sábado, 15 de julho de 2023

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 12

 

Sammis Reachers (A fundação do MMA numa comuna gonçalense)

Demorou bastante para que eu aprendesse a devolver com mínima perícia os golpes que levava. Nesse curso fui ajudado por algo em que nosso bairro foi o pioneiro. Sim, se hoje somos o país do MMA, as Mixed Martial Arts (Artes Marciais Mistas), naquelas alturas ou profundezas da década de oitenta os Gracies talvez ainda nem sonhassem em criar esta modalidade.

E nosso bairro já contava com uma, deixe-me celebrar em maiúsculas, ARENA COMUNITÁRIA DE COMBATES.

Mas, como era isso?

Nosso rio Alcântara era fonte do ganha-pão de alguns dos moradores da comunidade. Efetivos ou esporádicos, muitos moradores defendiam seu trocado tirando areia do rio. Sim, sim, não havia IBAMA que os impedisse, e a fonte parecia mesmo inesgotável. Até eu, em infância, certa vez me somei a um mutirão de moleques para tirar areia do rio em troca de... tomar banho numa grande piscina, num casarão onde certo conhecido era caseiro. Sim, sim, também não havia Conselho Tutelar que nos salvasse, e nossos pais de nada sabiam. Era um tempo em que o moleque ia para a rua de manhã, voltava sujo para almoçar, e antes que a mãe desse por ele ou terminasse de desfilar a bronca, o brucutu já se evadia para a rua de novo, vadiando até o anoitecer.

Amigos, ao poder da pá, da enxada e da chibanca, não apenas a areia era o recurso natural explorado pela comunidade. A areola*, com sua fina textura marrom, utilizada em emboços, na massa para assentar tijolos e também como terra para plantas, era outro recurso lucrativo, esse escavado dos muitos terrenos baldios.

Acontece que um empreendedor, um inovador desconhecido do bairro, teve a suprema ideia de matar dois coelhos com uma só bordoada. Ou pazada, ou enxadada que seja. Na margem do rio, em certo ponto, ele começou a escavar a areola, que era prontamente vendida. Quanto ao espaço que ficara escavado, um imenso retângulo, ele o usava para jogar a areia que arrancava do rio – o que era facilitado pela diminuição do patamar da margem, já escavada. Assim ele conseguia produzir os dois “gêneros” num mesmo local.

O inusitado foi que, numa feliz ação do destino guerreiro que rege a espécie humana, uma cheia do rio – que sofria cheias regulares – submergiu aquele trecho. Quando as águas desceram, uma surpresa nos agraciou, presente dos deuses da guerra: Aquele grande “quadrado” escavado às margens do rio fora ocupado completamente por areia – mas não era a areia mais grossa ou cascalhenta que costumava ser tirada do rio para a venda: era uma areia mais fina, como a areia de praia. Aquele vácuo, atingido pela cheia, serviu como uma espécie de baía que, com o fluxo do rio, acumulou apenas a areia mais fina, a que conseguia flutuar em suspensão nas partes mais altas do fluxo de água da enchente. Assim, ao baixarem as águas barrentas, somente a areia fina fora “capturada”.

Aquele lugar era amplo, mas insuficiente para o jogo de futebol, a famosa pelada – e para isso a comunidade já contava com um campinho mais acima do morro. E as areias eram muitas. Assim, uma solução foi encontrada: O areal passou a ser campo de honra – não, não um cemitério – mas campo onde as honras entravam em disputa. E assim as briguinhas entre as crianças passaram a ser resolvidas ali – do outro lado do rio (na margem contrária donde havia moradias), longe da vista ou ao menos da ação dos pais.

Todo dia tinha pancadaria, não apenas “à vera”, mas “à brinca” também. Um contra um, dois contra dois... Até battle royale (todos contra todos) foi experimentada em nosso caldeirão. César, Septímio Severo, Caracala, qualquer imperador romano exultaria ao ver aquela pequena e mambembe escolinha de gladiadores gonçalense! E, por Deus!, quanta porrada tomei ali!!!

Aquilo se tornara também um campo de sadismo para alguns dos moleques mais velhos, que incorporavam aquele espírito universal, o do sargentão de caserna: Eles estimulavam os combates, impediam a fuga dos desertores e ainda puniam os rebeldes – apanhando-nos pelos membros e balançando-nos como fardos que, após ganhar força cinética, eram lançados de costas – ou como fosse, Deus nos ajudasse – sobre a areia.

Antes do MMA ser criado, antes das artes marciais mistas serem efetivadas no gosto nacional, a Beira Rio já formava – a ferro, fogo e lágrimas empapadas com areia – seus campeões.
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* Areola = (geografia) erosão que se efetua sobretudo lateralmente.

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Daniel Maurício (Origamis de Palavras)


Aquarela no jardim...
Aguada,
A natureza colore as pétalas
Sob a chuva fina
Ranhuras desenhadas
Revelam autênticas
Digitais divinas.
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A Torre
Que a cidade espia
Divide segredos
Com a lua cheia.
Cheia...
Cheia de sonhos e suspiros
Que dos apaixonados escapam.
Sedutora bolha de sabão!
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Bailarina

Como um pisar em solo sagrado
Com sapatílhas de cetim
A borboleta baila
Sobre as delicadas pétalas,
Leve, suave e respeitosa.
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Embrulhados
nas folhas secas
vão-se embora
meus desapegos
abrindo novos espaços
para os sonhos
e um amor sem medo,
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Estive ausente
Por algum tempo...
Mas minha alma cantarolava...
Assobiava...
Não para abreviar os dias
Mas sim
Para regar as flores
Que plantava pra você.
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Fé...
No espelho da minh' alma
Já vejo a felicidade
Sorridente a valsar.
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Derretem as areias do tempo
Passam as tempestades do mar
Uivam os lobos no deserto
E os ventos param de açoitar.
Intacto guardei meu amor.
De bem-me-quer
E malmequer
Não quis brincar
Senhora do meu querer
Não deixei-me despetalar.
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Hoje
Emprestei um sorriso
Do porta retrato.
Assim,
Ninguém percebeu
Que chorei.
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Manhã de inverno...
Mesmo ao sol,
As folhas não dispensam
O cachecol florido.
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Na mandala de pinha
Falha ou pinhão
A gralha azul tira na sorte
Talvez um sim
Quem sabe um não.
Ladainha nas copas verdes
Nas tardes frias do Sul
Desfolha a pinha
Ao passar o vento
Feito contas de rosário
Vindo tudo para o chão.
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Na porcelana antiga
Flores orvalhadas
Perfumes e saudades
Lembranças de você.
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Nas flores bordadas
Pela natureza
O perfume contorna cada pétala
Suaves dobraduras
em papel de seda
Acariciam meu olhar
De amor carente
Desenhando rimas
Colorindo versos
A árvore-menina
Toma um banho
De poesia
Faz a alma suspirar.
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Paz…
Repousou suas asas
Num equilíbrio perfeito
Sossegando o meu peito.
Calmaria de lua
Minhas mãos junto às tuas
Agradecem a Deus.
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Quando o amor
Acorda dentro do peito
A rotina vira instinto
E a aparente obrigação
Passa a ser satisfação
Ao ver o brilho
No olhar do outro.
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Saudade...
Barco quebrado no peito
Que sem ter outro jeito
Faz do coração
O seu único cais.
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  Silenciosos raios de sol...
A alma da orquídea
Desabrocha sedutora
Num arrepiante beijo batom.
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Tarde de inverno.
Na xícara de chá,
O amor-perfeito
Lembrando você,
Aquece o meu olhar.
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Tenho
Um céu particular
Nele
Só guardo coisas boas
E não é qualquer pessoa
Que tem acesso
Ao seu portal.
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 Trago tua imagem
aninhada em meu peito
como quem carrega
um escapulário.
Estala em mim os beijos
que em ti
nunca foram depositados.
Assim, na incompletude do desejo
namoro tua foto
revivendo um pouco do passado.
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  Venho a ti
Com a transparência da verdade.
Por isso,
Quando digo que te amo
É porque minh' alma
No altar do amor,
Te desejou primeiro.
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Fonte:
Daniel Maurício. Origamis de Palavras. São Carlos/SP: Pedro e João Editores, 2021.
Enviado pelo poeta.

Teófilo Braga (O véu)

Tive apenas um amigo na infância.

Sinto abrir este conto com a minha personalidade e, sem pretensões a humorismo, nem a estilo digressivo, conheço que a pessoa de um autor inculcando-se na sua obra produz o efeito desagradável, que o senso estético original de João Paulo nota no quadro em que o pintor agrupasse também a palheta, o cavalete e os pincéis. O valor da personalidade pouco é, os antigos compreenderam-na perfeitamente, quando deram o nome de persona à mascara que o ator trazia para reforçar a voz. A personalidade que se toca, serve para o trato da rua; a individualidade, o caráter, revelado na vontade, são imanentes (
inerentes) no livro, são o livro. Antes porém de fechar o parênteses aí vão algumas linhas sobre a pessoa do meu único e primeiro amigo, um alter ego, ou fidus Achates, como diriam dois estudantes de seleta. Não nos demos de repente. Tínhamos o mesmo nome de batismo, fazíamos anos no mesmo dia, começamos a versejar ao mesmo tempo, a afinidade eletiva entre nós não provinha destas coincidências, nunca reparamos nelas; era uma amizade de terror, respeitavamo-nos. Na escola fomos sempre antagonistas,  quando passamos a estudar latim, ficamos surpreendidos ao vermo-nos algemados ao hora, horæ. Ainda os mesmos esforços, o mesmo orgulho.

Então já nos consultávamos sobre alguma dúvida de sintaxe, como de potência a potência. Mais tarde encontramo-nos sobre o mesmo banco a ouvir as preleções estúpidas de lógica, a lógica que nos havia de tornar maus, capciosos, ergotistas (
gosto de argumentar por silogismos). Já não nos temíamos, éramos amigos, tínhamos necessidade um do outro. Depois vieram as confidências estreitar mais esta afeição. Foi ele o primeiro a faze-las. Não sei se era amor, compaixão ou cinismo a primeira aventura que me contou. Era assim:

«Eu tive uma prima, não sei em que grau, culpa das sutilezas canônicas. A pobre criança possuía uma morbidez voluptuosa no olhar, não os tirava de mim. A cor morena dizia tão bem com as linhas nítidas da fisionomia árabe, que ela sabia animar com um ar doloroso de uma melancolia expressiva, que se lhe refletia na face! Eu ficara órfão de mãe e acostumara-me a brincar sozinho; ela procurava-me na minha solidão, sentava-se junto de mim; o seu olhar incomodava-me. Mas tinha medo de fugir-lhe, doía-me esta indiferença e para disfarça-la trepava acima das árvores carregadas de frutos do pomar onde passávamos o verão, e de lá deixava cair aqueles que mais se douravam com os raios do sol de agosto, os que me expunham a maiores perigos. Ela aparava-os no regaço com a afabilidade com que se queria associar aos meus folguedos.

«Afinal teve vergonha de mim; corava, escondia a face entre as mãos, ficava pensativa e depois fugia-me. Neste tempo contava eu algumas lições de desenho, os meus arabescos tinham uma frescura de inocência, uma rudeza que parecia uma criação de pura arte medieval. Eu tinha a monomania (
ideia fixa) de esboçar cabeças. Não sei quem na família, me pediu que fizesse o retrato dela. Fiz-o. O caso deu-lhe uns longes de semelhança, tive vergonha da verdade; quando ela me agradeceu com um sorriso tímido, eu rasgava o papel com a crueldade de uma criança que brinca. Não a tornei a ver naquele dia, escondera-se a chorar. Não tinha culpa desta frieza brutal; a falta de carinhos perdidos logo no berço, a verdade desse verso eterno de Virgilio: “Est mihi pater domi et injusta noverca” (Eu tenho um pai em casa e uma madrasta injusta) tornaram-me taciturno, incrédulo antes do tempo. Às vezes obrigavam-me a brincar com ela. Uma vez fomos todos banhar-nos no Atlântico. A pobre criança também foi. As marés eram gigantescas; era dia para mim de um orgulho imenso, gostava que me vissem nadar; mostrava uma superioridade minha. O acaso seguia-me o desejo. Uma onda envolveu no seu marulho a infeliz Branca; no refluxo levou-a consigo. Desfaleceu de susto e foi levada pela vaga, como Ofélia na corrente. Quem sabe se ela no seu coração tecia alguma coroa para mim.

«Abracei-a pela primeira vez, impelido por uma força interior; sustive-a nos braços, estava fria, pálida. Quando abriu os olhos teve vergonha de mim; era já o pudor de senhora. Trouxe-a sem custo para a praia, e continuei em carreiras no dorso da vaga, que se encapelava. Fora o meu primeiro passo para homem.

«Nesse mesmo dia brincamos, jogando o anel, um divertimento infantil, de que ainda guardo saudades. Neste folguedo de crianças o que tem o anel é sentenciado pelos demais a levar beijos e abraços, ou a dá-los, segundo o capricho. Tinha o anel a filha do feitor que brincava conosco, Anita, uma rapariga de uma candura extrema. Branca pediu-lhe em segredo que ao percorrer a roda deixasse cair o anel entre as minhas mãos. Assim se deu. Um perguntava o que prometiam a quem tivesse o anel. Cada qual se lembrou de uma prenda inocente e sem significado; Branca prometeu um beijo e um abraço muito apertado.

«Eu não devia contar-te mais, porque me sinto infame! Este beijo perdeu-a para sempre, como o beijo de Paulo e Francesca di Rimini. Branca foi crescendo, tornou-se formosa à luz de uma esperança fugitiva, como a flor de um vaso, quando recebe, ao estiolar-se, o calor efêmero do último raio do sol da tarde. Quando ela me sorriu com amargura, e corou de sua queda, sorri também por compaixão, iludi-a. Que fazer, se eu era tão novo, inconsciente, e queria divertir-me, gozar o mundo?

«Uma vez tinha eu voltado pela madrugada de uma festa louca. Dormia a sono solto, prostrado pela fadiga, esgotado da orgia desenfreada. Senti uma mão fria passar-me de leve nas faces, acordei.

«Era ela! Apareceu desmaiada, como a vi uma vez ao luar silencioso, com uma cor que lhe realçava a candidez, e disse-me:

—«Vim ver-te na despedida do túmulo. Desde que adoeci nunca mais me apareceste. O esquecimento é frio e pesado como a laje sepulcral. Eu não queria dizer-te isto, não quero magoar-te; perdoa. Olha, hoje acordei de um sonho tão lindo! Deu-me forças para levantar-me do leito e vestir-me de branco para vir conta-lo a ti só. Como não choraria minha mãe que me vela se o soubesse! Não sei se velava, se dormia; minha alma parecia voar, suspensa numa como cadência, vaga, quase imperceptível, confundia-se com ela até perder-se no céu. Acordei de súbito; restava-me só a ilusão. Olhei em volta, a lampadazinha tornava a solidão pungente, augusta; pavoroso o silêncio de meu quarto. Comecei a lembrar-me de ti, dos tempos passados,  estava já na terra. Foi quando descobri a meu lado uma aparência angelical, a falar-me de mansinho uma linguagem que eu mal entendia: que o Senhor o enviara para chamar-me. Eu não pude voar, voar com ele, e sinto agora que a alma me foge; venho dizer-te adeus.

—E o que lhe respondeste?

«Disse-lhe que os sonhos mentiam sempre, que eles a matavam. — «Não são os sonhos que me matam, gemeu a desgraçada, é a realidade, a realidade. Bem o sabes, e esse que tudo vê. As recordações são para mim como um remorso. Que noites, que vigílias inteiras a pensar em ti! Cada palavra tua, que eu decorava, era um poema de amor e esperança; ao repeti-las na mente diziam-me quanto a alma ansiava, e mais ainda, mas enganaram-me sempre. Lembraste daquela noite? Oh! meu Deus, meu Deus. Não sabes quanto me fizeste sofrer! Não conheceste a profundidade do golpe quando o descarregaste! Disseste-me essas palavras só para perder-me. É impossível que isto não te doa? Quando me apareceste naquela noite era o luar tão sereno, tudo confidenciava conosco. Estava adormecida quando chegaste. Depois de me estreitares nos braços e beijares as faces geladas pelo roçar da noite, porque sorriste de um modo incompreensível? Descobriste-me que não casavas comigo, que outro havia poluído a minha candura! Era uma blasfêmia brutal. Deixei-me cair em teus braços, sacrificando-te a virgindade para que a reconhecesses. Desde essa noite não me tornaste mais a amar. Iludi-te? Porque assim me fugiste? Uma lágrima só reabilitava-te diante de Deus. É tarde, muito tarde. Vim só para despedir-me e perdoar-te. Adeus.»

— E tu que lhe respondeste?

«Voltei-me sobre o outro lado, e continuei a dormir.»

— Prossegue.

«Foi um pesadelo atroz aquele sono. Julgava-me em uma orgia imensa, na hora ominosa (
funesta) do sabbat (sábado) noturno. Um bando de mulheres volteava reunido em uma roda desenvolta, num tripúdio infernal, ao redor de um carvalho lascado pelos raios que se cruzavam a espaços na solidão e obscuridade absoluta da noite. Dançavam como possuídas do mesmo furor que inspirava a corneta de Oberon. Quando eu ia mais arrebatado pelos requebros voluptuosos, enlaçado a um par ligeiro e flexível, senti um leve suspiro a meu lado, que se perdeu nos ares. Era como o segredo de uma mágoa que eu bem conhecia. Parei. Adormecera a ler uma balada dos peregrinos do Reno contada por Bulwer (escritor inglês). Junto a mim descobri uma figura de mulher linda, etérea; o semblante tinha a serenidade de uma grande agonia que cauteriza, uma tristeza mais vaga do que a impressão de saudade que a lua desperta quando se reflete numa lagoa quieta. Era como um serafim quando chora. Não pude olha-la; a candura do seu antigo amor exprobrava-me o cinismo. A viração que ciciava não repetiria tão brandamente o que ela disse:

—«Não sabes como te amo ainda além da campa! O gelo do sepulcro não pôde apagar o fogo em que os teus olhos me abrazaram. Esqueci o teu desprezo para perdoar-te. Para que havia ter mais esse flagelo na eternidade? Que destino, que felicidade a nossa, que regozijo no céu, se não houvesses ludibriado este amor! Nossas almas absorver-se-iam na essência de um anjo, enlevadas num sonho de harmonia, até despertarmos no empíreo. Assim precipitaste-me na mansão das penas e sofrimentos, onde o meu espírito se apura. O amor terreno tenho-o expiado no fogo. Vês esta senda de alvura transparente? Estava quase a tornar-se brilhante de glória! Pedi a Deus este momento tão breve para poder agora ver-te; o gozo fugitivo de contemplar-te, a esperança de te achar triste, cismando em mim com pesar e saudade, a troco de mais cem anos de novos sofrimentos! Cem anos mais, depois de te encontrar nos braços de outras descuidado, rindo desvairado numa orgia dissoluta. Oh, mas eu não sei senão perdoar-lhe.»  — E desapareceu-me, continuou, como um meteoro fugaz, quando passa nos céus, e deixa após si um rastro luminoso. Acordei.

«Em casa ouviam-se gritos, alaridos, como de um sucesso repentino e funesto. Fui lá ver. Disseram-me que Branca desaparecera. Cheguei a convencer-me da realidade do sonho, que um anjo a levara consigo. Perguntei debalde. Passou-me pela mente um pressentimento horrível. Branca costumava ir sentar-se sobre uma rocha que se debruça sobre o mar, e em cujas furnas as vagas restrugem com um estrondo surdo, como o anseio do último esforço numa luta desigual. Protegida pelo nevoeiro da madrugada, mais veloz que a ondina da mitologia eslava, a pobre fora saciar os pulmões ralados da febre lenta que a devorava. Houve quem a visse dependurada na aresta dos fraguedos (
rochedos), o véu branco que levava flutuar ao vento, como num adeus de despedida. Ela sentira nesse instante a atração do abismo, lembrou-se daquela tarde de agosto, em que eu a salvara, trazendo-a com um abraço à vida; quis morrer com a recordação mais doce que levava do mundo. Precipitou-se. E o mar murmurava sereno e manso, como a embalar-lhe o seu último sono.

«Comecei então a sentir uma paixão por ela, depois de morta; se a terra a tivesse escondido, eu a iria arrancar ao repouso sagrado da sepultura, beija-la, anima-la com o fogo do meu delírio, despedaça-la nestes braços convulsos, e cair também inanimada. Queria sentir bem junto do peito o contato gélido de um corpo que eu tantas vezes apertei, das faces que eu devorava, quando ela se dava aos caprichos da minha vertigem. Havia neste amor um pensamento de alucinado, um tanto de selvagem, de monstruoso; impelia-me uma inquietação contínua, sentia em mim como um ranger de puas (
espigões) do remorso, a voz que interroga Caim. Fugia, não queria consolações. Eu ia sentar-me também na rocha escarpada, a ver o mar, procurando a serenidade que me inspirava a contemplação do sepulcro da minha amada. Vinha visita-lo, à busca desse alívio de que fala o poeta do Oriente.

«Eram decorridos já três dias, não se vira mais o corpo de Branca; o mar queria-o para si, mas eu tinha uma vontade fervente, absoluta, o desespero de torna-la a ver linda, roxa, nua, desfigurada. Era o mais que podia sofrer. Ia a maré na vazante, no fim da tarde, as ondas gemiam brandamente no areal deserto, as virações da noite sopravam frias, úmidas das bandas do poente. Quando desci da rocha escarpada, encontrei inesperadamente o corpo de Branca estendido na areia. Era uma criança descuidada, adormecida; a onda que a tinha despido para namorar-lhe a alvura do corpo, viera deposita-la na praia. Ia a precipitar-me para ela, uni-la a mim no frenesi dessa loucura. Tive medo! Recuei sem encara-la. Temi profana-la com a vista; estava quase nua, de costas, com os olhos no céu, como pedindo à noite que viesse resguarda-la no seu manto de trevas. Quando tornei junto dela com o lençol para a envolver, senti uma ânsia de passamento, a lucidez de quem entrevê a eternidade: conheci que o cadáver de Branca se voltara de bruços, furtando à vista profanadora o verticilo pudibundo (
púdico) da flor que eu fizera pender sobre o caule e cair murcha. O inexplicável deixou-me um terror que ainda me dura...»

Não tive ânimo para lhe pedir que continuasse.
Fonte:
Disponível em Domínio Público
Teófilo Braga. Contos Phantásticos. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1894.
Português atualizado por J. Feldman

Richardson Mateus Souza Silva (Rotina )

Acordo às carreiras para ir no banheiro, rejeitado várias vezes no meio da madrugada. Entro e apoio a minha mão na porcelana branca de trás do vaso que fica do lado da descarga, pensando absolutamente em nada. Ainda com sono, o despertador do smartphone toca, insistente.

— Calma, meu amigo. Já estou desperto. Fica quieto.

Desacreditando que terei de trabalhar mais uma vez, desligo o alarme que tocou durante trinta segundos e que naquele momento, aparentavam ter mais tempo do que o combinado. Em meio aos bocejos e espreguiçadas, pego a escova de dentes dentro do armário amarelo que dependurei acima da pia.

Entusiasmado por ter escovado os dentes (que não são tão brancos assim, talvez pelo fato de ter fumado alguns palitos de cigarros do Paraguai), após tomar aquela xícara de café no copo transparente, presente de um parente que não lembro quem, exatamente dou graças à Deus, por estar vivo.

Ao sair do banheiro, olho para o roupeiro bagunçado e passo a mão na calça que usei na segunda-feira da semana passada, e, por ainda não estar suja, virou meu uniforme fiel até que não se reconheça mais a sua cor original. De igual modo, a camisa preta de mangas curtas tamanho GG, comprada no brechó da Igreja Católica por R$ 5,50, ficou tão confortável, que se eu tivesse sido o primeiro dono, ainda estaria com ela!

Flagro-me novamente procurando minhas chaves, que deveriam ter sido colocadas no gancho improvisado, gancho este parafusado em uma das prateleiras que ficam debaixo do painel da minha tevê de 42 polegadas. Por sorte não é Smart. Por igual ventura, bato no bolso direito do jeans azul claro, e encontro as preciosas.

Ato contínuo, me dirijo até a cozinha da quitinete alugada em que vivo, incrustada ao lado do centro comercial da Cidade onde moro. Por acaso não é a cidade, tampouco o bairro onde nasci.  Vim do interior de Minas Gerais, ou mais precisamente de Ipatinga. Pego o abridor de “fechaduras particular” e escancaro a porta do refeitório onde arrisco em comer alguns dos pratos que fiz no dia de ontem.

Saindo para o corredor do prédio, fecho a porteira, e me encaminho às escadas. Estou no primeiro andar em cima do térreo. Quando finalmente me encontro no portão que acessa a rua, lembro que esqueci do celular. Por mais trincado que esteja, ainda é útil. Dou meia volta e subo as escadas de volta a meu esconderijo. Espero que os degraus não enguicem. Finalmente agarro o celular com unhas e dedos. Mais dedos que unhas.  

Ao entrar na quitinete (a dita é minha até que o contrato acabe), passo perto da geladeira e assomo o portal do quarto. Quando pego o telefone, desbloqueio e percebo que hoje é domingo, e eu não tenho que ir para o trabalho.  Assustado com meu rotineiro costume, atiro-me na cama e ela me ajuda a voltar bem depressinha para os aconchegos de um novo dormir.

Fonte:
Texto enviado por Aparecido Raimundo de Souza

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 32: Tela Nua

 

Marlene Campos Vieira (O tapete amarelo)

Chego na janela e vejo o tapete amarelo.Fico ali parada, viajando no tempo. Meus olhos fixos no tapete de flores amarelas que a árvore da casa ao lado floriu e se cobriu, despejando pétalas na frente da minha janela.

Por certo é um presente, uma declaração de amor da natureza cobrindo exatamente o meu lugar, o nosso lugar: o universo.

Estar ali na janela fazendo minhas viagens interiores, correndo pelos jardins suspensos da Babilônia, deitada no tapete amarelo é tudo que faço ao acordar. Muito colorido sem nenhum borrão, arte do artista divino de imensa imaginação.

Logo bem cedo pássaros cantam pulando de galho em galho celebrando um novo dia. As abelhas trabalham incansáveis, são flores incontáveis para extrair o mel. Essa é a essência da natureza: fechar os ciclos, encerrar os capítulos, esquecer-se do inverno e viver a ardente primavera.

Assim vou cultivando meu interior, namorando o tapete amarelo, agradecendo ao artista maior que com esmero o produziu.

Parece tão inacreditável que o vizinho plantou uma árvore e ela fez um tapete para mim. Que majestoso! Todos que passam por ali também podem pensar assim. Vou viver o amarelo, é a alegria da cor, fotografar em minhas pupilas esse acontecimento inesquecível. Fazer uma gravação no CD da minha memória e passá-lo sempre, ouvindo o cantar alegre dos pássaros na árvore amarela.

Penso no hoje, no agora, na minha alma colorida de um amarelo vibrante, o amanhã fica a cargo do artista e seu pincel mágico. Viver é se refazer sem medo de ser feliz, então o inesperado acontece e aparece um tapete amarelo na sua janela.

A natureza convida: fechar os ciclos, abrir-se ao novo, voar no tapete amarelo…
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Educadora, escritora e membro titular da cadeira 29 da Academia de Letras de Teófilo Otoni.
Fonte:
Academia de Letras de Teófilo Otoni. A essência da vida. in Revista Café com Letras. ano 10. n. 10. Teófilo Otoni/MG: ALTO, dez. 2012

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXXII


" Tudo Esqueço... "

Tudo posso esquecer em minha vida
inquieta e livre como uma enxurrada:
- a ilusão, num segundo, mais querida...
- a mulher, num segundo, mais amada...

a visão de algum trecho azul da estrada
entre ternos carinhos percorrida;
- uma história que um dia interrompida
nunca mais afinal foi terminada!

Os desejos... os sonhos... os amores...
que julgo eternos, e que por enquanto
despetalam-se e morrem como flores...

Esqueço tudo! O que passou, morreu!
Só não consigo me esquecer no entanto
da primeira mulher que me esqueceu…
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" Último Vestígio "

Tu deves te lembrar: aquela casa antiga
entre o verde bambual e a frondosa mangueira,
- a varanda, a esconder-se sob a trepadeira,
e o riacho a marulhar sua velha cantiga...

As flores... o jardim... a estrada, uma alva esteira
onde nós a sonhar andamos sem fadiga
olhando para o céu - tudo isto, minha amiga,
mudou... A nossa vida é mesmo passageira...

As paisagens de outrora, estranhos transformaram:
- o jardim... o bambual... a estrada, e até nem sei
se as águas do regato os anos não pararam...

Uma coisa, porém, existe, eu vi depois:
- é aquele coração com os nomes que gravei
no tronco da mangueira a relembrar nós dois!…
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"Uma Palavra, Um Gesto..."

Não quiseste, - ou quem sabe? ... vacilaste na hora
em que esperei de ti uma palavra, um gesto...
- bastaria um olhar quando me fui embora,
um olhar... e eu feliz entenderia o resto...

Mas, não. Nem um olhar, num um vago protesto,
em um tremor na voz de quem sofre e não chora...
Ah! teria bastado uma palavra, um gesto,
para tudo, afinal, ser diferente agora...

Parti! levou-me a vida, ao léu, e redemoinho...
Hoje, volto, - e tu me olhas a falar de amor
e me entregas as mãos num gesto de carinho...

E evito teu olhar... E não me manifesto...
- É que, já não te posso dar, seja o que for,
nem mesmo uma palavra de esperança, um gesto…
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" Uma Resposta "

Não sabes a alegria em que fiquei
ao ler o que escreveste - o teu cartão
veio um pouco aquecer meu coração,
que de há muito na sombra sepultei...

A tristeza tornou-se-me uma lei
neste estranho pais da solidão...
- já nem sei como vais, nem como vão
aqueles que há mil anos já deixei...

Não penses mais em mim... Sou como um monge,
- não voltarei jamais para a cidade
e o tempo em que me falas vai bem longe...

Fizeste bem em não me acompanhar...
Tinhas toda razão... Felicidade
só eu mesmo encontrei neste lugar !…
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" Vaidade "

Tua vaidade é como um deus antigo
exige sacrifícios aos seus pés...
Olhar-te, é desafiar algum perigo,
amar-te, é procurar algum revés...

Olhei-te, e desde então teus passos sigo...
Amei-te, e mesmo assim. não sei quem és...
Meu amor, pobre amor, quase o maldigo,
talvez seja outra vitima a teus pés...

Amores, esperanças e desejos
ardem nos castiçais dessa vaidade
ao incenso sensual que há nos teus beijos.. .

Eis que te trago aqui meu coração.
Já de nada me serve, se em verdade
converteu-se a tão fútil religião!
Fonte:
JG de Araújo Jorge. Meus sonetos de amor. RJ: Ed. do Autor, 1961.

AJ Fontes (A primeira ficou)

A lâmpada na linha da cumeeira clareia as meias paredes que separam do dormitório e da copa, o quarto onde apetrechos de caminhadas e acampamentos cabem numa caixa organizadora, livros, dicionários, agendas antigas em outra e sabão em pó, desinfetante, água sanitária, pasta dental e papel higiênico numa terceira. Juntei a mesa plástica desmontada, o saco de ração, sapatos, retirei roupas penduradas na corda atravessada.

O chão está limpo e coberto por panos, faz dois dias.

Passava das oito da noite quando trouxe Amora, a negra e grande cadela. Desde cedo da tarde se mostrava inquieta na área de serviço. Silenciosa, procurava meu olhar, caminhava pelos cantos, raspava o chão e a parede com a pata dianteira.

Instalei uma espreguiçadeira e, sentado, assisto aos movimentos repetidos: vai e vem, rói um canto da parede, deita e dá um grande suspiro e perde o olhar no cansaço. Não adiantou os cuidados em evitar a prenhez. Um descuido e não a encontrei no quintal. Os dias seguiram, o apetite aumentou; buscava lixo e voltou, após nova escapada, com um bafo terrível de cocô. Saltou aos meus olhos o cansaço e o corpo redondo.

O imponderável presenteia o incauto e o cuidadoso. O pacote colorido, laçarote brilhante traz surpresas variáveis no valor, afinal são diferentes os olhos e corações que recebem.

A situação inusitada me excitou, confesso. O desconhecimento do pai não foi problema. Preocupei-me com a saúde dela. Cuido de Amora faz poucos meses. A suposta idade acima de cinco anos e várias barrigas, além do coração aumentado, segundo o veterinário, trouxeram dúvidas quanto a capacidade do corpo suportar mais essa.

Cochilos sucedem às observações da cena repetida.

Lembrei das horas angustiantes antes do nascimento do primeiro filho, da correria em busca do anestesista durante o parto do segundo. Será difícil carregar a aquele ser com seus cinquenta quilos até o carro, dirigir até a cidade mais próxima, cerca de vinte e cinco quilômetro do sítio onde estamos.

Ela aparenta estar bem. Sofre as dores, mas o comportamento é de uma conhecedora do assunto. Cabe aguardar.

Impressiona-me a força da mulher. Nós homens não temos como avaliar, embora se diga: expelir uma pedra dos rins pela uretra se aproxima ao sentimento físico, mas é físico. Não conseguimos ao menos imaginar outros sentimentos. Sentir, em um instante, algo novo acontecendo dentro do corpo e acompanhar as mudanças de ambos até que esse novo se projeta aos nossos olhos, iniciando um caminho só dele, mas com marcas, visíveis ou não, dessa união ímpar.

O canto dos pássaros anuncia a chegada do sol. Abro a janela e recebo os raios, frios ainda. Cuscuz, café, ovos, depois de um suco verde, revigoram. A amiga querida descansar, diz o ronco peculiar. Os afazeres me dividem entre ficar ou sair, mas o aparente estado de tranquilidade me encoraja. Carrego o medo no bolso da algibeira, de olho para que não se arvore em crescer, rasgar as calças e me arrastar. Otimista, repito: está tudo bem!

Desliguei o carro e procuro algum som vindo da casa... nada ouço. Sem estar certo se é bom ou não desço levando compras. Largo tudo no balcão da área de serviço, e atendo o celular. Uma chamada de vídeo da namorada, buscando notícias da parturiente. Caminho para o quarto. Mostro Amora, surge um pacote translúcido, brilhoso, molhado. Silenciosa a mãe trata de remover a placenta, limpar os vestígios e massagear vigorosamente. O rebento chora.

Nasceu o primeiro!

Uma hora depois chega o segundo e nem bem se recompunha, o terceiro; tempo suficiente para os trabalhos de recebimento, um breve descanso enquanto tateiam e reconhecem o corpo e sons a partir desse novo ângulo e encontram as tetas. A vida se inicia aqui fora.

Não sei qual foi mais difícil de deixar: o ventre de minha mãe ou a casa de meus pais na juventude. Do primeiro sei o que contaram, mas busquei sair de casa desde cedo. Nesses dias o conforto, a segurança da família e a vontade de realizar as proezas imaginadas, eram os dois lados de uma gangorra.

Passa do meio-dia e perco mais uma vez a contagem. As cores variam do creme ao negrume da mãe. Um grito fino e apanho o desgarrado ou desgarrada, não sei. Cheguei a perceber um “o que você pensa que está fazendo?” no olhar e devolvi ao mesmo lugar. Seguiu-se um muxoxo e as lambidas na cria.

À tardinha, deitada, arfando, apenas observa o movimento caótico dos sete ou oito ou nove em busca de uma teta. Ajudei a limpar, juntei, com a permissão devida, todos e todas – aproveitei e fiz uma contagem que defini confiável de nove nascidos – passei panos molhados, troquei por outros secos.

Nos dias seguintes os olhos se abrem. Será que pensam eu ser o pai? Afinal me viram depois da mãe. Limpo a sujeira após as mamadas, correm de mim a esconder sob a casinha de madeira no manejo, fitaram meu rosto, as fêmeas e o macho, sentados no momento que acertava a adoção deles. Confesso que acelerei o processo ou ficaria com todos.

Passados dois meses, resta um cocozinho aqui, um xixizinho ali; sobram latidos, grunhidos, garrafas plásticas amassadas; fujo das mordidas nos calcanhares e Amora brinca; lagartas e o gato correm do assédio.

Paçoca, a primeira, ficou.
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AJ Fontes (Antonio José de Oliveira Fontes) - Participou de coletâneas, publicou livro de contos Mantas e Lençóis.

Fonte:
Flávia Suassuna (coord). Rede solidária: coletânea de textos. 2021.
ebook enviado por Therezinha D. Brisolla

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capítulo 2: Noite de Super Lua

A dez passos do portão de saída da fazenda, ficava o "Peleando contra o Trago”, armazém antigo do seu Feliciano, um senhor gordo, de idade avançada e bigode largo. O armazém era ponto de encontro dos homens em suas horas livres.

Ali, eles se reuniam para acender o fogo de chão, tomar mate, e preparar o velho e bom churrasco. Em suas rodas de conversa, assim como sempre fizeram os pescadores à beira do cais, contavam causos. Nem tanto sobre o mar, mas, principalmente, sobre as famosas lendas do Rio Grande, que para muitos, não eram lendas. Alguns nem conheciam o significado desta palavra: LENDA. Os moradores da região costumavam crer em seres das culturas folclóricas. Talvez, tais seres não sejam exatamente como dizem, mas que existem, existem, sim! Afirmava o povo.

A noite estava iluminada por uma Super Lua, e os viventes, inspirados, reunidos ao redor do balcão do armazém entraram noite adentro contando as tais estórias ou histórias como muitos acreditavam ser.

Todos sabem que esses contos são cheios de personagens interessantes, e o protagonista da noite foi o Pedro, pois em noite de lua cheia ele nunca se juntava aos amigos.

Seu Feliciano, Juca, Simão e Juliano sempre notavam a ausência dele quando as noites se faziam claras.

- Pedro não veio hoje. - disse o dono do bar saindo detrás do balcão, puxando conversa.

- E o motivo a gente já sabe. – disse Juca, enquanto saboreava uma tira de carne assada.

- Será que ele anda adoentado? - pergunta Arlindo, um velho agregado da fazenda Boitatá, terras vizinhas à "Prenda Bonita”.

- Mas o amigo Arlindo não sabe? - perguntou Juca.

Feliciano toma a frente da prosa e começa a contar as razões que levavam Pedro a sumir em noites de lua cheia.

- Pedro vem de uma família grande. Seus pais, que trabalhavam como lavradores aqui na redondeza, tiveram sete filhas mulheres. No oitavo e último parto, nasceu ele: o bendito fruto entre as mulheres...

- E o que tem demais nisso? - perguntou Arlindo.
 
- Quando um casal tem sete filhas, o oitavo,  se for homem, depois de adulto, vira lobisomem. Ah, e o mesmo vale para as mulheres. Eu acho...

- Verdade. - afirma Juca - Aqui ninguém duvida disso.

- Uns dizem terem visto o boitatá. Outros, contam histórias sobre lobisomem. Mas eu não acredito nessas coisas. - retruca Arlindo.

- Pois devia! - continua seu Feliciano - Há muitos anos Pedro vem se embrenhando por esses matos em noite de lua grande. E, depois, adivinha? Vira bicho e sai à caça. À caça de humanos. Dizem que em seus trajetos, ele vai parando de casa em casa para ouvir por detrás das janelas dos quartos, os gemidos dos casais se amando.

“Lobisomem é bicho solitário e por isso inveja os homens que podem ter esposas. Numa dessas andanças, mal sabia ele que por trás da janela de um dos quartos pelos quais passava e nada escutava, exceto algumas orações vez e outra, vivia Rosinha, admiradora secreta do Pedro lobisomem. Mesmo correndo riscos, certa noite, depois de ouvir incessantes uivos, Rosinha, uma flor de morena, resolve investigar o caso e acaba por descobrir o segredo de Pedro. Pelas frestas da janela assistiu a sua transformação. Encantada, certa madrugada esperou seus pais pegarem no sono, pulou a janela do quarto e, vestida com uma camisola vermelha e uma flor no cabelo, partiu seguindo os rastros do seu lobo uivante.

“Ao se deparar com o monstro, sorriu, despiu-se e, sem temor algum se entregou à fera.

“Os dois viveram um duradouro caso de amor. Mas o tempo foi passando, as novidades daquela experiência foram se esfriando. E Rosinha, preocupada com o seu futuro, achou por bem arranjar um noivo de verdade. Alguém que pudesse lhe oferecer um lar e filhos. O lobisomem Pedro descobriu a traição e armou uma emboscada para o casal enquanto passeavam numa noite de verão. Resultado: a fera matou os dois a golpes de machado.”

- Rosinha e o noivo foram mortos por ladrões! - exclamou Arlindo.

- Os pais da moça inventaram essa história de ladrões assassinos a fim de proteger a reputação da filha. - afirma seu Feliciano.

- Quem pode afirmar que essa história é verdadeira? - indaga Arlindo.

- A vó gorda.

- A benzedeira da região?

- Sim. - afirma o dono do estabelecimento.

O rapaz, pensativo, encerra as perguntas.  

- Pobre da Rosinha! - falou Juca em tom de lamentação - Posso imaginar a triste cena...  

Simão e Juliano não acreditavam na veracidade do crime, mas não opinaram. Preferiram ficar só a escutar o caso contado e recontado pelo dono do bar que, ao repetir o conto, sempre acrescentava algo a mais à história.

Fantasia ou realidade, o caso da moça com o lobisomem invadiu a madrugada. Os demais andantes que foram chegando para saborear a carne, o mate e a boa cachaça da região, também entraram na discussão sobre as verdades e mentiras do caso ou causo.

Só que naquela noite de lua cheia, a única verdade consumada é que Pedro, frequentador assíduo do churrasco que os peões faziam todas as sextas-feiras à noite no armazém, não apareceu.
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continua…
Fonte:
Texto enviado pela autora.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Vanda Fagundes Queiroz (Trovando) “09”

 

Irmãos Grimm (A palha, a brasa e o feijão)


Numa aldeia vivia uma velha, muito pobre, que um dia conseguiu um pouco de feijão branco e resolveu cozinhá-lo. Fez, pois, um fogo e, para que ardesse mais depressa, ela o acendeu com um punhado de palha. Ao derramar o feijão na panela, não percebeu que um dos grãos caiu e foi parar no assoalho, ao lado de uma palha. Pouco depois, uma brasa saltou, também, do fogão, até o lugar onde estavam os outros dois. A palha, então, começou a conversar:

- Amigos, de onde vem vocês?

E a brasa respondeu:

- Por sorte escapei do fogo e, se não tivesse sido tão arrojada, minha morte era certa; teria queimado até me tornar cinza.

Disse o feijão:

- Também eu consegui salvar a pele. Se a velha me metesse na panela, eu seria transformado em papa, como os meus companheiros, sem dó nem piedade.

- E por acaso, o meu destino teria sido melhor? - disse então a palha. - A velha jogou todas as minhas irmãs ao fogo, pegou sessenta de uma vez só e acabou com elas. Por sorte lhe escorreguei de entre os dedos.

- O que faremos agora? - indagou a brasa.

- Sou de parecer - respondeu o feijão - que, visto termos escapado à morte por felicidade, continuaremos os três juntos, como bons amigos e, para evitar que nos ocorra um novo desastre, procuremos outras terras.

A proposta agradou aos demais e eles se puseram a caminho. Pouco depois chegaram a um pequeno arroio. Mas não havia ponte ou prancha por ali e ficaram sem saber como passar para o outro lado. Nisto, a palha teve uma ideia e disse:

- Vou me deitar, atravessada sobre a água e, desse jeito, formo uma ponte por onde vocês poderão passar.

Estendeu-se, então, de uma margem do arroio à outra e logo a brasa, que era de natureza fogosa, se aventurou a caminhar sobre a ponte. Mas, quando chegou à metade do caminho e ouviu o barulho das águas a seus pés, parou e não teve coragem de seguir adiante.

A palha, porém, começou a arder, partiu-se em dois pedaços e caiu no arroio, arrastando consigo a brasa. Esta, ao tocar a água, expirou com um chiado. O feijão, por sua vez, que ficara prudente na margem, achou graça do acontecido e começou a rir que não podia mais parar. Tanto riu, que acabou arrebentando.

Também ele findado ali sua existência, se não fosse um alfaiate que ia passando e que se deteve à margem do arroio para descansar. O homem, que tinha bom coração, pegou agulha e linha e costurou o rasgo. O feijão agradeceu-lhe muito, mas como o alfaiate empregara linha preta, daquele dia em diante todos os feijões passaram a apresentar no corpo uma costura preta.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819.

Agenor Filho e Rita Mourão (Lançamento de Livro em 3 de agosto)

03 de Agosto  19hs   Em Ribeirão Preto/SP

Convite enviado por Rita Mourão


 

Luiz Damo (Trovas do Sul) XLV


A flor que à vida desperta
espalha perfume e cor,
se transforma em porta aberta
pra acolher o beija-flor.
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A vida pode não ser
um berço de luz e cores,
mas pra vê-la florescer
não basta só plantar flores...
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A vingança é como a cárie
por dentro ataca e destrói,
desemboca na barbárie,
quando não mata, corrói.
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Chorava triste o doente
sem dizer o que sentia,
talvez dor que ninguém sente,
no entanto, em pranto doía.
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Contaminamos os ares
matando a respiração,
até nos lagos e mares
respiramos poluição.
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Deus, ao construir a terra,
fez todos os vegetais,
plantas, flores que ela encerra,
depois fez os animais.
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Esperança e caridade,
com a fé são primordiais,
completam na humanidade
as virtudes teologais.
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Frente à dor não desanime
lute com dobrado ardor,
não tem mal que não termine,
nem luta sem vencedor.
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Independente da fé
que alguém venha a defender,
pode em paz viver e até
na vida a luz acender.
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Nada tem que alguém não possa
nos seus gestos melhorar,
a mudança, quando nossa,
também faz outros mudar.
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No momento da partida
muitas lagrimas rolaram,
num sinal de despedida
que em saudade resultaram.
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No pedestal do passado
repousam felicidades,
fruto do amor condensado
mas no topo, só saudades!
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Nosso apelo Deus entende
seja à paz ou sofrimento,
se nem sempre nos atende
nos falta o merecimento,
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Nossas mãos são responsáveis
pela construção da paz,
dentre as centenas de amáveis
tem uma que o medo traz.
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Num campo verde, gramado,
frutos à vista não tem,
serve de sustento ao gado
ou repouso de ninguém.
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Nunca alimente um dilema
nem lhe dê sustentação,
mesmo num grande problema
bem maior é a solução.
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Nunca nos falte o desvelo
de as arestas lapidar,
deixando na vida o selo
pra nos identificar.
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O segredo está no dom
de saber equilibrar,
fazer tudo o que for bom
sem, no entanto, exagerar.
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Pela paz que o mundo implora
também devemos lutar,
pode ser não seja agora
mas um dia vai chegar.
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Quando a vocação se torna
um descomunal enigma,
é porque não damos forma
ao viável paradigma.
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Quem menospreza o centavo
por julgá-lo sem valor,
poderá acabar escravo
do abandono, seu senhor.
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Se a fala gera prazer
causa dor no encabulado,
não tendo nada a dizer
melhor é ficar calado.
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Se por vezes nos parece
a vida querer chorar,
pode, o Sol que nos aquece
estar quase a se apagar.
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Sobre os campos dos talentos
plantamos da paz seus grãos,
pra tornarem-se alimentos
na mesa dos nossos dons.
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Tendo algo que nos arrasa
seja pedra ou seja espinho,
pra chegar depressa em casa
vamos cortando o caminho.
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Todo excesso praticado
se torna um terrível mal
e a falta tem demonstrado
ser pior, senão igual.
= = = = = = = = =
Fonte:
Enviado pelo autor.
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

Aparecido Raimundo de Souza (Subornada)

A ROTINA É SEMPRE A MESMA. Você conhece uma garota de fechar o comércio na rua, e, logo em seguida, papo vai, papo vem, faz um convite para um barzinho. O ponto de encontro é logo na esquina. Entram. Sentam. Consomem uma dúzia de cervejas. Comem umas porçõezinhas de batatas –, isso quando ela não cisma de querer um pratão de filé no palito acompanhado de um refrigerante estupidamente gelado. Se você recusa, é tachado, de supetão, de pão duro, mão fechada e miserável. Depois de uma longa conversa fiada (ela já calibrada pelos vapores do álcool) se sai vencedor fazendo direitinho a cabeça zonza da princesa.

Na sequência, você manda o convite. Ela, atordoada, aceita. Em contínuo, você conduz a beldade para conhecer o seu famoso apartamento. Ela sonha coisa mais sutil, tipo curtir um motel de primeira, desses caros de beira de estrada, com cama redonda, banheira de hidromassagem, sauna à vapor, TV a cabo, frigobar, teto solar para ver estrelas coladinho um no outro. Todavia, acaba se conformando diante da evidência de que não está vivendo um conto de fadas nem é uma Cinderela que perdeu um de seus sapatinhos de vidro e um príncipe encantado aparecerá, de repente, montado num pangaré para devolvê-lo.

Fora do aconchego das mesas, entra em cena outra historinha de natureza cômica. A do carro. Você sai com ela, a galera, em peso, juntada em deslumbres. É medido cada centímetro do corpo da figura, dos pés à cabeça. Sem se importar com essa bobeira, igual um Zé Mané, você passa de cabeça erguida, nariz empinado, sem dar confiança, arrastando pelo braço um violão de marca, ou melhor, um baita de um Boeing ultramoderno. Você nota, no fio da nuca, que todos sentem uma pontinha de inveja e ciúme. A maioria baba e fica de queixo caído, principalmente os coitados que se fazem acompanhar de uma chusma de tribufus imponentes.

Umas malvestidas que não deixam, nem por um momento (a feia mania, dos quinze minutos), ou seja, de levantarem os traseiros das cadeiras para irem até a toalete com a balela de retocarem as maquiagens. Na cabeça da desconhecida que você fisgou, passa um filme alinhado, sonante e superbonito. Ela supõe que vai se acomodar numa Mercedes, ou numa Lamborghini igual ao do Roberto Carlos. E você, chato de galochas, pobretão, continua em frente, caminhando entre os últimos tipos estacionados ao longo da alameda, um molho de chaves balançando na mão direita.

Entrementes, seu corpo esquelético estanca. Você a surpreende aplicando um beijo de língua na boca. Enlouquecida, doida para se soltar, quando ela pensa que sairá um segundo, você disfarça e marcha adiante:

“— Com certeza – deduz a gata na sua loira ignorância – esse infeliz vai direto para o ponto de ônibus –, ou então, deverá chamar um Uber.”

O que a deixa deveras intrigada é um pormenor simples, quase imperceptível. Quando vocês saíram para a rua, ela percebeu (e você também), havia um táxi parado em frente. Decididamente, seria o “busu” que os levaria até o apê.

Pensando nessa ideia, uma vez mais ela se encolhe em seu descontentamento e se conforma com a tristeza lúgubre da situação. Vem, a galope, se aproximando, uma nova decepção. Uma espécie de tortura repulsiva que a contraria mais um pouco aborrecendo profundamente o seu coração. Você, do nada, estanca os passos ao lado (não só se inabilita seguir adiante, abre correndo a porta, como se fugisse de alguém) de um fusca – um fusquinha branco, inteiraço, mas um fusca. Um automóvel largado no distante, onde Judas perdeu as botas. Ficaria importuno e maçante, você sair de um lugar tão bem frequentado com uma deusa à tira colo e se aboletar dentro de um fusca:

“— Dos males, o pior” – tenta se confortar a si mesma a inimitável dondoca –, enquanto opta por abrir a janela do carona. Fica na tentativa somente. O mecanismo que abaixa e suspende o vidro, faz tempo, emperrou e você não teve dinheiro para mandar consertar: “— No apartamento deve ser um pouco melhor” – conclui, a vestal, esperançosa –, olhando para os lados, como uma criança enlouquecida diante de um brinquedo quebrado. Ledo engano! No que você rotulou de apê, quase a deidade tem um piripaque junto com um ataque de histeria. Pensa em gritar. Sente uma necessidade quase sexual de berrar, de vociferar à plenos pulmões, mas acha que, se o fizer, seu companheiro que conhecera a menos de três horas, poderá perder a linha e lhe aplicar uns belos tabefes em meio às fuças.  

Não seria para menos, se tivesse um faniquito. Na sala, logo ao colocar os pés, se depara com um amontoado de roupas empilhadas sobre o assento da única peça existente: um sofá de três lugares. Pelo chão, sapatos, meias, lenços, cuecas e camisas. Dá uma geral. A cozinha não fica divorciada do barbarismo horripilante. Captura pratos sujos ocupando toda a extensão da pia inox, juntamente com panelas e restos de comidas. Baratas e moscas, aqui e ali, fazem à festa. O banheiro causa nojo. Provoca asco e repugnância. O vaso sanitário totalmente entupido. Para variar, a cordinha da água rebentada e a tampa não vedando a fedentina que exala de dentro dele.

Antes de penetrar na peça, para um xixi básico, sente náuseas. Ensaia vomitar. Mas vomitar onde? Se levantasse o cobridor da latrina, aí é que desmaiaria mesmo, esborrachando o corpo no chão. Resta o quarto. Segue até o umbral. Mais roupas jogadas à esmo. Na única janela, uma toalha azul manchada de água sanitária faz a vez da cortina. Num canto, encostado em um aparelho de tevê dessas do “tempo do ronca”, uma esteira. É nela que o sujeito dorme e se cobre com um lençol. Credo em Cruz! Um funambulesco cheio de buracos medonhos. Dá um passo atrás. Põem as mãos na cabeça e se perde em pensamentos distantes: “— Meu Deus –, sussurra com seus botões. “– O que é que vim fazer neste muquifo”?

E conclui pesarosa: “— Parece que um forte vendaval passou aqui...”

Nesse interregno de tempo você despista. Vai até a cozinha. Abre a geladeira. Passa os cinco dedos numas garrafas de cerveja. Lava dois copos:

— Vem, gatinha... está no ponto...

A infeliz aquiesce, sem emitir uma palavra. Brindam fazendo tim-tim. Você se aproxima do sofá, joga tudo o que está em cima dele para um canto e indica um lugar vago. Ela se acomoda meio temerosa. Depois de algum tempo, a apetitosa se solta, apesar de segurar a urina.  Sorve a bebida, e o faz, lentamente, sem, contudo, desviar os olhos do teto. É nessa hora que tudo cai, desmorona, vem abaixo.  E VOCÊ, BÊBADO, NÃO ACORDA.       

Fonte:
Texto enviado pelo autor

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Isabel Furini (Poema 47): Flores

Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook.  

Elisa Augusta de Andrade Farina (Essência da vida: voltar-se para o outro)

A vida é como um romance. Está cheia de suspense. Você não faz ideia do que vai acontecer até virar a página. Cada dia é uma página diferente e pode estar repleta de surpresas. Nunca se vai saber o que virá a seguir até que a veja. Cada manhã é como uma sequência de uma virada da página seguinte de um romance. É emocionante sentir o prazer da página que você vai escrever a sua história. Pode acontecer alguma coisa maravilhosa ou não, vai depender do seu posicionamento frente aos obstáculos que decerto terão que ser enfrentados.

Somos seres incompletos, estamos em constante evolução. Nascemos indivíduos, mas a meta é alcançarmos a condição de pessoas. Nessa travessia o aperfeiçoamento sustentará os pilares que estabelecerão o conceito de pessoa a ser formada. Pois ser pessoa, nada mais é do que “dispor-se de si e dispor-se aos outros”.

Ao nos dispormos aos outros, fazemos uma interlocução entre o “eu” que me identifica e o “outro” para quem eu me volto. Ser sujeito refere-se à capacidade que o homem tem como ser humano de ser singular, pessoal, particular, reservado. Junta-se aos outros para compor o todo, não deixando de ser o que é.

Ser o que somos demanda cuidado, já que não é possível ser somente na solidão, necessitamos do encontro, pois a vida é feita desses embates. Quando as pessoas possibilitam voltar-se para o outro, concretizam o ato de suas singularidades, permitindo que as mesmas se pluralizem, misturem e acima de tudo advenham daí as influências que demarcarão suas existências.

A dinâmica é estupenda, as nossas melhores amizades foram estabelecidas pela casualidade de encontros que se perpetuaram e nem por isso a nossa subjetividade correu o risco de ser diluída em função do outro.

O desafio é constante, a iminência do risco é real. Os inimigos também chegam pela força desses encontros, cabendo a nós perceber a veracidade ou não dessa nova abertura que se nos apresentam como nova forma de contato ou sua execração definitiva.

A facilidade de se perder a centralidade do nosso “eu” na pluralidade do mundo e na entrega do outro, é um risco que corremos a todo momento, pois nos falta a convicção que nos permitirá fazer essa análise, ou porque estamos nos firmando intuitivamente ou por conta de uma racionalidade exacerbada que tolda qualquer possibilidade que venha surgir.

Cabe a nós acreditarmos no valor da nossa potencialidade de desconsiderar pessoas que nos esmagam, que nos viciam, dos que pensam por nós, que nos roubam a nossa autonomia, fazendo-nos prisioneiros de nós mesmos.

Nós escrevemos a nossa história da melhor forma possível, oportunizar a todos, fazer parte ou não da mesma, vai depender de como estamos dispostos a permitir que invadam a nossa privacidade, deixando à deriva os nossos mais íntimos sentimentos.

Temos que ter a certeza de que nenhuma ansiedade ou sentimento menor vai prevalecer nesse compartilhamento de ideias ou ideais que estamos pontuando, antes de tudo, o que importa é a nossa integridade, é a nossa busca de bem estar, é o voltar constante do “eu” para o “outro”, perpassando todos os valores capazes de nos tornar pessoas melhores a cada virada de página do livro da vida. Só assim, alguma coisa maravilhosa pode acontecer em cada manhã da nossa existência.
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Graduada em Filosofa, Professora Universitária, escritora e Vice-presidente da Academia de Letras de Teóflo Otoni, titular da cadeira 06.

Fonte:
Academia de Letras de Teófilo Otoni. A essência da vida. in Revista Café com Letras. ano 10. n. 10. Teófilo Otoni/MG: ALTO, dez. 2012

Caldeirão Poético LXIV


Flamínio Caldas
Campos dos Goytacazes/RJ, 1886 – ????

CANÇÃO DA AGONIA

Quando o sangue parar em minhas veias
e cair sobre mim o véu da morte,
tu, que quebraste todas as cadeias
por nosso amor, sê corajosa e forte!

Possam meus olhos, no final transporte,
Ver-te os olhos enxutos. Rindo, creias,
eu cumprirei contente a minha sorte,
aliviado das lágrimas alheias...

Na hora extrema, não quero ver tristeza...
Fale a voz da alegria em cada canto,
nade na luz do sol a natureza!

Que venha, então, a deusa amortecida!...
Mas não chores, que foi todo de pranto
o caminho que fiz por esta vida!
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Hecilda Clark
Porto Alegre/RS, 1897 –  1990, Rio de Janeiro/RJ

CORAÇÃO


Não tenho culpa deste amor fremente
em seu ritmo ardoroso, acelerado...
Tudo em redor de mim, convulsionado,
e eu viva e amando o amor, tão loucamente!

Quando assomaste sonhadoramente,
o coração, que fora imunizado
contra todo o impossível; rebelado,
se apaixonou por ti, como um demente!

E nada o demoveu se, nem cansaço
sentiu, nesse correr vertiginoso
que nos conduz à morte a cada passo...

Vivo de amar-te, alucinadamente,
aos apelos do teu amor grandioso...
— Coração de Poeta é impenitente...
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Hermeto Lima
Belém/PA, 1875 – 1947, Rio de Janeiro/RJ

LEILÃO


—"Ponho em leilão meu coração, senhores!
Quem dá mais? Quem dá mais?... Examinai-o:
ele está pleno de ilusões de Maio,
cobre-lhe a vida um estendal de flores.

Vede-o bem, fibra a fibra, perscrutai-o!
Nunca sentiu as truculentas dores,
pois dos ódios do mundo e dos amores
jamais na vida perpassou-lhe o raio.

Tem fé, tem crenças, tem bondade extrema...
Quem dá mais? Quem dá mais?... Vale um poema
a sua louca e nobre fantasia..."

— "Dou um beijo por ele". —"Feito o preço..."
E à mais formosa dama que eu conheço
assim vendi meu coração um dia.
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Jacinto de Campos
Canavieiras/BA, 1900 – ????, Rio de Janeiro/RJ

AS DUAS PALMEIRAS

Quando passo, buscando a humana lida,
a alma repleta de ilusões tão várias,
junto à velha choupana carcomida,
vejo duas palmeiras solitárias...

Uma a reverdecer... a outra caída,
num desmancho de palmas funerárias...
E, ao som da harpa do vento, a que tem vida,
saudosa plange salmodias e árias...

Ó tu, que me olvidaste no caminho,
meu coração deixando como um ninho
vazio e triste ao vento balançando,

a saudade me diz, como em segredo,
que és a palmeira que morreu bem cedo
e eu sou aquela que ficou chorando...
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Jacy Pacheco
Duas Barras/RJ, 1910 – 1989

GRATIDÃO

Eu te agradeço — e sem constrangimento—  
o bem que foste para mim: poesia,
rumor festivo em meu isolamento,
bravura ao coração que sucumbia.

Com a calma com que vejo, ao fim do dia,
o sol agonizar num céu sangrento,
também o teu silêncio eu pressentia:
eu esperava o teu esquecimento.

Um grande bem não dura a vida inteira,
hoje, voltando à antiga nostalgia,
desfeito o sonho da alma cancioneira,

posso te agradecer a caridade:
com as esmolas de amor que eu recebia
vivi momentos de felicidade.
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João Rangel Coelho
Juiz de Fora/MG, 1897 – 1975, Rio de Janeiro/RJ

MÃOS


As tuas longas mãos alvinitentes,
despetalando rosas ao luar,
são brancas, "como dois lírios doentes"
no lago emocional do meu olhar.

Meu triste amor!... Nas horas mais pungentes
da minha vida boêmia e singular,
as tuas mãos de seda, transparentes,
teceram meu destino, a acarinhar.

Quando partiste, as tuas mãos esguias,
num derradeiro gesto de agonias,
tremularam de manso aos olhos meus

e, com saudade imensa e dolorida,
deixaram para sempre a minha vida
na balada tristíssima do adeus.

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capítulo 1

Apresentação da obra


Isadora de Pampa e Bahia, é um romance que dei início entre 2000 e 2001, quando recém, aos poucos, descobria que havia nascido para escrever.

A vontade em compor uma bela história era grande, mas a experiência, quase nula. Por esta razão, fui desenvolvendo os capítulos como pude.

A ideia era boa, mas cheia de mal traçadas linhas.  

Ainda muito imatura para dar continuidade ao romance, guardei os trechos escritos numa gaveta. Hoje, no pen drive, quase esquecido.

Até que, pouco tempo atrás, alguns amigos que conheciam a base da história começaram a me cobrar:

- “E o Isadora de Pampa e Bahia? Não desiste, a ideia é bacana.”  

Outros, mesmo não conhecendo nada da história, mas sentindo-se atraídos pelo título, disseram ter curiosidade em ler o romance. Então, aqui estou eu, tão diferente daquela menina lá do passado. Porém, ainda mais apaixonada pelas letras, atualizando a obra.

Isadora de Pampa e Bahia é uma obra centralizada entre as paisagens da cultura do Rio Grande do Sul, e que, no transcorrer das trajetórias dos personagens, tem uma breve, porém significativa passagem pelo Estado da Bahia.

A história se passa na década de 60, e tem como protagonista a Isadora, prenda bonita, filha do senhor Antônio, fazendeiro cultivador de arroz e de dona Ana, uma recatada dona de casa.

Isadora cresceu na fazenda, sem conhecer a cidade. Apesar disso, trazia em si um espírito libertário, pouco obediente às regras de sua época. É uma personagem que não pode ser chamada de “a mocinha da história”. É bela, livre, virtuosa, por vezes, incoerente e, acima de tudo, determinada a amar quem desejar, trabalhar no que escolher, ser uma mulher plena em todas as esferas da sua vida. Este é um romance que fala sobre patriarcado, submissão, amizade, espiritualidade, mas acima de tudo, sobre o empoderamento feminino.  

Escrever esta obra que será publicada capítulo a capítulo, no formato folhetim como faziam Fiódor Dostoiévski, Charles Dickens, Machado de Assis e outros autores do século XIX, época em que quase não haviam escritoras, porque escrever era algo inconveniente e pecaminoso às mulheres, para mim é algo mágico. É como se eu estivesse voltando no tempo e fazendo justiça por todas as mulheres que tiveram o sonho de escrever, mas não puderam porque essa era uma prática quase que exclusivamente dada aos homens! Quando algumas cometiam essa ousadia, como foi o caso das irmãs Brontê, tinham que assinar um pseudônimo masculino. Hoje, as mulheres podem escrever, mas ainda há muito preconceito velado em relação ao ser feminino. Em plena modernidade, as mulheres ainda precisam provar o seu potencial. E isso é inadmissível!
 
Então, com vocês, ISADORA DE PAMPA E BAHIA.

Espero que gostem.


Com amor,
Jaqueline Machado – ACL – 22 – ALMURS - 132

Data – 12.07.23


Dedicatória
 
Dedico esta obra à Roberta, minha amada irmã, ao meu amigo José Luiz Muller, e à querida amiga Lúcia Barcelos, que tem revisado todas as minhas produções literárias.

Cito aqui esses nomes, entre tantos outros apoiadores e leitores, porque essas pessoas me incentivaram a "tirar essa obra da gaveta" e compartilhar.

GRATIDÃO!

EPÍGRAFE

O que é a vida? E do que ela é feita?
Só os encantos de Isadora têm as respostas.


ISADORA

1º CAPÍTULO
Prenda bonita


Em Prenda Bonita, viveu uma bela gaúcha dos olhos negros, brilhantes, cabelos soltos e dona de um sorriso esplendoroso. Seu nome exalava um certo aroma de poder no entoar das sílabas quando pronunciadas no pensar secreto de seus admiradores: I-sa-do-ra... Um nome forte para uma mulher ainda mais forte. Desde a infância, sua beleza chamava a atenção de todos ao seu redor, servindo, inclusive, de inspiração ao seu pai, Antônio Machado, que batizou suas terras com o nome de Prenda Bonita em homenagem a ela. Não só o nome emprestado àquele pedaço de chão fazia alusão à graciosidade de Isa, como era carinhosamente chamada por sua mãe, dona Ana. O chão, encoberto pelo arrozal, dançando faceiro sob o forte compasso do minuano, assemelhava-se ao balancear do seu corpo alvo, feito arroz, feito relva, feito nuvem passageira, desfilando, sem destino, pelos rumos celestiais do firmamento da vida.

Amante da liberdade, Isadora gostava de cavalgar no lombo do tordilho mais robusto da fazenda, que por ela foi batizado de Relâmpago. Cavalgando, desfrutava do prazer que é sentir o vento acariciar o rosto enquanto embaraçava seus cabelos em movimentos aleatórios de pura poesia.

Isadora combinava com aquela natureza. E todo aquele ambiente, naturalmente, rendia-se aos seus encantos de mulher guerreira e sonhadora.

Com simplicidade e alegria, por vezes, se permitia colocar as mãos na terra e ajudar os peões na plantação de arroz e no cultivo de flores, que davam um colorido especial àquele lugar mágico.   

A simplicidade de Isadora fazia dela uma pessoa muito estimada entre os serviçais.

Apesar de ter nascido assim... Em forma de versos e de aspirar e inspirar os perfumes mais agradáveis da natureza, Isadora também trazia ocultadas nas entrelinhas dos poemas que a descreviam, muitas reticências... Pontos de interrogações, versos que não se encaixavam em seu espírito libertário. Ela não obedecia às regras sociais, não se encaixava à vida normativa. E por não saber se encaixar ou servir de exemplo perante as regras de seu tempo, dava vida e asas às sombras. Sombras essas que viviam a mendigar por reflexos de luzes em meio à escuridão que se escondia nas entranhas de sua essência feminina.

E algumas dessas sombras surgiam em forma de mágoas. A mais profunda delas concentrava-se nas atitudes do seu pai, que sempre fora um homem rude e machista.  Ela o respeitava, mas se perdia num mar de dores ao ver o sofrimento da mãe, que vivia sob a égide de um sistema de grosseria e desrespeito promovido pelo esposo.

Ana, em sua juventude, chegou a noivar com um primo em segundo grau, mas um mês após o noivado, o rapaz fugiu com outra.  Sua família tinha posses, mas os negócios não estavam prosperando, e logo a falência bateu à porta de casa. Com isso, o senhor Albino, pai da Aninha, como era chamada pelos familiares, achou por bem casar a filha com um homem rico. Assim, as finanças da família seriam salvas, e ela, por certo, não correria o risco de passar pelo infortúnio da escassez.

Dona Clara, mãe de Aninha, era uma mulher educada, amante dos livros e à frente do seu tempo. Ela foi contra a ideia de casar a única filha para salvar as finanças da família, mas nada pode fazer para impedir a realização do matrimônio. Então, o pai da Ana a conduziu diante do altar e a entregou aos braços de Antônio, um solteirão vinte e poucos anos mais velho do que a menina. O indivíduo tinha um jeito meio grotesco, mas parecia ter um futuro promissor como fazendeiro. Tinha jeito ao lidar com os assuntos ligados aos negócios.  Volta e meia, os dois negociavam algumas compras e vendas. Senhor Albino sabia que o sujeito tinha um certo interesse pela jovem, que aos 16 anos teve que se tornar uma mulher recatada e submissa, vivendo apenas para cumprir com as suas obrigações de dona de casa.

As atitudes do velho Antônio incomodavam Isadora, que nutria em seu coração o sonho de ver sua amada mãe, uma mulher bondosa, já na casa dos 40 anos, desfrutando de uma vida feliz. Apesar da idade, que até poucas décadas atrás era sinônimo da aproximação da velhice, dona Ana conservava uma aparência bastante jovial. A prenda Isadora teve a quem puxar a formosa estampa.

O senhor Antônio tinha pouco mais de 60 anos de idade, mas devido à rabugice e muita “água- benta", parecia mais velho.

Quando jovem, sonhara ter um filho homem para carregá-lo pelas trincheiras do Rio Grande afora.

Mas por complicações pós-parto, dona Ana não pode mais engravidar. O mesmo aconteceu com dona Clara ao lhe dar à luz. Mistérios das hereditariedades da vida.                   

De início, ele se deixou levar por uma breve rejeição. Esperou anos até que a mulher engravidasse e precisava se conformar em saber que não seria pai outra vez.  Mas logo caiu de amores pela filhinha. Seus olhos nunca tinham visto uma criança tão linda e esperta.                                  

Apesar do carinho que sentia pela filha, jamais deixou de lado o autoritarismo. Aos finais de semana abandonava a família para buscar o aconchego das tais “chinas” que residiam no centro da cidade. E com elas gastava boa parte dos lucros ganhos nas colheitas do arroz. Ao retornar ao lar, não permitia nenhum tipo de manifestação de mágoa da esposa. Pelo contrário, ao vê-lo chegar, a mulher devia recebê-lo com água quente na bacia para lavar os pés calejados do marido.

Isadora cresceu assistindo a esse tipo de cena. E ao notar os olhos rasos d’água da mãe, chorava às escondidas pelos cantos da casa. Não fazia ideia das traições cometidas pelo pai, mas percebia a maneira hostil e fria com que ele tratava a própria esposa.

Mais tarde, entre seus 17 e 18 anos, passou a entender com clareza o porquê das coisas.

No entanto, ao tentar alertar a mãe sobre os humilhantes acontecimentos, sentia-se profundamente frustrada ao ver a resignação da mulher com a vida que costumava levar.

- Mãe, a senhora ainda é jovem, bonita, por que suportas tantas humilhações do pai? - perguntava com frequência ao tocar com carinho as mãos da mãe.
 
- Do que estás falando, Isa? Estou bem. Tens muita imaginação nesta tua cabeça.

- Mãe, não sou mais criança. Sei tudo o que está se passando por aqui.

-  Para mim ainda és uma criança. O meu bebê.

- Sei pouco da vida. Mas o pouco que sei já é o suficiente para entender certas coisas - dizia a filha.

- Não estou gostando do teu jeito de falar, Isa. Me pareces ousada demais para a tua idade.

- Que seja, então. - disse, dando de ombros - Jamais entregarei a minha liberdade nas mãos de um marido autoritário. A vida aqui na fazenda não nos permite ver a evolução do mundo lá fora. Mas sei que muitas mulheres vêm lutando para assumirem as rédeas dos seus próprios destinos. Descobri isso com os livros.

- Chega, Isa! Estás a falar como se fosses uma moça sem moral.

- Certo, mãezinha. Não vou prolongar a conversa. Quero apenas ver o seu lindo sorriso iluminar esta casa tão triste.                                                   

Siga o meu conselho: tenta pensar mais na senhora.

- Eu penso, guria. Estou satisfeita em ter saúde para cuidar de ti e do teu pai.

Ana tinha instruções sobre a vida, mesmo assim, sem esperanças, caiu passivamente na condição da esposa humilhada e traída.

Desde moço, Antônio dizia que mulher não necessitava de muitas instruções, precisava apenas saber bordar, cozinhar, cuidar bem dos filhos e jamais ler além do necessário. Ou seja, prenda boa só podia ter interesse por leituras cujos conteúdos não fossem capazes de corromper sua modéstia. Alguns salmos, bulas de medicamentos e receitas culinárias era tudo o que uma mulher precisava ler para ter uma boa instrução.  

Escolheu Ana para esposa por considerá-la muito recatada. Mal sabia ele o quanto ela já havia lido antes de casar.  Dentre as obras favoritas da jovem estavam a Trilogia de “O Tempo e O Vento”, do célebre escritor gaúcho Érico Veríssimo. Seus pais tinham uma biblioteca com mais de mil livros. Mas sem saber onde esconder tantas obras do marido, ela achou por bem selecionar apenas 100 livros e escondê-los antes que o esposo descobrisse a biblioteca que ficava no último cômodo da casa dos sogros. Quando os sogros morreram num acidente de trem, numa viagem de negócios, ele descobriu a biblioteca, e a sua primeira providência foi apanhar as obras, amontoá-las no terreno dos fundos da casa e tocar fogo em tudo.

Por detrás da vidraça da janela do quarto, Aninha viu as mesmas mãos que afagaram seu corpo na noite de núpcias, serem capazes de incendiar uma biblioteca inteira.  Ela, que fazia luto pela morte dos pais, aos prantos, soluçava ao acompanhar impotente aquele universo repleto de histórias e estórias se dissipando em chamas feito corpos de bruxas sentenciadas à morte pela Santa Lei da Inquisição. Em estado de choque, e acometida por uma forte tontura, recuou alguns passos rumo à cama. E imersa nas trevas da dor, abraçou-se à Luzia, boneca de pano que na infância havia ganhado de sua mãe. Muito traumatizada, a partir daquele infame momento, Ana nunca mais buscou reconhecer seus direitos. Seu corpo permanecia vivo, mas sua alma dizimou-se junto ao monte daqueles livros.

Isadora não sabia desse triste acontecimento, mas o pouco que sabia bastava para acender sua revolta em relação ao pai.

Na esperança de ver a mãe feliz, certa vez, ao se deparar com a imagem da Virgem Maria no corredor que dava da sala para a cozinha, ajoelhou-se e, em frente à santa, fez uma promessa:

- Oh, Mãe Santíssima, sei que dentre todas as mulheres fostes tu a mais perfeita a existir na Terra. Por isso a Ti devo amor, devoção, tanto respeito... E prometo-te: um dia hei de fazer da minha mãezinha uma pessoa feliz. Além de mulher, és santa. Conto com teu apoio para realizar essa missão complicada, porém justa, a mais justa de todas as missões.   

Às 19h do decorrer do mesmo dia em que fez a promessa, o velho, recém chegado de viagem, entrou pela porta da sala, de cara fechada, botas, bombacha e chapéu torto na cabeça.

- Ana, anda logo com a comida, tô com o bucho vazio e louco de fome! Disse ele.

- Claro. Só falta aprontar o feijão. Vais te lavar que a mesa já será posta.

Em comparação ao seu habitual comportamento, naquela noite, o velho estava calmo. A família jantou em silêncio e logo depois foram dormir. Mas nem sempre era assim. Normalmente ele exigia saber detalhes sobre como passaram o dia e, depois de satisfeito com as respostas, dava início às reclamações sobre as lidas nas fazendas e o trabalho sempre insuficiente dos agregados. A situação era desoladora, mas a fé da guria Isadora insistia em espalhar perfume de esperança por todo aquele inóspito ambiente.
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continua…

Fonte:
Texto enviado pela autora.