitos derivariam as lendas, devendo-se considerar a maior abrangência dos primeiros em oposição à relativa “localidade” das últimas.

Qual seria o critério para quantificar o dimensionamento territorial que a propagação de algum relato fantástico precisaria atingir para ser chamado “lenda” ou “mito secundário local” (espécie mencionada por Câmara Cascudo em “Mitos Brasileiros”)?

O que impediria, por exemplo, qualificar-se como mito a “Moça de Branco” classificada como lenda por Alceu Maynard Araújo (“Folclore Nacional”)? Ou como lenda o “Cavalo Branco” catalogado como mito secundário pelo mesmo autor?
É válido observar também que a primazia que se pretendeu atribuir ao mito não se propagou com muita força, visto que popularmente o termo mais usual é “lenda”.

Como se pode notar, é de fato penoso traçar uma nítida demarcação entre os territórios conceituais do mito e da lenda, tendo em vista que a polissemia desses termos parece poder mobilizar uma faixa fronteiriça definitiva que se lhes tentasse traçar, fazendo com que esta se expandisse, alargando-se ora por um, ora por outro dos respectivos domínios semânticos de cada um dos indigitados vocábulos.

Como diria Amadeu Amaral (ao falar da impossibilidade de traçar linhas exatas entre provérbios e outros conceitos, como adágios, anexins, etc.), “a substância fluida escapa por entre as frinchas das frases que a pretendem conter”.

Um relativo consenso se verifica no uso de “mito” para designar o Curupira, o Saci-Pererê, a Mula-sem-cabeça, o Lobisomem, entre outros mais conhecidos, e de “lenda” para os relatos fantasiosos sobre a origem de seres e objetos, como as plantas (“lenda da mandioca”, “lenda do guaraná”, e outros exemplos que constam da coletânea que logo se verá). Não obstante, existem exceções. O próprio Câmara Cascudo, o grande luminar da Folclorística, em “Mitos Brasileiros – Cadernos de Folclore”, coloca “Mães d´água” entre os mitos primários. Entretanto, em “Dicionário do Folclore Brasileiro”, no verbete “Lenda”, usa a expressão “a lenda da Mãe d´água”... Na mesma clássica obra, e no mesmo tópico, fala da “lenda do Barba-Ruiva”; noutro (“Barba”), informa que “um dos mitos mais populares do Piauí é o Barba Ruiva”.

Na verdade, o que amiúde se vê é o uso de um termo pelo outro, às vezes indistintamente, como se quase sinônimos fossem.

No que refere aos folcloristas que se dedicam ao assunto, referindo-se lateralmente à matéria com alguns exemplos ou mesmo apresentando um repertório mais amplo, muitos deles costumam salvar-se empacotando tudo num só volume, no qual pregam o rótulo “Mitos e Lendas”, para identificar coletâneas desse jaez.

Fonte:
http://www.folcloreolimpia.com.br/?pagina=folclore=mitoselendas

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