sábado, 9 de fevereiro de 2013

Cacaso (Algumas Poesias)

A CASA
Na minha infância quando chovia
batia sobre o telhado
uma pancada macia
a noite vinha de fora
e dentro de casa caía
meu olho esquerdo dormia
enquanto o outro velava
havia portas rangendo
lá fora o vento miava
no fundo da noite a casa
parece que navegava
meu coração passeava
por uma sala sombria
por este lado se entrava
por este outro se olhava
e por nenhum se saía

Na minha infância quando chovia
batia sobre o meu peito
uma suave agonia
a noite vinha de longe
e dentro da gente caía
meu pai que sempre saía
numa viagem calada
havia vozes chamando
na boca da madrugada
no fundo da noite a casa
parece que despertava
assombração que passava
no sopro da ventania
por este lado se entrava
por este outro se olhava
e por nenhum se saía

(in Mar de Mineiro)

AS COISAS

O melão melou
A casa casou
A bola bolou
A rola rolou
O mato matou
O dia adiou
A gia giou
A pia piou
O pinto pintou
O boi boiou
O gato engatou
O pato empatou
A pomba empombou
A paca empacou
O galo galou
O ralo ralou
O calo calou
O barco embarcou
A vaca avacalhou
A banana embananou
A sombra assombrou
O raio raiou
O piru pirou

JOGOS FLORAIS I

Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.

Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.

LERO-LERO

Sou brasileiro
de estatura mediana
gosto muito de fulana
mas sicrana é quem me quer
porque no amor
quem perde quase sempre ganha
veja só que coisa estranha
saia dessa se puder

Eu sou poeta
e não nego minha raça
faço verso por pirraça
e também por precisão
de pé quebrado
verso branco rima rica
negaceio dou a dica
tenho a minha solução

Não guardo mágoa
não blasfemo não pondero
não tolero lero-lero
devo nada pra ninguém
sou esforçado
minha vida levo a muque
do batente pro batuque
faço como me convém
Sou brasileiro
tatu-peba taturana
bom de bola ruim de grana
tabuada sei de cor
4 x 7
28 noves fora
ou a onça me devora
ou no fim vou rir melhor

Não entro em rifa
não adoço não tempero
não remarco o marco zero
se falei não volto atrás
por onde passo
deixo rastro deito fama
desarrumo toda trama
desacato satanás

Diz um ditado
natural da minha terra
bom cabrito é o que mais berra
onde canta o sabiá
desacredito
no azar da minha sina
tico-tico de rapina
ninguém leva o meu fubá

(in Mar de Mineiro)
O FAZENDEIRO DO MAR

Mar de mineiro é
inho
mar de mineiro é
ão
mar de mineiro é
vinho
mar de mineiro é
vão
mar de mineiro é chão
Mar de mineiro é pinho
mar de mineiro é
pão
mar de mineiro é
ninho
mar de mineiro é não
mar de mineiro é
bão
mar de mineiro é garoa
mar de mineiro é
baião
mar de mineiro é lagoa
mar de mineiro é
balão
mar de mineiro é são
Mar de mineiro é viagem
mar de mineiro é
arte
mar de mineiro é margem

(...)

Mar de mineiro é
arroio
mar de mineiro é
zem
mar de mineiro é
aboio
mar de mineiro é nem
mar de mineiro é
em
Mar de mineiro é
aquário
mar de mineiro é
silvério
mar de mineiro é
vário
mar de mineiro é
sério
mar de mineiro é minério
Mar de mineiro é
gerais
mar de mineiro é
campinas
mar de mineiro é
Goiás
Mar de mineiro é colinas
mar de mineiro é
minas

(in Mar de Mineiro)
 POÉTICA

Alguma palavra,
este cavalo que me vestia como um cetro,
algum vômito tardio modela o verso.

Certa forma se conhece nas infinitas,
a fauna guerreira, a lua fria
encrustada na fria atenção.

Onde era nuvem
sabemos a geometria da alma, a vontade
consumida em pó e devaneio.
E recuamos sempre, petrificados,
com a metafísica
nos dentes: o feto
fixado
entre a náusea e o lençol.

Meu poema me contempla horrorizado.

EX (3)

A minha ex-namorada
inundou minha vida de coisas belas demais
evitava que eu tivesse qualquer aborrecimento
impedia que eu saísse no sereno
me conduzia pela mão ao atravessar a rua
velava enternecida pelo meu futuro

a minha ex-namorada usurpou o lugar
onde floria, exuberante, a esposa atual
de meu pai onipresente

                    De Beijo na Boca (1975)
LAR DOCE LAR

                         p/ Maurício Maestro
Minha pátria é minha infância:
Por isso vivo no exílio.

                    De Na Corda Bamba (1978)
REFÉM
Eu sempre quis requebrar
só me faltou poesia
eu nunca soube rimar
mas sempre tive ousadia
nunca joguei o destino
e nem matei a família
a minha sorte na vida
se escreve com C cedilha
Eu nunca tive ideal
nunca avancei o sinal
nem profanei minha filha
Eu me perdi muito além
sendo meu próprio refém
na solidão de uma ilha

Eu sempre quis acertar
só me faltou pontaria
eu nunca soube cantar
mas sempre tive mania
nunca brinquei carnaval
e nem saí da folia
nunca pulei a fogueira
e nem dancei a quadrilha
Eu nunca amei a ninguém
nunca devi um vintém
nem encontrei minha trilha
Eu me perdi muito além
sendo meu próprio refém
na solidão de uma ilha

(In Mar de Mineiro)
CINEMA MUDO IV

Neste retrato de noivado divulgamos
os nossos corpos solteiros.
Na hierarquia dos sexos, transparente,
                                    escorrego
para o passado.
Na falta de quem nos olhe
vamos ficando perfeitos e belos
                             tão belos e tão perfeitos
como a tarde quando pressente
as glândulas aéreas da noite.

                    De Grupo Escolar (1974)

INFÂNCIA (2)

Eu matei minha saudade mas depois
veio outra

                    De Mar de Mineiro (1982)

HAPPY END

O meu amor e eu
nascemos um para o outro

agora só falta quem nos apresente

(de "Beijo na boca")

ESTILOS TROCADOS

Meu futuro amor passeia — literalmente — nos
píncaros daquela nuvem.

Mas na hora de levar o tombo adivinha quem cai.

(de "Beijo na boca")

Quem de dentro de si não sai
Vai morrer sem amar ninguém


A parte perguntou para a parte qual delas
é menos parte da parte que se descarte.
Pois pasmem: a parte respondeu para a parte
que a parte que é mais — ou menos — parte
é aquela que se reparte.

(de "Beijo na boca")
PASSEIO NO BOSQUE

o canivete na mão não deixa
marcas no tronco da goiabeira

cicatrizes não se transferem

(de "Beijo na boca")

DESCARTES

Não há
no mundo nada
mais bem
distribuído do que a
razão: até quem não tem tem
um pouquinho

(de Inimigo Rumor 8)

Fonte:
Imagem = Libreria Fogola Pisa

Cacaso (1944 – 1987)

Mineiro de Uberaba, o poeta Antonio Carlos Ferreira de Brito (1944-1987), conhecido como Cacaso, viveu desde os onze anos no Rio de Janeiro. Cacaso estudou filosofia e lecionou teoria literária na PUC-RJ. Foi também ensaísta e letrista de música popular. Nesse último gênero foi parceiro de compositores como Edu Lobo, Francis Hime, Sueli Costa e Maurício Tapajós.

Para os mais jovens, que talvez não saibam identificar letras de Cacaso, basta citar duas: "Face a Face" (São as trapaças da sorte / são as graças da paixão); e "Lero-Lero" ("Sou brasileiro / de estatura mediana / gosto muito de fulana / mas sicrana é quem me quer"). A primeira tem música de Sueli Costa. A outra, de Edu Lobo.

Na poesia, Cacaso estréia em 1967 com o livro A Palavra Cerzida. Nos anos 70, ele se destaca como um dos expoentes da chamada "geração mimeógrafo", que criaria a "poesia marginal". Os poetas "marginais" retomam alguns procedimentos do modernismo de 1922, a exemplo do coloquialismo, a crítica social e o poema-piada.

Alguns estudiosos fazem restrições à poesia marginal apontando sua falta de rigor. Eles vêem o movimento como uma imagem invertida das vanguardas originárias dos anos 50 (concretismo e afins). Enquanto estas são acusadas de formalistas, o pessoal da poesia marginal recebe a pecha de ter relaxado os procedimentos formais da poesia.

A poesia marginal ganhou especial divulgação após a publicação da coletânea 26 Poetas Hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, em 1976. Além de Cacaso, estão nessa antologia poetas como Francisco Alvim, Torquato Neto, José Carlos Capinan, Ana Cristina César e Waly Sailormoon.

Durante os anos 70, Cacaso lançou os livros Grupo Escolar (1974), Segunda Classe (1975), Beijo na Boca (1975) e Na Corda Bamba (1978). Em seguida, publicou ainda Mar de Mineiro (1982) e Beijo na Boca e Outros Poemas (1985), que reunia toda a sua produção até então. Em 2002 saiu, postumamente, sua poesia completa, que inclui todos os títulos citados aqui, mais poemas inéditos.

Um recurso muito praticado por Cacaso (e herdado do modernismo) é a paródia, com referências bem-humoradas a outros poetas. Em "Há Uma Gota de Sangue no Cartão Postal", por exemplo, o título lembra o livro de Mário de Andrade Há uma Gota de Sangue em Cada Poema. No mesmo poema há também citações da música popular — "Luar do Sertão", de Catulo da Paixão Cearense, e "Tropicália, de Caetano Veloso —, além da "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias, e ainda do poema "Amor e Medo", de Casimiro de Abreu.

"Ex (3)" é o típico poema-piada. "Jogos Florais" esboça uma crítica ao chamado milagre econômico dos anos 70 e retorna à "Canção do Exílio". O espírito da paródia e da gozação estão em toda a obra de Cacaso. O poema que originou o título da coletânea Mar de Mineiro — um título que, por si só, anuncia um conteúdo jocoso — chama-se "Fazendeiro do Mar", uma óbvia brincadeira com o Fazendeiro do Ar, de Carlos Drummond de Andrade. 

Fonte:
Carlos Machado, in http://www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet199.htm

Olivaldo Junior (Morangos Silvestres)

Sei que venho prometendo algo que não tenho feito. Os “morangos” de minha vida foram colhidos, e eu nem vi. Devo ausentar-me por um tempo. Segue – para quem se interesse – meu “morango” para Bergman.

Morangos Silvestres – Um poema*
Para Ingmar Bergman


Os morangos, silvestres ou não, jamais fenecem.
Nalguma parte de nós, no canto escuro da alma,
ensolarados apenas quando de nós se esquecem,
os morangos silvestres, na selva, em minhalma,
são vermelhos, enrubescem-se quando perecem,
pois nunca o fazem de todo.
Posso ser velho, posso ser jovem, que fascinam.
Os rubros da vida me ensinam que sou sanguíneo,
bem mais que eu descortino, pois ainda ensinam
mais ciência que poesia nas escolas: que declínio!
Os morangos, mofados, ou não, são os silvestres
que nasceram nos rupestres corações que trago,
como se eu fumasse algo, no “cinema sem testes”
que compreendo ao lado, alado pelo que afago
quando me lembro de tudo.
Antes que eu morra, mato este velho que mina,
que mata, que assassina quem eu fui: um menino,
talvez com melhor destino que o deste (ruína)
homem, o que se inclina sobre as águas do ensino
que só os sonhos tem, e colhe o fruto que mina
da boca o não-silvestre de morangos que rumino.

Moji Guaçu, SP, trinta e um de janeiro de 2013.
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* Morangos Silvestres (1957) é um filme do cineasta sueco Ingmar Bergman (1918-2007), cujo enredo discute sobre a passagem do tempo ao retratar um dia na vida de um velho professor de Medicina, exatamente quando será condecorado pelo trabalho de toda uma vida. Se esse professor está contente pela honraria? Descubra assistindo ao filme e tire suas próprias conclusões.
O poema acima é em homenagem a Bergman, um poeta da escrita, do pensamento e da imagem.


Fonte:
O Autor

Amadeu Amaral (Memorial de um Passageiro de Bonde) Prefácio – 1. O Bonde

PREFÁCIO

O meu amigo João Felício Trancoso, conceituado, chefe de seção, prometeu um dia, em troca já não sei de que serviço, que me faria um presente à minha escolha. Resisti, como cumpria, à promessa de outra compensação que não fosse a da sua velha e sempre nova amizade.

Mas Trancoso é obstinado e não me deixou sossegar. Exigiu sempre que eu lhe dissesse o que preferia -se a coleção das obras de Jorge Ohnet (a sua maior predileção em literatura), se uma cigarreira de prata, se um guarda-chuva de seda.

Como eu teimasse em recusar, mandou-me o guarda-chuva e, não satisfeito, pouco depois me veio ameaçar com as obras de Jorge Ohnet. Urgia romper o cerco.

Ora, eu sabia que Trancoso, muito calado, rascunhava um diário das suas impressões de viagem. Das viagens que há vinte anos faz, como bom empregado público, de casa para a repartição e da repartição para casa. Tomei-lhe um punhado de folhas, li-o, e disse-lhe: "Este é o presente que exijo".

Tentou repontar, quis sofismar o contrato: venci-o à força de senso jurídico e de severas admoestações.

Nenhuma lembrança do velho amigo me poderia ser mais grata do que esses papéis em que lançou uma verdadeira porção de si mesmo. Verdadeira, porque Felício não conhece a arte dos desdobramentos literários da personalidade. Nota no memorial as espontâneas modificações de sua alma ao contato das coisas e dos homens. Não edifica a sua obra: segrega-a. Não a escreve para verificar ou provar que também é capaz de fazer literaturas, mas "para ter a sensação de que se expurgou de uma inevitável porção de tolices".

Assim, o seu ponto de vista de escrevedor é inteiramente oposto ao dominante: outros
constróem, com esforço, uma personalidade exterior, feita de escritos, na qual põem toda a sua complacência e o melhor das suas esperanças; este deita fora as suas idéias, como um refugo, para conservar o equilíbrio, a saúde e a leveza do seu ser interior e inviolável -o único que vale a pena de ser vivido e cultivado, (mesmo porque não se lhe pode sair da casca).

Demais, gosta de escrever "para ter a impressão, ao reler-se, de ser uma alma que vai vivendo, apesar de reduzida à mínima expressão social de empregado público e viajante de bonde." E acrescenta: "A lesma, na sua existência branca, só deve ter uma tal ou qual sensação de vida quando olha para o rasto prateado que vai deixando pela parede."

Contudo, os mais sonsos têm o seu sistema de idéias e Trancoso não escapa à necessidade. O seu ponto de vista autoral, atrás indicado, já representa uma posição filosófica diante do mundo e da sociedade. Há mais: o nosso memorialista visivelmente gosta dos casos e coisas maisordinários, mais mesquinhos, mais insignificantes: esses, de preferência, regista e comenta. É que pensa, com Chamfort, que, "nas grandes coisas, os homens se mostram como lhes é conveniente, mas nas pequenas se revelam tais quais são". Daí o sabor das pequenas coisas, que são na verdade as realmente grandes, porque formam os alicerces e as armaduras de tudo. O sabor? Antes a amargura

Entretanto, Trancoso não é um cético nem um pessimista. Homem são na sua humana
enfermidade e forte na sua complexão mediana, conhece o valor higiênico da variedade de exercícios e a conveniência de a gente se abandonar um pouco à ondulação natural do sentimento e das intuições ordinárias. No fundo, talvez, crente, -crente do bom senso da inteligência e do coração, qualidade ativa, inimiga nata do senso comum, "consagração social e passiva de toda a sorte de preconceitos mendazes e de pré-sentimentos daninhos".

Enfim, aqui tem o leitor as impressões de viagem de Felício Trancoso. Temo que este prefácio o prepare mal para avaliar a verdadeira índole dessas páginas despreocupadas. A eterna impertinência dos prefácios! As coisas da vida surgem por si mesmas, sem prefácios nem explicações, e no entanto conseguem perfeitamente o fim de todas as coisas: passar. Pois façamos de contas que este prefácio já passou. Não existe.

L'áme respire avec des paroles
UNAMUNO, L'Agonie du Christianisme


1. O BONDE
Quando ia tomar o meu bonde, hoje pela manhã, o meu vizinho Dr. Viegas passou no seu Dodge e atirou-me. num gesto, a fisga de um convite. Hesitei um pouco, e afinal optei pelo bonde. O Dr. Viegas partiu.

Entrei no carro elétrico, conquistei um lugar no último banco, e só depois que me vi instalado e refestelado é que me ocorreu dirigir a mim próprio esta interpelação: "Por que será que recusei o automóvel? Porque preferi o bonde?" A resposta não foi imediata nem rápida; veio porém, e aqui a reduzo a conserva: "Preferi o bonde porque não tenho pressa. E não quero ter pressa, porque estou contente, e o contentamento em mim propende naturalmente à lenteza das degustações silenciosas e chuchurreadas. Trago a alma numa pacificação pessoal e cantante, num desses estados de harmonia orgânica que crescem de dentro para fora, como uma florescência, sem se saber porque, e por isso mesmo são mais doces. Para fruir esta eufórica disposição, preciso de estar só. E a melhor maneira de estar só é ainda achar-se no meio de uma quantidade grande de estranhos. Sentimo-nos, assim, não apenas insulados, mas diversos. Duplo círculo de segregação. Solidariedade enfestada. -E eis aí a única forma de solidariedade perfeita que os homens até hoje inventaram: a união de todos para deixar cada um entrincheirado em si mesmo, como uma pedra.

Depois, o automóvel me é antipático. A rapidez posta a serviço dos que não têm que fazer! A faculdade de deslocamento veloz em posse dos que menos razão teriam para correr! Assim, os relógios de bolso foram nos seus princípios um luxo de ricos, depois de apatacados; adorno e brinquedo dos que tinham mais tempo ao seu dispor. Velha história da maioria dos inventos: charadas e curiosidades de mecânica para pessoas lunáticas ou desocupadas, acabam impondo-se a todo o mundo. Não os determina a necessidade: eles é que a suscitam. Os que trabalham deveras, os que suam e gemem na tarefa de todos os dias são os que precisariam de ter automóvel, para poupar minutos, para espremer uma gota de vida e de sangue em cada segundo. Mas esses não o podem adquirir e manter; podem quando muito sonhar em possuí-lo um dia - quando já não seja necessário.

Assim se vive perpetuamente, em busca do supérfluo; por ele nos batemos e sacrificamos. O supérfluo é-nos tão indispensável como para certos doentes o ar das montanhas ou os banhos de mar. Nele pomos as nossas esperanças de saúde e rejuvenescimento. A vida é uma carreira louca em pós de automóveis relampejantes. Poucos os agarram. E os que os agarram, apenas aboletados mandam tocar mais depressa para alcançar um outro que faiscou ao longe. E toda esta canseira se resolve numa carreira desesperada empós do último carro, aquele que tem douradas e negruras.

O automóvel é o veículo dos que fogem a si mesmos. Qual a causa dessa febre de pressa? Vaidade material, exteriorização do centro de gravidade psíquica. Depois, gosto puro da velocidade, pendor infantil reencontrado na idade madura -prazer de um tropel de sensações, dominado pela sensação central e capitosa de sermos uma vertigem que voa através do delírio das coisas. Tudo maneiras novas de embriaguez. O automóvel vem da mesma prateleira que o whisky, o tango e a morfina. Tudo maneiras de uma pessoa esquivar o olho antipático e fulgurante do seu Eu profundo, o consciente, o rememorador, o censurante, o meditativo, que desperta e fala quando abandonamos o corpo e os sentidos, e os braços descansam, e o animal estatela como um mecanismo cuja corda se acabou.

O automóvel é o veículo dos que não amam, apenas desfloram libertinamente a beleza das coisas. -A melhor atenção do viajante, por essas estradas, se concentra na máquina. "Como se porta? Quanto anda? Quantos quilômetros andou? Como funcionam os freios? Bastará a provisão de gasolina? Onde encontrar gasolina aos litros? Olha um que lá vem como um louco! Vamos a uma chispada! Cuidado com essa volta... Diabo, lá se foi um pneu!... -Assim, conjugado ao passageiro por todas as fibras da atenção e da vontade, o auto é como um corpo doente que uma triste criatura tem de conduzir, absorvida nele, por entre esbarros e escorregões. É um prolongamento imediato do Eu material, e pois um reforço tremendo da múltipla escravidão que amarra a endolorece o espírito. O ideal do filósofo é despojar-se de tudo quanto nos limita e nos pesa: o ideal comum é encarapitar novas cargas e novos prolongamentos, novas estruturas postiças à personalidade natural.

Os homens na verdade amam todo gênero de escravidão, contanto que lhe ponham um nome aprazível. Dirigir um automóvel é "dirigir" alguma coisa. (Veja-se a tradicional imponência dos indivíduos atrelados a uma boléia). Chamam a isso dominar a matéria cega e a força bruta. Dominar a matéria e a força, quem o faz é o inventor que labuta no gabinete e no laboratório. Os outros apenas reproduzem a história do mágico aprendiz. -Chamam a isso fazer esporte, cooperar na obra de não sei que vago progresso. E com estas idéias se alegram. Fáceis decontentar, os homens. É pena que os forçados das galés antigas não tenham tido a consolação de algum pensamento nesse estilo, quando se dobravam e desdobravam amarrados à mecânica extenuante do remo!

Sim, automobilistas há que têm tempo para ver; que colecionam sensações; que trazem braçadas de impressões da natureza, dos povoados, das caras e das almas entrevistas. Impressões talvez nítidas, mas fragmentárias e superficiais, como fotografias. A objetividade chata e unilateral do instantâneo. Nada das penetrações, das tatilidades envolventes, das sondagens reveladoras, das adivinhações enlevadas, das apreensões íntimas, concretas, totalizantes, de uma alma em lento contato, em luta e em núpcias com a virgindade fugitiva do real. A imparcialidade química, a mentirosa, a estúpida imparcialidade da fotografia.

Enquanto que o bonde... Ah! o bonde é outra história. Nem tão vagaroso que dê sono, nem tão veloz que dê vertigem, tem a suprema vantagem de ser seguro e repousante. "Repousante" quer dizer que nos deixa o descanso necessário para continuarmos em lida e em briga conosco mesmos. Quer dizer que no bonde não intervém a força centrífuga que nos estraçalha e nos projeta contra as coisas ambientes, na alucinação das corridas elásticas e esfuziantes. Em vez de domar a pulso umas engenhocas pomposas e traiçoeiras, acho mais razoável e mais agradável degustar as aquisições já provadas e certas do gênio inventivo, das quais nos podemos servir sem lhes dar maior atenção. E que formidáveis aquisições, já docemente incorporadas aos nossos modos de ser! Por exemplo, este meu Faber n.0 2, macio, leve e corrente como uma agulha sensibilíssima adaptada a um aparelho psicográfico; este papel em que escrevo, liso e lúcido como porcelana, claro como a cordialidade, alvo como a inocência, receptivo como um espelho; este humilde capote de lã que molemente me escorrega dos ombros à medida que trabalho, brando como um carinho piedoso que discretamente se retira; este meu relógio paciente e incansável, que há seis anos tiquetaqueia todos os minutos da minha vida, já embaciado, já com os relevos do tempo meio delidos, já com um ponteiro meio torto, já com o vidro meio opaco, mas con moto dentro firme e obstinado no seu trabalho, sempre a contar lá consigo, na sua vizinha martelada e tilintante, a medida perpétua de todas as monotonias essenciais deste mundo tumultuoso.

O bonde permite que eu me concentre em mim mesmo. Não vale isso grande coisa, mas sempre é um meio de eu me sentir viver enquanto vivo. O que não é possível no automóvel à solta, onde a nossa alma se vai espadanando pelos caminhos como a água de uma vasilha sacolejada.

O bonde permite-me ver de perto, viver o bicho-homem na substancial realidade dos seus gestos inadvertidos. E esse bichinho (verme da terra, lá diz o Evangelho) é afinal só o que há de interessante no mundo.

As próprias estrelas são uma poeira estúpida, na sua mudez mortal e na sua mecânica fria. De onde lhes vem a magnitude e a beleza? Da pequenez e da miséria desse bichinho que pensa e que imagina, entre as minhocas e os sapos. A sua pequenez e a miséria o fazem visionário de esplendores.

Deliciae meae esse cum filiis hominum.

O bonde é uma galeria inesgotável de exemplares desse verme sempre igual e sempre vário; uma exposição permanente, renovada a cada instante, de tipos, de esboços, de caricaturas, rica e múltipla como a vida, sugestiva como deve ser a antecâmara do Purgatório. Se as almas soassem, o bonde seria como um poderoso jazz-band sobre rodas em que os uivos, os berros, os soluços, as casquinadas interiores se despenhariam em cataratas de dissonâncias -sem perder o fio às grandes linhas monótonas da composição.

"Ah! o bonde, sim..."

Depois de me dar esta resposta, achei que era um pouco longa demais para explicar uma resolução tomada em dois segundos. Mas não sei fazê-lo por outro modo. Sei apenas que é assim, ordinariamente, com todas as nossas resoluções. Elas pressupõem longos trabalhos de raciocínio e reflexão; na verdade, esses trabalhos vêm depois, e só servem, quando muito, para as seguintes edições do mesmo ato.

No cabo de tudo, se eu ainda dispusesse de dinheiro sobrante, compraria um automóvel, ou uma dessas máquinas que mais se assemelham automóvel.

Fonte:
Domínio Público

Soares de Passos (Um Eco no Cativeiro)

Que tristeza quando penso
Nos povos em servidão!
Nos povos, gigante imenso
Rugindo humilde no chão!
Ao pensar assim comigo,
Quantas vezes eu maldigo
Essa campa de jazigo
Que pesa sobre as nações!
Quantas vezes eu deploro,
Quantas estremeço e choro,
Ouvindo o ranger sonoro
De seus pesados grilhões!

Ouvindo tão tristes queixas
Retumbando por esse ar,
Tantas sentidas endechas
Sobre a terra a suspirar;
Ouvindo-te, humanidade,
Esse gemer de saudade,
Que soltas na imensidade
Sem que te escute ninguém;
Ouvindo-te, ó malfadada,
De teus filhos rodeada,
Suspirar abandonada
Como suspira uma mãe!...

É triste a cena que vejo,
É triste, mas ei-la aí...
Aquém sofismas, sem pejo,
Férreas algemas ali;
Dum lado povos traídos,
Pelos seus escarnecidos,
Soltam queixas e gemidos
Que ninguém quer acolher;
Doutro povos humilhados,
Sob um jugo avassalados,
Por um peso recalcados
Quase nem ousam gemer...

Pobre raça deserdada
Que aí suspiras em vão,
Quando hás-de ter entrada
Na terra da promissão?
Quando hás-de resgatar-te?
Quando é que em toda a parte
Há-de o mundo contemplar-te
Semelhante a um homem só?
Quando raiará o dia
De cessar tua agonia?
Quando terás alegria
Erguendo a fronte do pó?

Hás-de tê-la, que o desterro,
Eia, ó triste, acabará,
Que esse jugo vil de ferro
Em pedaços cairá!
Esgota o cálice inteiro
De teu duro cativeiro;
Porém do solo estrangeiro
Fita ao longe a redenção!...
Esta crença, força e vida
Nos corações mal contida,
Pode acaso ser retida?
Acaso pode?... pode? – Não!

Debalde tentam detê-la
Porque a corrente caudal
Hão-de majestosa vê-la
Transpor o dique afinal...
Tudo no mundo descansa,
Nada progredindo avança,
Tudo avante se abalança
Num eterno caminhar...
Fitai o sol, as estrelas;
Vede se podeis sustê-las,
Se podeis, loucos, fazê-las
Ao vosso aceno parar...

Quem me dera a mim agora
Ter do fogo lá do céu,
Daquele fogo que outrora
Trouxe à terra Prometeu!
Oh! que se eu pudera tê-lo,
Eu havia de vertê-lo
Nessa montanha de gelo
Que inda dos seios não cai...
Sobre a raça amortecida
Dos homens soprara a vida,
E com voz, do mundo ouvida,
Lhes bradaria: – Acordai! –

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Artur Azevedo (O Galã)

Um belo dia, naquela pacata e honesta capital da província de segunda ordem, apareceram, pregados nas esquinas, enormes cartazes anunciando a próxima estréia de uma excelente companhia dramática, vinda do Rio de Janeiro.

Há muito tempo o velho teatro não abria as portas ao público, e este, enfarado de peloticas e cavalinhos, andava sequioso de drama e comédia.

Havia, portanto, na cidade uma animação e rebuliço desusados.

Falara-se na vinda da companhia, mas ninguém tinha absoluta certeza de que ela viesse, porque o empresário receava não fazer para s despesas. Agora, os cartazes, impressos em letras garrafais, confiram a auspiciosa notícia, provocando um entusiasmo indizível. Muita gente saía de casa só para os ver, certificando-se, pelos próprios olhos, de tão grata novidade.

A companhia anunciada era, efetivamente, a melhor, talvez, de quantas até então se tinham aventurado às incertezas de uma temporada naquela tranqüila cidade.

Dois artistas, pelo menos, a primeira dama e o galã, vinham precedidos de grande fama. Ela já lá tinha estado, quando menos célebre, porém, era a primeira vez que lá ia, e por isso o esperavam com uma ansiedade fácil de imaginar.

Quando a companhia chegou, foi uma verdadeira festa. Grande massa de povo aguardava-a no cais de desembarque; houve música, foguetes e aclamações.

Tanto a primeira dama como o galã foram acompanhados ao hotel por inúmeros admiradores e ele, solicitado pelo povo, teve que aparecer à janela, onde, visivelmente comovido, expectorou algumas palavras com mais entusiasmo que sintaxe.

A estréia foi um delírio. O teatro encheu-se completamente: não havia um lugar desocupado.

O presidente da província (era no tempo do Império) estava presente, e os camarotes, ocupados pelas primeiras famílias, apresentavam magnífico aspecto.

Representou-se a Morgadinha de Valflor.

A primeira dama agradou muito, mas sem causar grande impressão, porque já tinha sido vista no papel da protagonista e não parecia agora superior ao que dantes fora. Quem triunfou verdadeiramente, quem teve as honras da noite, foi o galã, o melhor Luís Fernandes que até então pisara naquele palco.

Era um artista experimentado, com todas as qualidades e defeitos indispensáveis para agradar às platéias provincianas; bom órgão, gesto largo e abundante, porte esbelto, grande cabeleira encaracolada, bigodes fartos e retorcidos, olhos pisados, bons dentes -nada faltava a Luís Fernandes para ser desejado, não só pela morgadinha de Valflor, como por todas as espectadoras sentimentais.

Entre estas, havia uma, a sinhazinha Brites, cujo espírito enfermiço aquele formoso intérprete de Pinheiro Chagas impressionou singularmente.

Ela sentia-se fascinada pela figura garbosa e varonil do palavroso pintor, em quem tão bem assentavam os calções e as botas do tempo do diretório -e, por mais que tentasse disfarçar, não pôde encobrir ao marido os violentos resultados daquela fascinação.

Ele, o marido, o Brites, era um sujeito observador e inteligente, a quem não deixava de inquietar o caráter romanesco de sinhazinha. Estudara-a a fundo, atentando nas suas longas cismas em noites de luar, ou examinando cuidadosamente os livros cuja leitura ela preferia. Houvera certa desigualdade naquele casamento: o marido era quinze anos mais velho que a mulher; ele, um homem positivo, encarando a vida como a vida é, procurando o lado prático de todas as coisas; ela, com uns ares vaporosos de femme incomprise, divagando continuamente pelos intermúndios da quimera e do sonho. Ele, criatura comum, homem feio como todos os homens sem educação física; ela, uma das moças mais bonitas da terra.

Demais, faltava-lhes a maior ventura dos casais felizes: faltava-lhes um filho, que reprimisse na senhora as fantasias da senhorita.

Com uma boa posição no comércio, rico ou, pelo menos, remediado, honesto, escrupuloso, solícito, amável, e, como já ficou dito, inteligente, o Brites era, entretanto, um marido ideal.

O segundo espetáculo da companhia foi com o Romance de um moço pobre.

Observou o sobressaltado marido que Máximo Odiot causava à sinhazinha uma impressão ainda mais pecaminosa que a produzida por Luís Fernandes.

Quando o pano desceu depois da famosa cena das ruínas do castelo abandonado, em que o herói de Octave Feuillet se atira num precipício, exclamando: -Vou salvar a honra! -sinhazinha ficou uns bons cinco minutos estática, sem articular um som, os lábios entreabertos num quase sorriso voluptuoso, o olhar úmido perdido no vago.

O público aplaudiu calorosamente, chamando três vezes os artistas à cena e ela não saiu daquele êxtase.

-Que tens?... Estás incomodada?... - perguntou o Brites.

A moça estremeceu, passou as mãos pelos olhos, como se despertasse de um sonho, e suspirou, dizendo:

-Não, não tenho nada.

Na manhã seguinte o Brites experimentou o maior desgosto da sua vida conjugal: ouviu perfeitamente sinhazinha, dormindo, pronunciar o nome do gala... Isto resolveu-o a atacar de frente o minotauro. Não deixou perceber coisa alguma. Almoçou alegremente e foi para o trabalho à hora costumada. Quando voltou à tarde, aproximou-se de sinhazinha, deu-lhe um beijo, e disse-lhe:

-Trago-te uma notícia que talvez te contrarie...

-Qual?

-O galã da companhia dramática vem cá jantar amanhã.

-O galã!

-Sim; aquele que ontem fez com tanto talento o papel do moço pobre. Foi hoje levar-me ao escritório uma carta de recomendação, e eu, não sabendo como obsequiá-lo, convidei-o para jantar. Amanhã não há espetáculo: ele está livre.

Sinhazinha, que, enquanto o marido falava, tivera tempo de preparar a dissimulação, limitou-se a responder:

-Que maçada!

Ela mal dormiu durante a noite e, no dia seguinte, agitada pela idéia de que ia ver de perto, apertar a mão e falar ao irresistível galã, passou as horas febricitante, nervosa, mudando de lugar a cada momento. Felizmente os preparativos do jantar ofereceram uma espécie de derivativo àquele acesso nervoso.

Quando, às seis horas da tarde, chegou o galã, ela não quis acreditar que fosse ele: olhou para a porta como se esperasse outra visita; mas o marido, que lhe percebeu a surpresa, insistiu na apresentação e sinhazinha dobrou-se à evidência.

Tinha diante de si um homem feio, marcado de bexigas, os dentes postiços, o cabelo cortado à escovinha e a cara inteiramente raspada... de véspera.

A alvura da camisa era suspeita, as botinas eram cambraias, as unhas não eram irrepreensíveis, a sobrecasaca tinha nódoas e as calças joelheiras.

A desilusão continuou durante o jantar. O galã, aliás boa pessoa, não tinha absolutamente conversação, nem de outro assunto traque não fosse da sua vida de teatro. Disse mal dos colegas, arrastou a primeira dama pela rua da amargura, e afirmou que não faria parte daquela tropa fandanga, se não tivesse que sustentar mulher e cinco filhos, em véspera de seis.

E não sabia estar à mesa: repetia todos os pratos, metia a faca na boca, palitava os dentes, limpava a testa no guardanapo, escarrava, cuspia!

Sinhazinha estava pasmada, e o Brites radiante.

Quando o galã saiu, logo depois do café, a mulher do engenhoso Brites sentia-se curada de todos os devaneios da sua imaginação doentia.

-Que diferença!... Não parece o mesmo!...

-Pudera! Quem tu viste no teatro não foi ele: foi o Luís Fernandes, foi o Máximo Odiot.

Alguns meses depois havia naquela casa o que até então lhe faltava: um filho que reprimisse na senhora todas as fantasias da senhorita.

Fontes:
Domínio Público
Imagem = http://rafadraw.blogspot.com.br

Raquel Ordones (Outros Oceanos)

Imagem com soneto obtido no facebook da autora

Santos Dumont (O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos) Parte 2

Comprei um dia um triciclo a petróleo. Levei-o ao "Bois de Boulogne" e, por três cordas, pendurei-o num galho horizontal de uma grande árvore, suspendendo-a alguns centímetros do chão. É difícil explicar o meu contentamento ao verificar que, ao contrário do que se dava em terra, o motor do meu triciclo, suspenso, vibrava tão agradavelmente que quase parecia parado.

Nesse dia começou minha vida de inventor. Corri à casa, iniciei os cálculos e os desenhos do meu balão n.º 1.

Nas reuniões do Automóvel Club — pois o Aero Club não existia ainda — disse aos meus amigos que pretendia subir aos ares levando um motor de explosão sob um balão fusiforme. Foi geral o espanto: chamavam de loucura o meu projeto. O hidrogênio era o que havia de mais explosivo!

"Se pretendia suicidar-me, talvez fosse melhor sentar-me sobre um barril de pólvora em companhia de um charuto aceso". Não encontrei ninguém que me encorajasse.

Não obstante, pus em construção o meu n.º 1, e logo  depois o n.º 2.

As minhas experiências no ar começaram em fins de 1898. Foram grandemente interessantes, não pelo resultado obtido, mas pela surpresa de ver, pela primeira vez, um motor trepidando e roncando nos ares. Creio mesmo que foram estas experiências que deram lugar à fundação do Aero Club de França.

As experiências com esse modelo não surtiram o resultado desejado. Eu tinha sido audacioso demais, fabricando um balão demasiado alongado para os meios de que, então, dispunha. Abandonei essa forma e construí um balão ovóide.
* *
Com o primeiro tipo tive uma terrível queda de várias centenas de metros, que muito me ameaçou de ver naquele o meu último dia. Não perdi, porém, o alento. Com esse novo aparelho, o meu n.º 3, atravessei a cidade de Paris.

Houve grande barulho em torno dessa experiência. Creio mesmo que, se as primeiras deram lugar à fundação do Aero Club, esta foi que determinou a instituição do prêmio Deutsch.

De fato, com a travessia que fiz de Paris, começou-se a discutir se seria possível ir de um ponto a outro e voltar ao de partida, em balão.

Grandes controvérsias...
* *
A uma das assembléias do Aero Club compareceu um senhor, desconhecido de todos nós, muito tímido, muito simpático, que ofereceu, ele, Deutsch de la Meurthe, um prêmio de cem mil francos ao primeiro aeronauta que, dentro dos cinco anos seguintes, partindo de St. Cloud, que era então onde se achava o Parque do Club, circunavegasse a Torre Eifel e voltasse ao ponto de partida, tudo em menos de 30 minutos. Acrescentou mais, que no fim de cada ano, caso não fosse ganho o prêmio, se distribuíssem os juros do dinheiro entre os que melhores provas tivessem obtido.

Era sentir geral que cinco anos se passariam sem que o prêmio fosse ganho.

A direção do balão, naquele tempo, era um desejo sem promessa.
* *

No dia seguinte à instituição do prêmio Deutsch, iniciei a construção do meu n.º 4 e de um hangar em St. Cloud.

Opinei novamente pelo balão fusiforme, pois precisava atingir a uma velocidade de mais ou menos 30 km por hora, o que seria difícil com um balão ovóide. Adquiri o motor mais leve que encontrei no mercado; tinha a força de 9 HP e pesava 100 quilos. Era a maravilha de então...

Com esse balão, no ano de 1900, pouco consegui de bom. Meu único concorrente ao prêmio foi o Sr. Rosc, cujo balão não conseguiu nunca subir; os juros do prêmio Deutsch me foram entregue, pois.

Durante o inverno pus em construção o meu famoso n.º 5, que experimentei no Parque do Aero Club.

Em 12 de julho de 1901, às 3 horas da madrugada, auxiliado por alguns amigos e meus mecânicos, levei-os para o Hipódromo de Longchamps; comecei a fazer pequenos círculos com o dirigível, que era verdadeiramente dócil; fui ao bairro de Puteaux e evoluía por cima de suas inúmeras usinas quando, de repente, ouço um barulho terrível: uma a uma todas as usinas tinham posto a funcionar seus apitos e sirenes.

Fiz duas ou três voltas e cheguei novamente a Longchamps.

Fiz um conciliábulo com meus amigos. Pretendia fazer a volta à Torre Eifel; eles me querem dissuadir disso, por não estar presente a Comissão do Aero Club. Não me pude conter; o esporte me atraía; parti. Tudo correu bem até as alturas do Trocadero, quando senti que o balão não me obedecia mais. Arrebentara-se o cabo que ligava a roda do governo ao leme da aeronave. Diminuo completamente a velocidade do motor e manobro para tocar em terra. Fui muito feliz, desci mesmo no jardim do Trocadero, onde, por ser ainda muito cedo, havia muito poucas pessoas.

A ruptura se dera em ponto dificilmente acessível; era necessário uma escada. Vão busca-la; quatro a cinco pessoas a sustem de pé e, por ela, consigo subir e consertar o cabo. Parti de novo, circunaveguei a torre e voltei diretamente a Longchamps, onde já havia muita gente à minha espera, inquieta da demora.

Foi um sucesso colossal quando cheguei e parei o motor.

Nesse mesmo dia a imprensa anunciava ao mundo inteiro que estava resolvido o problema da dirigibilidade dos balões.
* *

Aproveito a ocasião para agradecer à imprensa do mundo inteiro a simpatia com que me cativou e, principalmente, a que dispensou à "Idea Aérea". Foi graças a isso que se instituíram prêmios de estímulo e o cérebro dos inventores se pôs a trabalhar para o aperfeiçoamento da aeronave, até podermos, em 1918, possuir aeroplanos e dirigíveis que parecem o resultado de uma evolução milenária.

Se quando nas ruas de Paris apareceu o primeiro automóvel e se quando a Torre Eifel foi circunavegada, não tivesse a imprensa incentivado essa iniciativas, acompanhando de perto o seu progresso, não teríamos hoje, estou certo, as locomoções automóvel e aérea, que são o orgulho da nossa época.
* *

Foi neste dia que começou a minha grande popularidade em Paris; aproveito, pois, também a ocasião para pagar um tributo ao povo de Paris. Foi graças aos constantes aplausos e encorajamento que recebemos, os meus colegas e eu, que encontramos forças para, diante de tantos insucessos e perigos, continuarmos na luta. É, pois, à clarividência do povo da Cidade Luz que o mundo deve a locomoção aérea.

Não só o povo me encorajava nas minhas experiências, mas também a sociedade, as altas autoridades e todos os escritores.

No meu hangar encontravam-se pessoas de todas as classes e opiniões. Um dia apanharam numa fotografia a ex-imperatriz dos franceses ao lado de Rochefort. Tinham sido os maiores inimigos; pois bem, no meu atelier, do qual Rochefort era um freqüentador assíduo, estavam um ao lado do outro!

Rochefort cobriu-me também de elogios; não falemos na legião de escritores, especialistas, como François Peyrey, Besaçon e todos os outros, pelos quais até hoje tenho uma profunda gratidão.

No dia seguinte, em um artigo de fundo, M. Jaurés disse que "até então tinha visto procurando dirigir os balões à "sombra dos homens" hoje viu "um homem".
* *

Recebi felicitações do mundo inteiro; entre elas, porém, uma, certamente a que mais me honrou e para mim a mais preciosa, veio assim endereçada, numa fotografia do maior inventor dos tempos modernos:

"A Santos-Dumont
o Bandeirante dos Ares
Homenagem de Edison".

Naquela época, em que a aeronáutica acabava de nascer, não era muito ser considerado o seu Bandeirante; hoje, porém, que ela existe e vai decidir a sorte da guerra, me é infinitamente preciosa essa apreciação do homem pelo qual tenho a maior admiração.
* *

No dia 13 de julho de 1901, às 6 horas e 41 minutos, em presença da Comissão Científica do Aero Club, parti para a Torre Eifel. Em poucos minutos, estava ao lado da torre; viro e sigo, sem novidade, até o Bois de Boulogne. O sol, mostra-se neste momento e uma brisa começa a soprar, leve, é verdade, porém, bastante, nessa época, para quase parar a marcha da aeronave. Durante muitos minutos, o meu motor luta contra a aragem, que se ia já transformando em vento. Vejo que vou sair do bosque e talvez cair dentro da cidade. Precipito a descida e o aparelho vem repousar sobre as árvores do lindo parque do Barão de Rotschild. Era necessário desmontar tudo, com grande cuidado, afim de que não se danificasse, pois pretendia reparar minha embarcação para concorrer de novo ao prêmio Deutsch.
* *

Nesse dia tinha despertado às três horas da manhã para, pessoalmente, verificar o estado do meu aparelho e acompanhar a fabricação do hidrogênio, pois, de um dia para outro, o balão perdia uns vinte metros cúbicos. Sempre segui a divisa: "Quem quer vai, quem não quer manda"... Já o dia ia findando e eu não abandonava o meu balão um só instante, a despeito da fome terrível.

De repente, — deliciosa surpresa! — apareceu-me um criado com uma cesta cujo aspecto traía iniludivelmente o seu conteúdo; pensei que algum amigo se tivesse lembrado de mim enquanto almoçava... Abria-a e dentro encontrei uma carta: era da senhora Princesa D. Isabel, vizinha do Barão Rotschild, que me dizia saber que eu estava trabalhando até aquela hora, sem refeição nenhuma, e me enviava um pequeno lunch; pensava também nas angústias que deveria sofrer minha mãe, que de longe seguia as minhas peripécias, e declarava ter à minha disposição uma pequena medalha, esperando daria conforto a minha mãe saber que eu a traria comigo em minhas perigosas ascensões.

Essa medalha nunca mais me abandonou.
* *

Sobre essas experiências, publicou "L'Illustration" as seguintes notas: "La première du mois de Juillet 1901 a été signalée par deux événements qui pourralent bien marquer deux grandes dates dans l'Histoire de l'humanité, et qui semblent dans tous les cas promettre qu'en matière de conquétes scientifiques le vingtième siècle ne sera pas inférieur au dix-neuvième.

A dix jours d'intervalle, le sous-marin "Gustave-Zédé" a fait ses preuves en Corse, et le ballon dirigeable Santos-Dumont a fait les siennes à Paris meme. Dans deux numéros consecutifs, l'Illustraction a pu consacrer la gravure de première page à ces deux exploits — les premiers — acomplis dans le domaine de la navigation aérienne.

Le ballon de M. Santos-Dumont, qui vient d'effectuer deux jours de suite le voyage aller et retour de St. Cloud à la tour Eiffel est le cinquième aérostat avec lequel cet ingénieur de vingt-huit ans a tenté de resoudre le problème de la dirigeabilité.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Les positions respectives de ces divers agrès on été déterminées avec beaucoup de soin et après de longs tâtonnements, afin qu'une fois tout en place et en tenant compte du poids mème de l'aéronaute, la quille soit horizontabilité et une égale tension des cordelettes de suspension. Cette condition explique pourquoi le siège de l'aéronaute se trouve éloigné du moteur.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Enfin, c'est par le déplacement du guide-rope, suspendu sous la quille et pesant 38 kilogrammes, qu'on obtient l'inclinaison voulue du système les mouvements d'ascension ou de descente.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

A 7 heures, le Santos-Dumont nº 5 doublait la tour Eiffel en la contournant un peu au-dessus de la deuxième plate forme. Ce virage est executé avec précision remarquable.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Attendons-nous à le voir un de ces jours planer sur Paris et descendre, par example, sur la terrasse de l'Automobile Club, place de la Concorde."


* *

Reposto o balão e estado de funcionar, revistas e consertadas todas as suas peças, cheio de novo, fiz experiências preliminares. Convocada novamente a Comissão do Aero Club, parti para a Torre Eiffel que circunaveguei de novo; mas, ao voltar, desarranjou-se-me a máquina nas alturas do Trocadero. Manobro para escolher um bom lugar para descer. Supunha ter sido feliz em minhas manobras e esperava descer em uma rua, quando ouço um grande estrondo, grande como o de um tiro de canhão; era a ponta do balão que, na descida, que foi rápida, tocara o telhado de uma casa.

Um saco de papel cheio de ar, batido de encontro a uma parede, arrebenta-se, produzindo um grande ruído; pois bem, o meu balão, saco que não era pequeno, fez um barulho assim, mas... em ponto grande. Ficou completamente destruído.

Não se encontrava pedaço maior do que um guardanapo!

Salvei-me por verdadeiro milagre, pois fiquei dependurado por algumas cordas, que faziam parte do balão, em posição incomoda e perigosa, de que me vieram tirar os bombeiros de Paris.

Os amigos e jornalistas me aconselharam a ficar nisso e não continuar em minhas ascensões, da última das quais me salvara por verdadeiro milagre. O conselho era bom, mas eu não pude resistir à tentação de continuar; não sabia contrariar o meu temperamento de sportsman.

Convoquei-os para nova experiência daí a três semanas. Eu sabia dos elementos com que podia contar; já conhecia, em Paris, umas vinte casas especialistas, cada qual, de um trabalho, e já tinha conquistado a simpatia dos contramestres e operários de quem podia esperar a maior dedicação e serviço rápido.
* *

Iniciei a construção de um novo balão e novo motor, este um pouco mais forte, aquele um pouco maior.
––––––-
Continua…

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

Gregório de Matos (Sonetos Dispersos)

SONETO I

Carregado de mim ando no mundo,
E o grande peso embarga-me as passadas,
Que como ando por vias desusadas,
Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.

O remédio será seguir o imundo
Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas andam juntas mais ousadas,
Do que anda só o engenho mais profundo.

Não é fácil viver entre os insanos,
Erra, quem presumir que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.

O prudente varão há de ser mudo,
Que é melhor neste mundo, mar de enganos,
Ser louco c'os demais, que só, sisudo.

SONETO II

(A uma dama dormindo junto a uma fonte.)

À margem de uma fonte, que corria,
Lira doce dos pássaros cantores
A bela ocasião das minhas dores
Dormindo estava ao despertar do dia.

Mas como dorme Sílvia, não vestia
O céu seus horizontes de mil cores;
Dominava o silêncio entre as flores,
Calava o mar, e rio não se ouvia,

Não dão o parabém à nova Aurora
Flores canoras, pássaros fragrantes,
Nem seu âmbar respira a rica Flora.

Porém abrindo Sílvia os dois diamantes,
Tudo a Sílvia festeja, tudo adora
Aves cheirosas, flores ressonantes.

SONETO III

(Descreve um horroroso dia de trovões)
                    Na confusão do mais horrendo dia,
                    Painel da noite em tempestade brava,
                    O fogo com o ar se embaraçava
                    Da terra e água o ser se confundia.

                    Bramava o mar, o vento embravecia
                    Em noite o dia enfim se equivocava,
                    E com estrondo horrível, que assombrava,
                    A terra se abalava e estremecia.

                    Lá desde o alto aos côncavos rochedos,
                    Cá desde o centro aos altos obeliscos
                    Houve temor nas nuvens, e penedos.

                    Pois dava o Céu ameaçando riscos
                    Com assombros, com pasmos, e com medos
                    Relâmpagos, trovões, raios, coriscos

SONETO IV

(Continua o poeta em louvor a soledade vituperando a corte)

                    Ditoso aquele, e bem-aventurado,
                    Que longe, e apartado das demandas,
                    Não vê nos tribunais as apelandas
                    Que à vida dão fastio, e dão enfado.

                    Ditoso, quem povoa o despovoado,
                    E dormindo o seu sono entre as holandas
                    Acorda ao doce som, e às vozes brandas
                    Do tenro passarinho enamorado.

                    Se estando eu lá na Corte tão seguro
                    Do néscio impertinente, que porfia,
                    A deixei por um mal, que era futuro;

                    Como estaria vendo na Bahia,
                    Que das Cortes do mundo é vil monturo,
                    O roubo, a injustiça, a tirania?

SONETO V

(Conselhos a qualquer tolo para parecer fidalgo, rico e discreto)

                    Bote a sua casaca de veludo,
                    E seja capitão sequer dois dias,   
                    Converse à porta de Domingos Dias,   
                    Que pega fidalguia mais que tudo.   

                    Seja um magano, um pícaro, um cornudo,
                    Vá a palácio, e após das cortesias   
                    Perca quanto ganhar nas mercancias,
                    E em que perca o alheio, esteja mudo.   

                    Sempre se ande na caça e montaria,   
                    Dê nova solução, novo epíteto,   
                    E diga-o, sem propósito, à porfia;   

                    Quem em dizendo: "facção, pretexto, efecto".
                    Será no entendimento da Bahia
                    Mui fidalgo, mui rico, e mui discreto.

SONETO VI

(Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia)

                    A cada canto um grande conselheiro,
                    Que nos quer governar cabana e vinha;
                    Não sabem governar sua cozinha,
                    E podem governar o mundo inteiro.

                    Em cada porta um bem freqüente olheiro,
                    Que a vida do vizinho e da vizinha
                    Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
                    Para o levar à praça e ao terreiro.

                    Muitos mulatos desavergonhados,
                    Trazidos sob os pés os homens nobres,
                    Posta nas palmas toda a picardia,

                    Estupendas usuras nos mercados,
                    Todos os que não furtam muito pobres:
                    E eis aqui a cidade da Bahia.

SONETO VII

Um soneto começo em vosso gabo;
Contemos esta regra por primeira,
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo.

Na quinta torce agora a porca o rabo:
A sexta vá também desta maneira,
na sétima entro já com grã canseira,
E saio dos quartetos muito brabo.

Agora nos tercetos que direi?
Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais,
Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei.

Nesta vida um soneto já ditei,
Se desta agora escapo, nunca mais;
Louvado seja Deus, que o acabei.

SONETO VIII

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

SONETO IX

Anjo no nome, Angélica na cara
Isso é ser flor, e Anjo juntamente
Ser Angélica flor, e Anjo florente
Em quem, se não em vós se uniformara?

Quem veria uma flor, que a não cortara
De verde pé, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tão luzente
Que por seu Deus, o não idolatrara?

Se como Anjo sois dos meus altares
Fôreis o meu custódio, e minha guarda
Livrara eu de diabólicos azares

Mas vejo, que tão bela, e tão galharda
Posto que os Anjos nunca dão pesares
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda

Fonte:
www.sonetos.com.br

Fanny Abramovich (Perdidos na Excursão)

Marquito desabou na poltrona. Completamente moído. Exausto! Agarrou o telefone, ligou pro Tiagão. Dos dois lados do fio, só queixas e reclamações. E altos xingos.

Bocas raivosas, por nada ter dado certo. Só confusão durante a excursão inteira.

Marquito relembrou a saída orgulhosa. Um final de semana ecológico-aventureiro. Certeza de voltar triunfantes! Muito pra contar e pra exibir. Turma animada e a fim de descobrir o esconderijo-paraíso dos micos-leões-dourados.

Tiagão ouvia rindo. Logo enfezou. Lembrou da primeira desviada. Um caminho lindo que deu numa cachoeira despencante. Puladas, procuras, nadadas, volta estropiada pra estrada arrebentada... Depois, só mancadas...

A chuva desviante da trilha. A paralisada hesitante se era pra virar à direita ou à esquerda.

Os em-frente-marche dando em barreiras fechadas, sem brecha pra passagem. As voltas, semivoltas, voltas inteiras. A parada pra comilança quase dentro duma fazenda murada e o dono surgindo com as armas em punho... Horror total!!

Marquito parou de sorrir. Partiu pros desabafos gritados. A armação das tendas no escuro e a descoberta rápida de o lindo lugar estar cercado de cobras... Berros desesperados!

O dar de cara com uma margem do rio sem nenhuma ponte para cruzar... O medaço de se afogar atravessando a pé.

Tiagão espirrou. Gripou bravo. Desligou avisando que foi a primeira e última excursão ecológica. Pra ele, fim de papo. Marquito resmungou enfezado. Jurou jurado. Outra, só sabendo antes por onde ia pisar. Chegava de perder tempo, perder a paciência, perder o ânimo.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Hélio Ziskind (Na Casa do Cozinheiro)

Panelinha
Panelão
Panelinha
Panelão
Panelinha pim pim
Panelão pão pão pão
Vivo entre panelas
Pim piririm pampam
Frigideiras e tigelas
Pão pão pim
Quem sou?
Quem sou?
O cozinheiro, acertou!
Minha casa é muito musical
Panelinha agudinha
Pim pim pim piririm pim pim
Panelão gravão
Pão pão pão pararão pão pão
Minha filha maior
Toca o instrumento maior
Enquanto o feijão cozinha
Minha filha menor
Toca um instrumento menor
Lá no andar de cima
Pepino com caramelo
Violino com violoncelo
Pepino com caramelo
Violino com violoncelo
Uôu uôu
A panela de pressão assobiou!
Pss psss
Pss psss
Panelinha linha
Panelão nelão
Panelinha linha
Panelão
Violino lino lino
Violoncelo celo celo
Violino lino lino
Violoncelo celo celo

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

José de Alencar (O Ermitão da Glória) Parte 9, final

XVII

O ERMITÃO


Dias depois do funesto acontecimento, a escuna Maria da Glória estava fundeada no seio que forma a praia junto às abas do Morro do Catete.

Era o mesmo lugar onde vinte anos antes se fazia a festa do batismo, no dia em que se dera o caso estranho do desaparecimento da imagem da Senhora da Glória, padroeira da escuna.

Na praia estava um ermitão vestido de esclavina, seguindo com o olhar o batel que largara do navio e singrava para terra.

Abicando à praia saltou dele Antônio de Caminha, e foi direito ao ermitão a quem entregou a imagem de Nossa Senhora da Glória.

Recebeu-a o ermitão de joelhos e erguendo-se disse para o mancebo:

- Ide com Deus, Antônio de Caminha, e perdoai-me todo o mal que vos fiz. A escuna e quanto foi meu vos pertence: sede feliz.

- E vós, Senhor Aires de Lucena?

- Esse acabou; o que vedes não é mais que um ermitão, e não carece de nome, pois nada mais quer e nem espera dos homens.

Abraçou Aires ao mancebo, e afastou-se galgando a íngreme encosta do outeiro, com a imagem de Nossa Senhora da Glória cingida ao seio.

Na tarde daquele dia a escuna desfraldou as velas e deixou o porto do Rio de Janeiro onde nunca mais se ouviu falar dela, sendo crença geral que andava outra vez encantada pelo mar oceano, com seu Capitão Aires de Lucena e toda a maruja.

Poucos anos depois dos sucessos que aí ficam relatados, começou a correr pela cidade a nova de um ermitão que aparecera no Outeiro do Catete, e fazia ali vida de solitário, habitando uma gruta no meio das brenhas, e fugindo por todos os modos à comunicação com o mundo.

Contava-se que, alta noite, rompia do seio da mata um murmúrio noturno, como o do vento nos palmares; mas que aplicando-se bem o ouvido se conhecia ser o canto do terço ou da ladainha. Esse fato, referiam-no sobretudo os pescadores, que ao saírem ao mar, tinham muitas vezes, quando a brisa estava serena e de feição, ouvido aquela reza misteriosa.

Um dia, dous moços caçadores galgando a íngreme encosta do outeiro, a custo chegaram ao cimo, onde descobriram a gruta, que servia de refúgio ao ermitão. Este desaparecera mal os pressentiu; todavia puderam eles notar-lhe a nobre figura e aspecto venerável.

Trajava uma esclavina de burel pardo que lhe deixava ver os braços e artelhos. A longa barba grisalha lhe descia até o peito, misturada aos cabelos caídos sobre as espáduas e como ela hirtos, assanhados e cheios de maravalhas.

No momento em que o surpreenderam os dous caçadores, estava o ermitão de joelhos, diante de um nicho que ele próprio cavara na rocha viva, e no qual via-se a imagem de Nossa Senhora da Glória, alumiada por uma candeia de barro vermelho, grosseiramente fabricada.

Na gruta havia apenas uma bilha do mesmo barro e uma panela, na qual extraia o ermitão o azeite da mamona, que macerava entre dous seixos. A cama era o chão duro, e servia-lhe de travesseiro um toro de pau.

Estes contos feitos pelos dous moços caçadores excitaram ao último ponto a curiosidade de toda a gente de São Sebastião, e desde o dia seguinte muitos se botaram para o outeiro movidos pelo desejo de verificarem por si mesmos, com os próprios olhos, a verdade do que se dizia.

Frustrou-se-lhe porém o intento. Não lhes foi possível atinar com o caminho da gruta; e o que mais admirava, até os dous caçadores que o tinham achado na véspera, estavam de todo o ponto desnorteados.

Ao cabo de grande porfia, descobriram que havia o caminho desaparecido pelo desmoronamento de uma grande rocha, a qual formava uma como ponte suspensa sobre o despenhadeiro da íngreme escarpa.

Acreditou o povo que só Nossa Senhora da Glória podia ter operado aquele milagre, pois não havia homem capaz de tamanho esforço, no pequeno espaço de horas que decorrera depois da primeira entrada dos caçadores.

Na opinião dos mestres beatos, a Virgem Santíssima queria significar por aquele modo sua vontade de ser adorada em segredo e longe das vistas pelo ermitão; o que era, acrescentavam, um sinal de graça mui particular, que só obtinham raros e afortunados devotos.

Desde então ninguém mais se animou a subir ao píncaro do outeiro, onde estava o nicho de Nossa Senhora da Glória; porém vinham muitos fiéis até o lugar onde se fendera a rocha, para verem os sinais vivos do milagre.

Foi por esse tempo também que o povo começou a designar o Outeiro do Catete, pela invocação de Nossa Senhora da Glória; donde veio o nome que tem hoje esse bairro da cidade.

XVIII

O MENDIGO


Estava a findar o ano de 1659.

Ainda vivia Duarte de Morais, então com sessenta e cinco anos, mas viúvo da boa Úrsula que o deixara havia dez para ir esperá-lo no céu.

Era por tarde, tarde cálida, mas formosa, como são as do Rio de Janeiro durante o verão.

O velho estava sentado em um banco à porta de casa, tomando o fresco, e cismando nos tempos idos, quando se não distraia em ver os meninos que folgavam pela rua.

Um mendigo, coberto de andrajos e arrimado a uma muleta, aproximou-se e parando em frente ao velho esteve por muito tempo a olhá-lo, e à casa, que aliás não merecia tamanha atenção.

Notou afinal o velho Duarte aquela insistência, e remexendo no largo bolso da véstia, lá sacou um real, com que acenou ao mendigo.

Este com um riso pungente, que lhe contraiu as feições já decompostas, achegou-se para receber a esmola. Apertando convulso a mão do velho, beijou-a com expressão de humildade e respeito.

Não se demorou porém, arrancando-se à comoção e afastou-se rápido. Sentiu o velho Duarte ao recolher a mão que ela ficara úmida do pranto do mendigo. Seus olhos cansados da velhice acompanharam o vulto coberto de andrajos; e já este havia desaparecido, que ainda eles estendiam pelo espaço a sua muda interrogação.

Quem havia no mundo ainda para derramar aquele pranto de ternura ao encontrá-lo a ele, pobre. peregrino da vida que chegava só ao termo da romagem?

- Antônio de Caminha! murmuraram os frouxos lábios do velho.

Não se enganara Duarte de Morais. Era de feito Antônio de Caminha, quem ele entrevira mais com o coração do que com a vista já turva, entre a barba esquálida e as rugas precoces do rosto macilento do mendigo.

Que desgraças tinham abatido o gentil cavalheiro nos anos decorridos?

Partido do porto do Rio de Janeiro, Antônio de Caminha aproou para Lisboa, onde contava gozar das riquezas, que lhe havia legado Aires de Lucena, quando morrera para o mundo.

Caminha era dessa têmpera de homens, que não possuindo em si bastante fortaleza de ânimo para resistir ao infortúnio, buscam atordoar-se.

O golpe que sofrera com a perda de Maria da Glória o lançou na vida de prazeres e dissipações, qual outrora a vivera Aires de Lucena, se não era ainda mais desregrada.

Chegado à Bahia,. por onde fez escala, foi Antônio de Caminha arrastado pelo fausto que havia na então capital do Estado do Brasil, e de que nos deixou notícia o cronista Gabriel Soares.

A escuna, outrora consagrada à Virgem Puríssima, transformou-se em uma taverna de bródios e convívios. No tombadilho onde os rudes marinheiros ajoelhavam para invocar a proteção da sua Gloriosa Padroeira, não se via agora senão a mesa dos banquetes, nem se escutavam mais que falas de amor e bocejos de ébrios.

A dama, em tenção de quem se davam esses festins, era uma cortesã da cidade do Salvador, tão notável pela formosura, como pelos escândalos com que afrontava a moral e a igreja.

Um dia teve a pecadora a fantasia de trocar o nome de Maria da Glória que tinha a escuna, pelo de Maria dos Prazeres que ela trouxera da pia, e tão próprio lhe saíra.

Com o espírito anuviado pelos vapores do vinho, não teve Antônio de Caminha força, nem vontade de resistir ao requebro d'olhos que lançou-lhe a dama.

Bruno, o velho Bruno, indignou-se quando soube disso, que para ele era uma profanação. À sua voz severa, os marujos sentiram-se abalados; mas o capitão afogou-lhes os escrúpulos em novas libações. Essas almas rudes e virís, já o vício as tinha enervado.

Naquela mesma tarde consumou-se a profanação. A escuna recebeu o nome da cortesã; e o velho, da amurada onde assistira à cerimônia, arrojou-se ao mar, lançando ao navio esta praga:

- A Senhora da Glória te castigue, e aqueles que te fizeram alcouce de barregãs.

XIX

A PENITÊNCIA


Antes de findar a semana largou a escuna Maria dos Prazeres do porto do Salvador, com o dia sereno e mar de bonança, por uma formosa manhã de abril.

Tempo mais de feição para a partida não o podiam desejar os marujos; e todavia despediam-se eles tristes e soturnos da linda cidade do Salvador, e suas formosas colinas.

Ao suspender do ferro partira-se a amarra, deixando a âncora no fundo, o que era mau agouro para a viagem. Mas Antônio de Caminha riu-se do terror de sua gente, e meteu o caso à bulha.

- Isto quer dizer que havemos de tornar breve a esta boa terra, pois cá nos fica a âncora do navio, e a de nós outros.

Singrava a escuna dias depois com todo o pano, cutelos e varredouras. Estava o sol a pino; os marujos dormitavam abrigados pela sombra das velas.

À proa assomava dentre as ondas um rochedo que servia de pouso a grande quantidade de alcatrazes ou corvos do mar, cujos pias lúgubres ululavam pelas solidões do oceano.

Era a ilha de Fernando de Noronha.

Ao passar fronteira a escuna, caiu um pegão de vento, que arrebatou o navio e o despedaçou contra os rochedos, como se fora uma concha da praia.

Antônio de Caminha que sesteava em seu camarim, depois de muitas horas, ao dar acordo de si, achou-se estendido no meio de uma restinga sem atinar em como fora para ali transportado, e o que era feito de seu navio.

Só ao alvorecer, quando o mar rejeitou os destroços da escuna e os corpos de seus companheiros, compreendeu ele o que era passado.

Muitos anos viveu o mancebo ali, naquele rochedo deserto, nutrindo-se de mariscos e ovos de alcatrazes, e habitando uma gruta, que usurpara a esses companheiros de seu exílio.

Às vezes branquejava uma vela no horizonte; mas debalde fazia ele sinais, e lançava não gritos já, mas rugidos de desespero. O navio singrava além e perdia-se na imensidade dos mares.

Afinal o recolheu um bergantim que tornava ao reino. Eram passados anos, dos quais perdera a conta. Ninguém já se lembrava dele.

Várias vezes, tentou Caminha a fortuna, que se de todas lhe sorriu, foi só para mais cruel tornar-lhe a malogro das esperanças. Quando ia medrando, e a vida se embelecia aos raios da felicidade, vinha o sopro da fatalidade que de novo o abatia.

Mudava de profissão, mas não mudava de sorte. Afinal cansou na luta, resignando-se a viver da caridade pública, e a morrer quando esta o desamparasse.

Um pensamento porém o dominava, que o trazia constantemente à ribeira, onde suplicava a todos os marítimos que passavam, a esmola de levá-lo ao Rio de Janeiro.

Achou enfim quem dele se comiserasse; e ao cabo de bem anos aportara a São Sebastião. Chegara naquela hora e atravessava a cidade, quando viu o tio à porta da casa.

Deixando o velho Duarte, seguiu além pelo Boqueirão da Carioca, e foi até a abra que ficava nas fraldas do Outeiro do Catete, no mesmo ponto em que trinta anos antes se despedira de Aires de Lucena.

Galgou a encosta pelo trilho que então vira tomar o corsário, e achou-se no tope do outeiro. Aí o surpreendeu um gemido que saía da próxima gruta.

Penetrou o mendigo na caverna, e viu prostrado por terra o corpo imóvel de um ermitão. Ao ruído de seus passas, soergueu este as pálpebras, e seus olhas baços se iluminaram.

A custo levantou a mão apontando para a imagem de Nossa Senhora da Glória, posta em seu nicho à entrada da gruta; e cerrou de novo os olhos.

Já não era deste mundo.

EPÍLOGO

Antônio de Caminha aceitou o legado de Aires de Lucena. Vestiu a esclavina do finado ermitão, e tomou conta da gruta onde aquele vivera tantos anos.

Viera àquele sítio como em santa romaria para obter perdão do agravo que fizera à imagem de Nossa Senhora da Glória, e chegara justamente quando expirava o ermitão que a servia.

Resolveu pois consagrar o resto de sua vida a expiar nessa devoção a sua culpa; e todos os anos no dia da Assunção, levantava uma capela volante, onde celebrava-se a glória da Virgem Puríssima.

Toda a gente de São Sebastião e muita de fora ia em ramagem ao outeiro levar as suas promessas e esmolas, com as quais pôde Antônio de Caminha construir em 1671 uma tosca ermida de taipa, no mesmo sítio onde está a igreja.

Com o andar dos tempos arruinou-se a ermida, sobretudo depois que, entrado pelos anos, rendeu alma ao Criador o ermitão que a tinha edificado.

Antônio de Caminha finou-se em cheiro de santidade, e foi a seu rogo sepultado junto do primeiro ermitão do outeiro, cujo segredo morreu com ele.

Mais tarde, já no século passado, quando a grande mata do Catete foi roteada e o povoado estendeu-se pelas aprazíveis encostas, houve ali uma chácara, cujo terreno abrangia o outeiro e suas cercanias.

Tendo-se formado uma irmandade para a veneração de Nossa Senhora da Glória, que tantos milagres fazia, os donos da chácara do Catete cederam o outeiro para a edificação de uma igreja decente e seu patrimônio.

Foi então que se tratou de construir o templo que atualmente existe, ao qual se deu começo em 1714.

FIM

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Carlos Drummond de Andrade (Adeus a Sete Quedas)

 Em 1982, às vésperas dos 80 anos, o poeta expressa sua inconformidade com a destruição do Salto de Sete Quedas, um patrimônio natural do Brasil e da humanidade.

 Na edição de 9 de setembro, quando afinal se anunciava o fechamento das comportas para a criação do lago da hidrelétrica de Itaipu, Drummond publicou este poema no Jornal do Brasil. Em letras grandes, os versos ocuparam uma página inteira, a capa do Caderno B.

 O sentimento ecológico do poeta reverberou em todo o país. Um mês depois, ele voltaria à carga, com a crônica "Sete Quedas poderia ser salva" (JB, 07/10/1982). Nesse texto, Drummond transcreve una carta do engenheiro Octavio Marcondes Ferraz — o projetista da hidrelétrica de Paulo Afonso. A carta fora enviada ao poeta exatamente a propósito do poema "Adeus a Sete Quedas".

 No final, diz Drummond, que Sete Quedas vai passar às novas gerações apenas como uma pálida notícia, um cartão postal de longínquo passado. "Sete quedas por nós passaram,/ e não soubemos, ah, não soubemos amá-las".   
-
Sete quedas por mim passaram,
 e todas sete se esvaíram.
 Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele
 a memória dos índios, pulverizada,
 já não desperta o mínimo arrepio.
 Aos mortos espanhóis, aos mortos bandeirantes,
 aos apagados fogos
 de Ciudad Real de Guaira vão juntar-se
 os sete fantasmas das águas assassinadas
 por mão do homem, dono do planeta.

 Aqui outrora retumbaram vozes
 da natureza imaginosa, fértil
 em teatrais encenações de sonhos
 aos homens ofertadas sem contrato.
 Uma beleza-em-si, fantástico desenho
 corporizado em cachões e bulcões de aéreo contorno
 mostrava-se, despia-se, doava-se
 em livre coito à humana vista extasiada.
 Toda a arquitetura, toda a engenharia
 de remotos egípcios e assírios
 em vão ousaria criar tal monumento.

 E desfaz-se
 por ingrata intervenção de tecnocratas.
 Aqui sete visões, sete esculturas
 de líquido perfil
 dissolvem-se entre cálculos computadorizados
 de um país que vai deixando de ser humano
 para tornar-se empresa gélida, mais nada.

 Faz-se do movimento uma represa,
 da agitação faz-se um silêncio
 empresarial, de hidrelétrico projeto.
 Vamos oferecer todo o conforto
 que luz e força tarifadas geram
 à custa de outro bem que não tem preço
 nem resgate, empobrecendo a vida
 na feroz ilusão de enriquecê-la.
 Sete boiadas de água, sete touros brancos,
 de bilhões de touros brancos integrados,
 afundam-se em lagoa, e no vazio
 que forma alguma ocupará, que resta
 senão da natureza a dor sem gesto,
 a calada censura
 e a maldição que o tempo irá trazendo?

 Vinde povos estranhos, vinde irmãos
 brasileiros de todos os semblantes,
 vinde ver e guardar
 não mais a obra de arte natural
 hoje cartão-postal a cores, melancólico,
 mas seu espectro ainda rorejante
 de irisadas pérolas de espuma e raiva,
 passando, circunvoando,
 entre pontes pênseis destruídas
 e o inútil pranto das coisas,
 sem acordar nenhum remorso,
 nenhuma culpa ardente e confessada.
 (“Assumimos a responsabilidade!
 Estamos construindo o Brasil grande!”)
 E patati patati patatá...

 Sete quedas por nós passaram,
 e não soubemos, ah, não soubemos amá-las,
 e todas sete foram mortas,
 e todas sete somem no ar,
 sete fantasmas, sete crimes
 dos vivos golpeando a vida
que nunca mais renascerá.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. In Jornal do Brasil, Caderno B.  09/09/1982

José de Alencar (O Ermitão da Glória) Parte 8

XV

O NOIVO


Em um mês, que tanto fazia desde a volta de Aires, não lhe dissera Maria da Glória uma palavra sequer acerca da longa ausência.

- Tão alheio lhe sou, que nem se apercebeu do ano que passei longe dela. De seu lado também não tocava o cavalheiro nesse incidente de sua vida1 que desejava esquecer. Quando Duarte de Morais insistia com ele para saber a razão por que se partira tão inesperadamente, e por tanto tempo sem dar aviso aos amigos, o corsário esquivava-se à explicação e apenas respondia:

- Tive notícia do inimigo e fui-me sem detença. Deus Nosso Senhor ainda permitiu que tornasse ao cabo de um ano, e eu lhe rendo graças.

Convenceram-se quantos o ouviam falar assim, que havia um mistério na ausência do cavalheiro; e o povo miúdo cada vez mais persistia na crença de que a escuna estivera encantada todo aquele tempo.

O primeiro cuidado de Aires, logo depois de sua chegada, foi ir com toda a sua maruja levar ao mosteiro de São Bento o preço de tudo quanto haviam capturado, para ser aplicado à festa e ornato da capela de Nossa Senhora da Glória.

Acabado assim de cumprir o seu voto e a penitência a que se tinha sujeitado, não pensou Aires senão em viver como dantes para Maria da Glória, bebendo a graça de seu formoso semblante.

Mas não tornaram nunca mais os dias abençoados do íntimo contentamento em que tinham vivido outrora. Maria da Glória mostrava a mesma indiferença pelo que passava em torno dela; parecia uma criatura já despedida deste vale de lágrimas, e absorta na visão do outro mundo.

Dizia Úrsula que essa abstração de Maria da Glória lhe ficara da doença, e só havia de passar em casando; pois não há para curar as meninas solteiras como os banhos da igreja.

Notara porém Aires que especialmente com ele tornava-se a menina mais arredia e concentrada; e vendo a diferença de seu modo para com Antônio de Caminha, de todo convenceu-se que a menina gostava do primo, e estava-se finando pelo receio de que ele, Aires, pusesse obstáculo a seu mútuo afeto.

Dias depois que essa idéia lhe entrou no espírito, achando-se em casa de Duarte de Morais, sucedeu que Maria da Glória de repente debulhou-se em pranto, e eram tantas as lágrimas que lhe corriam pelas faces como fios de aljôfares.

Úrsula que a viu nesse estado, exclamou:

- Que tens tu, menina, para chorar assim?

- Um peso do coração!... Chorando passa.

E a menina saiu a soluçar.

- Tudo isso é espasmo! observou Úrsula. Se não a casarem quanto antes, vai a mais, a mais, e talvez quando lhe quiserem acudir, não tenha cura.

- Já que se oferece a ocasião, carecemos tratar deste particular, Aires, em que desde muitos dias atrás ando para tocar-vos.

Perturbou-se Aires a ponto que faltou-lhe a voz para retorquir; foi a custo e com esforço que, vencida a primeira comoção, pôde responder.

- Estou ao vosso dispor, Duarte.

- É tempo de saberdes que Antônio de Caminha quer bem a Maria da Glória e já nos confessou o desejo que tem de a receber por esposa. Também a pediu o Fajardo, sabeis, aquele vosso camarada; mas esse é muito velho para ela; podia ser seu pai.

- Tem a minha idade, com diferença de meses, observou Aires com uma expressão resignada.

- Assentei não decidir sobre isso em vossa ausência, pois embora vos considerássemos perdido, não tínhamos essa certeza; e agora que nos fostes felizmente restituído, a vós compete decidir da sorte daquela que tudo vos deve.

- E Maria da Glória?... perguntou Aires já senhor de si. Retribui ela o afeto de Antônio de Caminha; e o quer por marido?

- Sou capaz de jurar, acudiu Úrsula.

- Não consenti que se lhe falasse nisto, sem primeiro sabermos se era de vosso agrado essa união. Mas ela ai está; podemos interrogá-la se o quereis, e será o melhor.

- Avisais bem, Duarte.

- Ide, Úrsula, e trazei-nos Maria da Glória; mas não careceis de preveni-la.

Com pouco voltou a mulher de Duarte acompanhada pela menina.

- Maria da Glória, disse Duarte, vosso primo Antônio de Caminha pediu vossa mão, e nós desejamos saber se é de vosso agrado casar-vos com ele.

- Já não sou deste mundo, para casar-me nele, respondeu a menina.

- Deixai-vos de idéias tristes. Haveis de recobrar a saúde; e com o casamento voltará a alegria que perdestes!

- Essa mais nunca!

- Enfim decidi de uma vez se quereis Antônio de Caminha por marido, pois melhor não creio que possais achar.

- É do agrado de todos, este casamento? perguntou Maria da Glória fitando os olhos em Aires de Lucena.

- De todos, começando por aquele que tem sido vosso protetor, e que tanto, se não mais do que vossos pais, tinha o direito de escolher-vos um esposo.

- Pois que foi escolhido por vós, Senhor Aires, aceito.

- O que eu ardentemente desejo, Maria da Glória, é que ele vos faça feliz.

Um triste sorriso desfolhou-se pelos lábios da menina.

Aires retirou-se arrebatado, porque sentiu romper-lhe do seio o soluço, por tanto tempo recalcado.

XVI

A BODA


Eram cerca de 4 horas de uma formosa tarde de maio.

Abriam-se de par em par as portas da Matriz, no alto do Castelo, o que anunciava a celebração de um ato religioso.

Já havia no adro de São Sebastião numeroso concurso de povo, que ali viera trazido pela curiosidade de assistir a cerimônia.

À parte, em um dos cantos da igreja, recostado ao ângulo, via-se um velho marujo que não era outro senão o Bruno.

O contramestre não estava nesse dia de boa sombra; tinha um semblante carrancudo, e às vezes fechando a mão calejada ferrava um murro em cheio na carapuça.

Quando seus olhos, espraiando-se pelo mar, encontravam a escuna, que de âncora a pique balouçava-se sobre as ondas, prestes a fazer-se de vela, o velho marujo soltava um suspiro ruidoso.

Depois voltava-se para a Ladeira da Misericórdia, como se contasse ver chegar desse lado alguma pessoa, por quem estivesse esperando.

Não se passou muito, que não apontasse no alto da subida, um préstito numeroso, o qual seguiu direito á portaria da Matriz.

Vinha no centro Maria da Glória, vestida de noiva, e cercada por um bando de virgens, todas de palma e capela, que iam levar ao altar a sua companheira.

Seguiam-se Úrsula, as madrinhas e outras damas convidadas para a boda, a qual era sem dúvida das de maior estrondo que se tinham celebrado até então na cidade de São Sebastião.

Aires de Lucena assim o determinara, e de seu bolso concorreu com o cabedal necessário para a maior pompa da cerimônia.

Logo após as damas, caminhava o noivo, Antônio de Caminha, entre os dois padrinhos, e no meio de grande cortejo de convidados, dirigido por Duarte de Morais e Aires de Lucena.

Ao entrar a portada da igreja, Aires destacou-se um momento para falar a Bruno, que avistando-o, viera a ele:

- Aprestou-se tudo?

- Tudo, meu capitão.

- Ainda bem; daqui a uma hora partiremos, e para não mais voltar, Bruno.

Ditas estas palavras, Aires entrou na igreja. O velho marujo que adivinhara quanto sofria naquele momento o seu capitão, ferrou outro murro na carapuça, e tragou o soluço que lhe estava estortegando na garganta.

Dentro da Matriz já os noivos tinham sido conduzidos ao altar, onde os esperava o vigário paramentado para celebrar o casamento, cuja cerimônia logo começou.

O corsário, de joelhos em um dos ângulos mais obscuros do corpo da igreja, assistia de longe ao ato; mas de momento a momento acurvava a fronte sobre as mãos esclavinhadas, come absorvido em fervente oração.

Não rezava, não; bem o quisera; mas um tropel de pensamentos se agitava em seu espírito abatido, que o arrastava ao passado, e o fazia reviver os anos devolvidos.

Repassava na mente seu viver de outrora, e acreditava que Deus lhe enviara do céu um anjo da guarda para o salvar. No caminho da perdição, ele o encontrara sob a forma de uma gentil criança; e desde esse dia sentira despertarem em sua alma os estímulos generosos, que o vício nela havia sopitado.

Mas por que, tendo-lhe enviado essa celeste mensageira, lha negara Deus quando a quis fazer a companheira de sua vida, e unir ao dele o seu destino?

Aí lembrou-se de que já uma vez Deus a quisera chamar ao céu, e só pela poderosa intercessão de Nossa Senhora da Glória a deixara viver, mas para outro.

- Antes não houvésseis atendido ao meu rogo, Virgem Santíssima! balbuciou Aires.

Nesse instante Maria da Glória, de joelhos aos pés do sacerdote, voltou o rosto com súbito movimento e fitou no cavalheiro estranho olhar, que a todos surpreendeu.

Era o momento em que o padre dirigia a interrogação do ritual; e Aires, prestes a ouvir o sim fatal, balbuciava ainda:

- Morta, ao menos ela não pertenceria a outro.

Um grito repercutiu pelo âmbito da igreja. A noiva caíra desmaiada aos pés do altar, e parecia adormecida.

Prestaram-lhe todos os socorros; mas embalde, Maria da Glória rendera ao Criador sua alma pura, e subira ao céu sem trocar a sua palma de virgem pela grinalda de noiva.

O que tinha cortado o estame da suave bonina? Fora o amor infeliz que ela ocultava no seio, ou a Virgem Santíssima a rogo de Aires?

São impenetráveis os divinos mistérios, mas podia nunca a filha ser a esposa feliz daquele que lhe roubara o pai, embora tudo fizesse junto depois para substitui-lo?

As galas da boda se trocaram pela pompa fúnebre; e á noite, no corpo da igreja, ao lado da essa dourada via-se ajoelhado e imóvel um homem que ali velou naquela posição, até o outro dia.

Era Aires de Lucena.
===========
continua...