sábado, 29 de dezembro de 2018

Teixeira de Pascoaes (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 9) I


DEDICATÓRIA

- Este pequeno livro é para ti,
Minha irmã. Hás de lê-lo com amor,
Pois nele encontrarás o que sofri
E uma sombra talvez da tua dor.
E nele, embora em nevoa, encontrarás
A Imagem de teu Filho...
                        Ó minha irmã,
Sei que és a campa viva onde ele jaz;
Sei que este livro é cinza, poeira vã
Que eu espalho em redor da tua cruz...
Mas ante a negra dor que me tortura,
Quis vingar-me da Morte, e ergui à luz,
Cantando, este meu cálix de amargura.

MÃE DOLOROSA

Vi-o doente, ouvi os seus gemidos;
Sinto a memória negra, ao recordá-lo!
A Mãe baixava os olhos doloridos
Sobre o Filho. E era a Dor a contemplá-lo!

Depois, nesses instantes esquecidos,
Ou lhe falava ou punha-se a beijá-lo...
Mas, retomando, súbito, os sentidos,
Estremecia toda em grande abalo!

Fugia de ao pé dele sufocada,
A sua escura trança desgrenhada,
Os seus olhos abertos de terror!

E então, num desespero, a Mãe chorava,
E, por entre gemidos, só gritava:
Amor! amor! amor! amor! amor!

JUNTO DELE

Que terrível tragédia ver a gente,
No seu exíguo e doloroso leito,
Uma criança morta, um Inocente,
Um pequenino Amor inda perfeito!

Oh que mimosa palidez tremente
A do gélido rosto contrafeito!
As mãozinhas de cera, docemente,
Ó dor, ó dor, cruzadas sobre o peito!

Ó Deus cruel que matas as Crianças!
Auroras para o nosso coração,
Alegrias, alívios, esperanças!

Não sei quem és; eu não te entendo, Deus!
E penso, com terror, na escuridão
Desse teu Reino trágico dos Céus...

NAS TREVAS

Como estou só no mundo! Como tudo
É lagrima e silencio!

Ó tristeza das Coisas, quando é noite
Na terra e em nosso espirito!... Tristeza
Que se anuncia em vultos de arvoredos,
Em rochas diluídas na penumbra
E soluços de vento perpassando
Na tenebrosa lividez do céu...

Ó tristeza das Coisas! Noite morta!
Pavor! Desolação! Escura noite!
Fantástica Paisagem,
Desde o soturno espaço à fria terra
Toda vestida em sombra de amargura!

Erma noite fechada! Nem um leve
Riso vago de estrela se adivinha...
Somente as grossas lagrimas da chuva
Escorrem pela face do Silencio...

Piedade, noite negra! Não me beijes
Com esses lábios mortos de Fantasma!

Ó Sol, vem alumiar a minha dor
Que, perdida na sombra, se dilata
E mais profundamente se enraiza
Nesta carne a sangrar que é a minha alma!

Ilumina-te, ó Noite! Ó Vento, cala-te!
Negras nuvens do sul, limpe os olhos,
Desanuvie a brônzea face morta!

Oh, mas que noite amarga, toda cheia
Do teu Fantasma angélico e divino;
Espirito que, um dia, em minha irmã,
Tomou corpo infantil, figura de Anjo...
E para que, meu Deus? Para partir,
Com seis anos apenas, no primeiro
Riso da vida, em lagrimas, levando
Toda a luz de esperança que floria
Este ermo, este remoto em que divago...

Como estou só no mundo! Como é triste
A solidão que faz a tua Ausência,
E o terrível e trágico silêncio
Da tua alegre Voz emudecida!

Ó noite, ó noite triste! Ó minha alma!
Tu, que o viste e beijaste tantas vezes,
Tu, que sentiste bem o que ele tinha
De angelica Criança sobre humana,
Não vês as próprias coisas como sofrem,
E como as grandes arvores agitam
As ramagens de lagrimas e sombras?

Repara bem na lúgubre tristeza
Da nossa velha casa abandonada
Da divina Presença da Criança!

Ah, como as portas gemem e os beirais
Têm soluços de vento...

Lá fora, no terreiro onde brincavas,
A noite escura chora...

                        Ó minha alma,
Embebe-te na dor das Coisas ermas;
Chora também, consome-te, soluça,
Junto á Mãe dolorosa, de joelhos...

OLHAR ETERNO

Aquele olhar tão triste,
Onde ia, feito em lagrima, o que eu sou,
Isto é, tudo o que existe,
No instante em que pousou,
Relâmpago do Além,
Sobre ti, meu querido e pobre Anjinho,
Já deitado na cama e tão doentinho,
Cercado da aflição de tua Mãe;
Esse olhar fez-se eterno,
Em meus olhos ficou: é luz do inferno
Que tudo me alumia...

Parece a luz do dia!

Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912.

Contos e Lendas do Mundo (China: A Pereira Mágica)

por Pu Songling (1640-1715)
___________________________

 Um camponês vendia no mercado peras doces e perfumadas, mas muito caras. Diante da carroça de peras, um monge taoista pedia esmolas. Ele tinha a túnica esfarrapada e o capuz rasgado.

- Quer fazer a gentileza de dar o fora daqui! - gritou o camponês.

O monge recusou-se a ir embora. Com muita raiva, o camponês começou a insultá-lo. Depois de um tempo, o monge disse:

- Você tem uma quantidade enorme de peras, e eu, um velho monge maltrapilho, quero uma só. Por que ficar com tanta raiva, se vai perder muito pouco se me der o que estou pedindo?

As pessoas em volta sugeriram que o vendedor de peras se livrasse do monge dando-lhe uma, não das mais bonitas, claro, para que ele deixasse o lugar, mas o camponês se recusou a aceitar essa ideia.

No fim, um rapazinho de uma birosca ali perto, atordoado com a gritaria, tirou do bolso uns tostões e comprou uma pera, oferecendo-a ao monge, que prontamente agradeceu gesto tão caridoso. Em seguida, o monge virou-se para a multidão e disse:

- Nós, religiosos, que deixamos nossas famílias, não conseguimos compreender por que existe tanta avareza. Eu, por exemplo, tenho peras excelentes, e gostaria muito de reparti-las com vocês.

- Mas, se tem peras excelentes, por que não come uma delas, em vez de ficar aqui nos aborrecendo? – perguntou um dos homens.

- Porque eu preciso das sementes para plantar – respondeu o monge.

Imediatamente, ele pegou a pera com as duas mãos e começou a comê-la. Pelo jeito, devia estar bem gostosa. Antes de terminar, pôs as sementes na palma da mão, tirou a pequena pá que carregava na cintura, usada para colher plantas medicinais e começou a cavar um buraco. Quando o buraco ficou pronto, jogou dentro deles as sementes, cobrindo-as com terra.

O monge ficou de pé, examinou com cuidado a cova que tinha feito e disse que precisava regá-la com água quente. Um curioso trouxe um pouco, de uma venda ali perto, e o monge despejou-a devagar sobre a terra recém revolvida.

Todo mundo seguiu seus movimentos com atenção. E nesse instante, saiu da terra um broto, que cresceu, e instantes depois se transformou numa árvore com galhos frondosos. Nem bem as pessoas se recuperaram da surpresa, as flores desabrocharam nos galhos, que se inclinaram, carregados de peras doces e perfumadas. 

O monge taoista subiu na pereira e começou a colher as peras dos galhos mais altos, oferecendo-as a quem quisesse. Num piscar de olhos, tudo foi distribuído. O monge pegou então a pá e bateu com ela no tronco da pereira, quebrando-o em pouco tempo. Pôs o tronco nos ombros, com a folhagem, e seguiu tranquilamente pela rua.

O camponês, que tinha entrado no meio da multidão logo no início, quando o monge tinha começado a plantar as sementes, estava tão fascinado que nem se lembrava mais da carroça. E quando o monge afastou-se, voltou correndo para as suas peras  e teve uma surpresa maior ainda: a carroça estava vazia.

Por fim ele compreendeu o que tinha acontecido. Eram suas as peras que o monge havia distribuído de maneira tão generosa. Ele percebeu também que a carroça estava sem um dos varais, certamente serrado há bem pouco tempo. Indignado, foi atrás do monge. 

No canto do muro, estava o varapau que faltava. Era ele, então, o tronco da árvore! Quanto ao taoista, nunca soube em que direção tinha seguido.

Fonte:
http://www.capparelli.com.br/contos.php

Nilto Maciel (A Vida Eterna de Luís Lamento)



A notícia da morte de Luís Lamento arrastou para as ruas milhares de pessoas. O choro coletivo inundou as cidades num abrir e fechar de olhos, feito rios transbordantes. Alguns grupos iniciaram saques e depredações. Porta-vozes do governo trataram de desmentir a tragédia, antes que os pequenos tumultos se transformassem em grandes distúrbios. Apesar disso, os mais radicais não desistiram de quebrar vidraças, incendiar carros e praticar toda a sorte de vandalismos. A maioria, porém, conteve as lágrimas e voltou para casa. E a polícia baixou o pau em cima dos descrentes. Presos alguns, feridos outros, no início da noite acabaram-se as escaramuças.

Na manhã seguinte, a imprensa noticiou amplamente os atos de anarquia praticados por grupos extremistas, sem se referir à morte de Lamento. Nos outros dias, voltaram à baila as guerras, os atentados, os furacões, tudo no estrangeiro, e os crimes passionais, os estupros, os furtos, cá entre nós.

– Sem pena de morte, isso nunca vai acabar.

– O negócio é mão de ferro.

– Uma ditadura.

Ninguém sabe de onde partiu o boato. Falava-se no desaparecimento de Luís Lamento. Cochichava-se nas esquinas, nos cafés, nos bares.

– Mataram mesmo?

– Não sei.

Corriam-se os olhos pelos jornais e nada de concreto. Procuravam-se jornalistas e todos se horrorizavam. Devia ser boato mesmo.

– O homem fugiu?

O governo nada esclarecia. Não pretendia exilar ninguém.

– Não terá fugido?

E o grande espanto da nação – Luís Lamento apareceu na televisão para negar sua morte.

Maior espanto, porém, seguiu-se a este: um panfleto lançado do alto dos edifícios falava em farsa e se referia ao homem que se apresentou ao público como sendo um imitador de Luís Lamento, palhaço vendido ao governo. O verdadeiro jazia numa cova rasa do presídio político.

E dessa vez a imprensa noticiou o desaparecimento de Lamento em variadas versões: enforcou-se com um cinto, bebeu veneno, cortou os pulsos, fugiu para o exterior, pediu asilo.

O verdadeiro assassinato de Luís Lamento ocorreu muito tempo depois. A notícia do fato, porém, não mereceu mais a crença de ninguém.

– É mentira.

Mesmo diante da fotografia do cadáver, o povo preferia acreditar noutras burlas.

– Ele não tinha esses olhos enormes.

Cada um criava a sua lenda: embarcou para a lua numa nave russa, fundou um império na pirosfera, virou macaco, adquiriu os poderes da transparência, dividiu-se em dois, agigantou-se e, de tanto crescer, passou a girar em torno do sol.

Fonte:
Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Carolina Ramos (O Valor da Palavra)


Dizer que o silêncio é ouro é lugar comum. Máxima aceita sem restrições, embora não totalmente correta. Em muitos casos, nem sempre o silencio substitui a palavra sem os deméritos que apontem para a fuga, para  o subterfúgio, para a dissimulação, não passando de  cômoda abstenção que não define e nem compromete a quem lança mão deste artifício.

Nada substitui o valor de uma palavra em situações em que ela  assume a postura de marco entre o tudo e o nada. Entre a verdade e a mentira. Entre aquele o Sim e aquele Não, quando sequer é admitida a intrusão indecisa de um débil Talvez.

Um Sim  define duas vidas ante um altar. Um Não separa dois corpos e arrasta duas almas rumo a destinos divergentes, à mercê dos tropeços que a vida trama ao reescrever o incógnito roteiro de seus novos passos.

Há palavras frias, ferinas, afiadas como lâminas cruéis! Palavras que ferem, que castigam que matam! Amargas e cheias de veneno, tais como – raiva, ódio, medo, corrupção, vingança, guerra etc.!

Em compensação, outras palavras há, belíssimas, de aura luminosa, de conteúdo imenso e transcendental! Amor é a maior delas!

 Amor! Palavra que deveria ser sempre escrita com maiúscula e que,  urdida dentro de suas reais dimensões, não caberia numa página, pois tem valor de imensidão!

 Una, sem sinônimos, a palavra Amor é de uma riqueza impar, embora continuamente desgastada e ultrajada sempre que, com vileza,  for dimensionada fora do critério divino com que foi criada.

Amor...é o começo dos começos! Palavra ilimitada em cuja dimensão infinita cabe um Deus!

O Amor não tem preço - Ele é o Tudo!

No entanto, sem que se entenda o porquê, Amor é a palavra menos usada e também a mais desgastada pelo desprezo da humanidade que, em sua constante rebelião interior, a ignora, trocando-a pelo apego às mazelas que paradoxalmente a conduzem ao Nada!

Vão-se os tempos, vão-se as gerações enoveladas nas teias que elas mesmas tecem, sem que consigam encontrar o fio condutor que as liberte do labirinto criado por suas próprias mãos, movidas por paixões dominantes que as arrastam, quando tinham tudo para conduzir, sem serem conduzidas. Dominar sem serem dominadas e, vencer, ao invés de serem vencidas.

Entretanto, assim como não há causa sem efeito, assim como um veneno fatal pode ainda ter um antídoto, há também uma palavra terna, que parece fraca, frágil... mas absolutamente, não é nada disto.

A palavra é Esperança - que tem força desmedida e se abastece na alma de cada ser a ajuda-lo a sonhar... e sonhar... sempre uma vez mais!   

E essa palavra, verde como um tenro broto que viceja, cresce e  rasga nuvens densas  do horizonte azul da Terra do Sonho a apontar confiante outra palavra soberana, tão pequenina,  três letras apenas que traduzem o coletivo anseio, acenando, de longe, num fraterno apelo: - PAZ!

 Há, entretanto, uma última palavra a ser anexada. Pequenina e tão grande que é capaz de envolver todas as palavras do mundo, porque abraça o Amor, abraça a Esperança e abraça, também, a Paz! Essa palavra poderosa tem apenas duas letras que a tornam dona do Universo, essa palavra é - FÉ!

Fonte:
A Autora

domingo, 23 de dezembro de 2018

Pausa

Estarei dando uma pausa nas postagens, para as festas de fim de ano, mas retorno em seguida. 

Então deixo para você:



Hilda Persiani (Poemas Avulsos)



AH, O AMOR!

Ah, o Amor! Misterioso Amor!
Nunca está onde o procuramos...
Quando menos se espera, o encontramos
E da nossa vontade, torna-se senhor.

Tem seus caprichos, acontece,
O Amor não tem definição, 
Toma de arroubo nosso coração
E do nosso ser, a mente entorpece.

O Amor é lindo quando é verdadeiro!
Também fui jovem e também amei,
Troquei juras de amor e também sonhei ...

Hoje vivo a recordar meu companheiro,
“Até que a morte nos separe”: - juramos,
Ela chegou ... Então, nos separamos!…

BISBILHOTANDO

O moço que vejo parado na esquina,
Está apaixonado por alguém da minha rua,
Estou desconfiada que é por uma menina
Muito bonita, de olhos claros cor da lua.

Mas a jovenzinha, não toma conhecimento
E o pobre moço insiste em conquistá-la...
Entretanto, ela, talvez por acanhamento,
Ao vê-lo, sai da janela e bate ao fechá-la.

Sou idosa, mas não sou bisbilhoteira...
Foi por acaso que percebi o que se passa,
Tenho pena do moço, que perde a estribeira

Toda vez que a menina aparece.
Para ajudá-lo vou rezar e pedir Graça,
Talvez Deus me ouça e o romance comece!...

DOÇURAS DE RECORDAR

Eu me lembro, eu ainda era bem pequena,
A cozinha, fogão à lenha crepitando,
Minha mãe ao lado, sua face serena,
Como sempre sorrindo, cantarolando,

Na sala de jantar a mesa era oval,
A toalha, de linho branco, engomada,
Vejo meu pai na poltrona, lendo jornal,
Meus irmãos brincando, dando risada;

 Revejo o bibelô na cristaleira,
Sinto o aroma de alfazema pelo ar,
Certamente das flores da cantoneira,

 Quanta harmonia havia naquele lar!
São lembranças que guardei a vida inteira...
Quem me dera ter feito o tempo parar!?

EU E VOCÊ

Os anos tão depressa se passaram
Mas eu ainda me lembro...
Foi num mês de dezembro
Que nossos olhares se cruzaram.

Suas mãos as minhas segurando,
Você me disse : “Quer ser minha namorada?”
E há meio século com você estou casada
E continuamos sempre namorando.

Pela vida seguimos de mãos dadas,
Colhemos flores nas beiras dos caminhos,
Sempre juntos afastamos os espinhos.

Nosso pôr do sol já vem se aproximando,
Que importa? Se além da caminhada,
Com certeza continuaremos nos amando?!

LÁGRIMA

Quem nunca uma lágrima verteu,
Seja de tristeza ou seja de alegria,
Em qual face uma lágrima não correu?
Todas as faces ela umedeceu um dia...

Quantas rolaram por amor desfeito,
Outras rolaram por amor traído,
Quantas ficaram retidas dentro do peito,
Outras tantas tremularam sem ter caído.

Incolor, límpida, transparente,
Às vezes até mesmo sem razão,
Escorrem pela face docemente
Ou rolam em suspiro pelo coração.

Mas quando se chega na terceira idade,
As lágrimas que banham nosso rosto
Ou são causadas por algum desgosto
Ou rolam como carícia, de saudade!…

MOÇA 

Você que é moça e formosa
Que só conhece da vida
Sua vereda florida
E seu perfume de rosa.

Seus olhos são tão brilhantes,
Tem nuances de veludo,
Quais estrelas fulgurantes
Vivem sorrindo de tudo...

O tempo que corre sempre,
No seu compasso apressado,
Vê seu sorriso atraente
Vai caminhando ao seu lado.

Um dia, ao seu despertar
E no espelho se olhar,
Verá o que o tempo fizera...

Da moça que ali estava,
Que o tempo acompanhava:
– A juventude... Já era!…

NAMORO NO MEU TEMPO

No meado do século passado
A donzela ficava na janela
Esperando o namorado...
E ele surgia, sorrindo para ela.

Vinha apressado, elegante, garboso,
De terno e gravata, cabelo impecável,
Barba bem feita, sapato lustroso...
E ela sorria, terna e amável.

Descia correndo ao portão,
Feliz por receber o amado...
Que trazia uma rosa na mão
Para lhe fazer um agrado.

Depois... o vai e vem na calçada,
Era permitido andar de mão dada 
Se o namoro era para noivar.

Na hora marcada, de volta ao portão,
Um olhar, um sorriso, um aperto de mão...
Casar primeiro... Depois " Ficar" !

NOSTALGIA

Muitas vezes, em certas tardes de estio,
Dá uma vontade irresistível de chorar,
O pranto vem aos olhos, coração vazio,
Vago perfume de saudade inunda o ar...

É a saudade daquela velha história
Que a gente sabe que não mais existe,
Mas está sempre voltando na memória,
Trazendo com ela uma alegria triste,

Parece ás vezes uma mera nostalgia,
Lembrando antigas palpitações de amor,
Uma vaga sensação de melancolia,

Saudade, anseio vão, felicidade fugidia
Do passado, quando a vida nos sorria
 E deixamos a alma sofrer...Bendita dor!

RECEITA

O tempo passou depressa, envelheci,
Os sonhos foram ficando para trás,
Sinto-me feliz porque ainda estou aqui,
Vou prosseguindo com meu sorriso audaz...

Minha receita é prática: “ Muita alegria,
Uma chávena bem cheia de esperança,
Não coloque na receita, nostalgia;
Não esqueça de colocar perseverança;

Pra compensar, coloque sonho e doçura,
Um pouco de saudade, não em demasia.
Essa receita não leva amargura...

Cozinhe tudo com fé e confiança.”
A maneira de servir essa iguaria
É sorrindo...Que vida longa, alcança ...

RETRATO

Hoje, revendo seu retrato
Que o tempo impiedoso desbotou,
Constatei, com tristeza, que de fato,
Da mocidade só saudade me restou.

Por um momento tive a ilusão
Que o seu retrato criou vida,
Sorriu, chamou-me de querida
E fez acelerar meu coração...

De repente o sonho se desfez...
Ele novamente foi descorando
Voltando a ser só um retrato outra vez.

Mas, nesse breve sonho de momento,
Eu me senti feliz e então chorando
O seu retrato beijei com sentimento!...

SONHAR

Sonhar dormindo ou acordada,
Sonhar com um velho desejo,
Sonhar com a  pessoa amada,
Não é motivo de pejo.

Quem não sabe sonhar
Ou de sonhar não é capaz
Deve se encorajar
E verá que sonhar lhe apraz.

Discordo de quem disser
que sonhar é divagar...
Deixo aqui o meu pensar:

– Seja homem ou mulher,
Independente da idade,
Sonhe! Sonhar traz felicidade!

Arthur de Azevedo (A Doença de Fabrício)



O Fabrício era amanuense numa repartição pública, e gostava muito da Zizinha, filha única do Major Sepúlveda.

O seu desejo era casar-se com ela, mas para isso era preciso ser promovido porque os vencimentos de amanuense não davam para sustentar família. Portanto, o Fabrício limitava-se à posição de namorado, esperando ansioso o momento em que pudesse ter a de noivo. Um dia, o rapaz recebeu uma carta de Zizinha, participando-lhe que o pai, o Major Sepúlveda, resolvera passar um mês em Caxambu, com a família, e pedindo-lhe que também fosse, pois ela não teria forças para viver tão longe dele. Sorriu ao amanuense a ideia de ficar uma temporada em Caxambu, hospedado no mesmo hotel que Zizinha. Sendo como era, moço econômico, tinha de parte os recursos necessários para as despesas da viagem; faltava-lhe apenas a licença, mas com certeza o ministro não lha negaria. Enganava-se o pobre namorado. O ministro, a quem ele se dirigiu pessoalmente, perguntou-lhe de carão fechado:

– Para que quer o senhor dois meses de licença?

– Para tratar-me.

– Mas o senhor não está doente!

– Estou, sim, senhor; não parece, mas estou. 

– Nesse caso submeta-se à inspeção de saúde e traga-me o laudo. Só lhe darei a licença sob essa condição. 

Três dias depois o Fabrício, metido numa capa, com lenço de seda atado em volta do pescoço, a barba por fazer, algodão nos ouvidos, foi à Diretoria Geral de Saúde. O seu aspecto era tão doentio que o doutor encarregado de examiná-lo disse logo que o viu:

– Aqui está um que não engana: vê-se que está realmente enfermo! E dirigindo-se ao Fabrício: 

– Que sente o senhor?

O Fabrício respondeu com uma voz arrastada e chorosa:

– Sinto muitas coisas, doutor; dores pelo corpo, cansaço, ferroadas no estômago, opressão no peito.

– Vamos lá ver isso! Dispa o casaco! O Fabrício pôs-se em mangas de camisa, e o médico auscultou-o.

– Não tem tosse? 

– Tenho, mas só à noite; não me deixa dormir.

– Bom. Pode vestir o casaco. 

E o doutor foi escrever o laudo, que entregou ao amanuense. Este na rua desdobrou o papel, para ver que espécie de doença lhe arranjara o médico e leu: 

"Cardialgia sintomática da diátese artrítica." 

Não imaginem o efeito que lhe produziram essas palavras enigmáticas para ele.

– E não é que eu estou mesmo doente? – pensou o pobre rapaz.

Ao chegar a casa, tinha as fontes a estalar. Vieram depois arrepios de frio, a que sucedeu uma febre violenta e febre foi ela, que durou vinte dias. O enfermo teve alta justamente quando Zizinha voltava de Caxambu com um noivo arranjado lá. 

Maldita cardialgia sintomática da diátese artrítica.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

Contos e Lendas do Mundo (Nigéria: O Desafio e o Mensageiro)


Segundo os mitos de alguns povos nigerianos, Olodumare é o deus supremo. O seu nome significa «majestade poderosa e eterna». Mas, segundo reza um mito dos Iorubas, houve tempos em que Olokum, o deus da água, quis esse título para si.

- Estou farto de fazer a vontade a Olodumare - queixou-se

Olokum um dia, enquanto passeava ao longo das margens do rio que tinha o seu nome, na companhia do seu servo humano. 

- Não serei eu um dos deuses mais amados e venerados? Não é o meu rio que enche os oceanos do mundo e mata a sede a todas as plantas, animais e humanos?

- Oh, sem dúvida, poderoso Olokum - respondeu o servo.

O deus e o seu servo detiveram-se e olharam para o outro lado do rio - também conhecido por Etíope - onde ficava a terra das almas. Era ali que as almas dos mortos iam repousar e as dos bebês por nascer iniciavam a sua jornada até ao mundo.

- Não serei eu o dador da vida? - perguntou Olokum.

Nesse momento, a alma de uma criança prestes a nascer numa aldeia próxima atravessou o rio e parou em frente do deus da água. Este abençoou a alma com palavras secretas e sagradas e fez-la seguir viagem cheia de esperança pela nova vida que estava prestes a iniciar.

 - Vós sois o deus mais amado e respeitado de todos - declarou o servo, fazendo-lhe uma vênia. - Os vossos templos são os mais coloridos. Enchem-nos os tecidos mais ricos e as estátuas mais belas. Muitas casas têm santuários dedicados a vós e todos os dias vos rezam.

- Basta! - exclamou Olokum. - Tudo o que dizes é verdade, mas Olodumare é o mais venerado. Continua a ser o deus supremo... dono e senhor de todos nós!

Olokum regressou ao seu palácio sob as águas, pensando numa maneira de retirar a supremacia a Olodumare. Olokum era um deus bom e compreensivo. Normalmente mostrava-se sábio e generoso e recorria aos seus poderes sem prejudicar os humanos, mas a única coisa que alterava o seu belo rosto com uma expressão de raiva era a posição respeitada que Olodumare ocupava.

O palácio submerso em que Olokum vivia era verdadeiramente espetacular: enchiam-no objetos de regalar a vista e que proporcionavam muito prazer. Era um lugar mágico e tinha no seu interior um cofre de tesouros cheio de oferendas para dar à humanidade. O cofre já não estava tão cheio como em tempos, pois Olokum já dera muitos presentes às pessoas.

- O que foi que Olodumare alguma vez fez pela humanidade além de controlar a vida das pessoas? - perguntou Olokum com um suspiro. Vidas que eu ajudo a tornar suportáveis e até bonitas. Não sou eu quem torna as mulheres belas? Não sou eu quem dá aos humanos os filhos por que anseiam e a boa sorte que merecem?

Nesse instante, o som de belos cânticos encheu os corredores e uma fila de bailarinas apareceu diante do deus.

- O que é que Olodumare pode oferecer e eu não?

- Que eu me lembre, pouca coisa - retorquiu o servo.

- Pouca coisa? - admirou-se Olokum.

- Quero dizer, nada - apressou-se o servo a acrescentar. - Não me lembro de nada.

- Nesse caso, desafiarei Olodumare a provar a sua supremacia perante mim. Veremos quem tem mais direito a ser o deus dos deuses! - exclamou Olokum que, tomada a decisão, se recostou, para desfrutar do resto da dança.

Assim, Olokum mandou o seu servo entregar uma mensagem ao deus supremo Olodumare, ordem à qual ele obedeceu, temeroso. Ao chegar diante do deus, o servo de Olokum tremeu.

- O que te fez vir até aqui? - perguntou Olodumare. - Porque mostras tanto medo de mim?

- Sabeis porquê, poderoso Senhor dos Céus - respondeu o servo.

- Sei? - admirou-se Olodumare, inclinando-se no seu enorme trono.

 - Vós tudo sabeis e tudo escutais - adiantou o servo.

- Mesmo assim, diz-me ao que vieste - disse o deus supremo.

- Olokum, meu senhor, desafia-vos a disputar o lugar de majestade poderosa e eterna - respondeu o servo, sentindo a boca secar-se-lhe de pavor.

- Achas que ele será bem sucedido no seu repto? - quis saber Olodumare, sorrindo.

- Não me compete dizer - respondeu o servo, de olhos fixos no chão.

- Aí está uma resposta sábia - observou o deus. - Admiro a tua lealdade a Olokum, mas será que não vês que o teu senhor está condenado ao fracasso?

- Deve achar que não será assim - retorquiu o servo.

- Quanta falta de modéstia da parte dele - riu-se Olodumare. Normalmente, Olokum é um deus ponderado. Deve realmente desejar o meu lugar... Diz-lhe que aceito o seu desafio.

- Aceitais, Criador? - gaguejou o servo de Olokum, espantado. Olokum pode vir aqui desafiar-vos?

Olodumare pôs-se, lentamente, de pé.

- Será que foi isso o que eu disse? - Sorriu. - Apenas respondi que aceitava o seu desafio, nada mais. Como é evidente, ando demasiado ocupado para aceitar o desafio de Olokum pessoalmente. Tenho assuntos mais importantes com que ocupar o tempo do que meter deuses invejosos no seu devido lugar... Diz ao teu senhor que mandarei um emissário responder ao seu desafio. - «Não lhe vai agradar nada», pensou o servo. - Terá de se contentar com isso - observou o deus supremo, lendo os pensamentos do servo. - Olokum deverá tratar o emissário com o mesmo respeito que eu próprio receberia. Agora vai e diz ao teu senhor que se prepare para receber a chegada do meu emissário.

- Um emissário! - indignou-se Olokum ao saber da resposta. - Então eu desafio Olodumare pelo direito a ocupar o seu lugar, e ele, em vez de vir pessoalmente, manda um emissário?

- Um emissário importante - esclareceu o servo. - Tão importante que vos pede que o trateis com o mesmo respeito como se fosse ele.

- Muito bem - declarou Olokum. - Olodumare envelheceu. Como sabe que o venceria em qualquer desafio, não tem coragem de me enfrentar. O servo achou mais cauteloso não fazer qualquer observação.

- Só me resta aguardar - disse Olokum. Bateu as palmas. - Quero música e dança! - ordenou.

De repente, gerou-se grande movimentação no palácio subaquático e foram informar Olokum de que o emissário chegara.

- Já cá está? - admirou-se Olokum perante o seu servo. - Primeiro vou mudar de roupa e depois recebê-lo-ei.

O servo pediu então ao emissário que se sentasse e esperasse por Olokum.

O seu senhor fez uma entrada triunfal, com as suas vestes a rodopiarem e a rasgarem o ar em seu torno como se fossem ondas do mar que ficava por cima. Quem poderia ficar indiferente a vestimentas tão suntuosas?

Ao ver o emissário que, delicadamente, se levantara quando da sua entrada, Olokum ficou de boca aberta. Então não era que ele envergava as mesmas vestes que ele próprio! E Olokum, que pusera vestes suntuosas para mostrar como era importante, reparava que, afinal, aquele humilde emissário trajava da mesma maneira!

- Perdoai-me, pois devo ir tirar estes andrajos miseráveis - disse Olokum. Saiu da sala e correu ao seu quarto em busca de roupa ainda mais rica.

Trajando vestes de tecidos requintados e coloridos, Olokum voltou para junto do emissário. Ao caminhar, garboso, pelo palácio, não houve servo, dançarino ou cantor que não ficasse pasmado diante da beleza do seu vestuário. Nunca tinham visto o seu senhor tão magnífico... Mas, ainda outra vez, a roupa do emissário era igual à dele!

Olokum, a espumar de raiva mas sem querer dar o braço a torcer, dirigiu-se ao emissário de Olodumare pela segunda vez.

- Perdoai-me - disse. - Pareceu-me detectar uma nódoa nesta minha modesta veste. Irei mudar-me mais uma vez, para depois vir para junto de vós.

Mal controlando a sua cólera, regressou apressadamente aos seus aposentos, onde envergou os trajos mais belos que possuía, os mesmos que tencionara vestir quando derrotasse Olodumare e assumisse o título de deus supremo.

Emissário algum poderia, sequer, sonhar com a existência de trajos tão belos. O de Olodumare ficaria, sem dúvida, assombrado...

Olokum, porém, enganava-se. Quando voltou à sala, as roupas do emissário igualavam a suntuosidade das de Olokum. Este sentiu-se desanimado e derrotado. Que esperança poderia ter em derrotar o próprio Olodumare quando o seu emissário era capaz de se antecipar a qualquer jogada sua?

De repente, Olokum deu-se conta de quão tolo fora. Porque não contentar-se em ser o mais amado e respeitado dos deuses? Ele trazia crianças e beleza ao mundo. Não precisava de ser o deus mais venerado, nem o mais poderoso.

Pousou a sua mão sobre o ombro do emissário.

- Ide e dizei a Olodumare que aprendi a lição - declarou calmamente. Contai-lhe que me haveis derrotado ainda antes de o desafio ser iniciado.

O emissário de Olodumare, sem proferir uma palavra sequer, abandonou o palácio debaixo do mar e regressou aos céus.

Olokum nunca o soube, mas foi enganado pela própria Natureza. O emissário era um camaleão - um animal capaz de mudar a cor e a aparência da sua pele de acordo com o que o rodeia. Matizara-se de acordo com as vestes de Olokum, igualando cada um dos trajos com que este aparecia.

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