quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Santos Dumont (O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos) Parte 1

Estas notas são dedicadas aos meus patrícios que desejarem ver o nosso céu povoado pelos Pássaros do Progresso

Nova York, 15 de Maio de 1918.

Meu caro Sr. Santos-Dumont

O Aero Club da América envia-nos uma mensagem de congratulações pela inauguração do primeiro Serviço Postal Aéreo neste País. Confiamos em que a Linha Postal Aérea inaugurada entre Nova York, Filadélfia e Washington, que vos leva esta mensagem, será um primeiro passo para uma rede de linhas postais aéreas que cobrirá o mundo e será fator predominante na obra de reconstrução que se seguirá à guerra, quando os exércitos aliados houverem alcançado a vitória gloriosa e final pela causa da liberdade universal.

Ao rápido desenvolvimento da navegação aérea no continente seguir-se-ão, em breve, extensos vôos sobre os mares, e teremos grandes aeroplanos cruzando o Atlântico, os quais facilitarão não só o estabelecimento da linha postal aérea transatlântica, como a entrega de aeroplanos dos Estados Unidos aos nossos aliados.

O Aero Club da América, que tem propugnado pelo desenvolvimento da aeronáutica desde os vossos primeiros ensaios, ativado e auxiliado por todos os meios a criação do serviço postal aéreo desde 1911, sente-se altamente compensado com o estabelecimento desse novo serviço através dos ares.

Alan R. Hawlei (Presidente)


Esta carta veio encher de legítima alegria o meu coração que, há já quatro anos, sofre com as notícias da mortandade terrível causada, na Europa, pela aeronáutica. Nós, os fundadores da locomoção aérea no fim do século passado, tínhamos sonhado um futuroso caminho de glória pacífica para esta filha dos nossos desvelos. Lembro-me perfeitamente que naquele fim de século e nos primeiros anos do atual, no Aero Club de França que foi, pode-se dizer "O ninho da aeronáutica" e que era o ponto de reunião de todos os inventores que se ocupavam desta ciência, pouco se falou em guerra; prevíamos que os aeronautas poderiam, talvez, no futuro, servir de esclarecedores para os Estados Maiores dos exércitos, nunca, porém, nos veio à idéia que eles pudessem desempenhar funções destruidoras nos combates. Bastante conheci todos esses sonhadores, centenas dos quais deram a vida pela nossa idéia, para poder agora afirmar que jamais nos passou pela mente, pudessem, no futuro, os nossos sucessores, ser "Mandados" a atacar cidades indefesas, cheias de crianças, mulheres e velhos e, o que é mais, atacar hospitais onde a abnegação e o humanitarismo dos rivais reúne, sob o mesmo teto e o mesmo carinho, os feridos e os moribundos dos dois campos. Pois bem, isso se repete há quatro longos anos, e quem o "manda fazer"? — O Kaiser!

Façamos, pois, votos pela vitória dos aliados; triunfem as idéias do Presidente Wilson e se extinga na terra o militarismo prussiano. Assim como com a Polônia atual a sociedade suprimiu os cidadãos armados, suprima as matanças da guerra o desejado Exército das Nações.

Confiante nesse futuro, reconfortou-me a mensagem do presidente do Aero Club da América, em que ouvi falar, de novo, da aeronáutica para fins pacíficos, realização de minhas íntimas ambições, sonho daqueles inventores que só viram no aeroplano um colaborador da felicidade dos homens.
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Creio, deveria ser chamada "época heróica da aeronáutica" a que compreende os fins do século passado e os primeiros anos do atual. Nela brilham os mais audaciosos arrojos dos inventores, que quase se esqueciam da vida, por muito se lembrarem de seu sonho.

Enchem-nos, hoje, do mais justo entusiasmo os atos de bravura dos aviadores do "front", como nos encherá de orgulho a notícia da travessia do Atlântico, que prevejo próxima.

Essa coragem, porém, que os consagra como heróis, creio, não é maior que a dos inventores, primeiros pássaros humanos, que, após heróica pertinácia em estudos de laboratório, se arrojaram a experimentar máquinas frágeis, primitivas, perigosas. Foram centenas as vítimas dessa audácia nobre, que lutaram com mil dificuldades, sempre recebidos como "malucos", e que não conseguiram ver o triunfo dos seus sonhos, mas para cuja realização colaboraram com o seu sacrifício, com a sua vida.

Não fosse a audácia, digna de todas as nossas homenagens, dos Capitães Ferber, Lilienthal, Pilcher, Barão de Bradsky, Augusto Severo, Sachet, Charles, Morin, Delagrange, irmãos Nieuport, Chavez e tantos outros — verdadeiros mártires da ciência — e hoje não assistiríamos, talvez, a esse progresso maravilhoso da aeronáutica, conseguido, todo inteiro, à custa dessas vidas, de cujo sacrifício ficava sempre uma lição.

Penso, a maior parte dos meus leitores serão jovens nascidos depois dessa época, que já se vai tanto ensombreando na memória: suplico-lhes, pois, não se esquecerem destes nomes. A eles cabe, em grande parte, o mérito do que hoje se faz nos ares...

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A princípio tinha-se que lutar não só contra os elementos, mas também contra os preconceitos: a direção dos balões e, mais tarde, o vôo mecânico eram problemas "insolúveis".

Eu também tive a honra de trabalhar um pouco, ao lado destes bravos, porém o Todo Poderoso não quis que o meu nome figurasse junto aos deles. As primeiras lições que recebi de aeronáutica foram-me dadas pelo nosso grande visionário: Júlio Verne. De 1888, mais ou menos, a 1891, quando parti pela primeira vez para a Europa, li, com grande interesse, todos os livros desse grande vidente da locomoção aérea e submarina. Algumas vezes, no verdor dos meus anos, acreditei na possibilidade de realização do que contava o fértil e genial romancista; momentos após, porém, despertava-se, em mim, o espírito prático, que via o peso absurdo do motor a vapor, o mais poderoso e leve que eu tinha visto. Naquele tempo, só conhecia o existente em nossa fazenda, que era de um aspecto e peso fantásticos; assim o eram, também, os tratores que meu pai mandara vir da Inglaterra: puxavam duas carroças de café, mas pesavam muitas toneladas... Senti um bafejo de esperança quando meu pai me anunciou que ia construir um caminho de ferro para ligar a fazenda à estação da Companhia Mogiana; pensei que nestas locomotivas, que deviam ser pequenas, iria encontrar base para a minha máquina com que realizar as ficções de Júlio Verne. Tal não se deu; elas eram de aspecto ainda mais pesado. Fiquei, então, certo de que Júlio Verne era um grande romancista.
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Estava em Paris quando, na véspera de partir para o Brasil, fui, com meu pai, visitar uma exposição de máquinas no desaparecido "Palácio da Indústria". Qual não foi o meu espanto quando vi, pela primeira vez, um motor à petróleo, da força de um cavalo, muito compacto, e leve, em comparação aos que eu conhecia, e... funcionando! Parei diante dele como que pregado pelo destino. Estava completamente fascinado. Meu pai, distraído, continuou a andar até que, depois de alguns passos, dando pela minha falta, voltou, perguntou-me o que havia. Contei-lhe a minha admiração de ver funcionar aquele motor, e ele me respondeu: "por hoje basta". Aproveitando-me dessas palavras, pedi-lhe licença para fazer meus estudos em Paris. Continuamos o passeio, e meu pai, como distraído, não me respondeu.

Nessa mesma noite, no jantar de despedida, reunida a família, entre nós, dois primos de meu pai, franceses e seus antigos companheiros de escola, pediu-lhes ele que me protegessem, pois pretendia fazer-me voltar a Paris para acabar meus estudos. Nessa mesma noite corri vários livreiros; comprei todos os livros que encontrei sobre balões e viagens aéreas.
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Diante do motor a petróleo, tinha sentido a possibilidade de tornar reais as fantasias de Júlio Verne.

Ao motor a petróleo dei, mais tarde, todo inteiro, o meu êxito.

Tive a felicidade de ser o primeiro a emprega-lo nos ares.

Os meus antecessores nunca o usaram. Giffard adaptou o motor a vapor; Tissandier levou consigo um motor elétrico. A experiência demonstrou, mais tarde, que tinham seguido caminho errado.
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Uma manhã, em São Paulo, com grande surpresa minha, convidou-me meu pai a ir à cidade e, dirigindo-se a um cartório de tabelião, mandou lavrar escritura de minha emancipação. Tinha eu dezoito anos. De volta à casa, chamou-me ao escritório e disse-me: "Já lhe dei hoje a liberdade; aqui está mais este capital", e entregou-me títulos no valor de muitas centenas de contos. "Tenho ainda alguns anos de vida; quero ver como você se conduz: vai para Paris, o lugar mais perigoso para um rapaz. Vamos ver se você se faz um homem; prefiro que não se faça doutor; em Paris, com o auxílio de nossos primos, você procurará um especialista em física, química, mecânica, eletricidade, etc., estude essas matérias e não se esqueça que o futuro do mundo está na mecânica. Você não precisa pensar em ganhar a vida; eu lhe deixarei o necessário para viver..."
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Chegado a Paris, e com o auxílio dos primos, fui procurar um professor. Não poderia ter sido mais feliz; descobrimos o Sr. Garcia, respeitável preceptor, de origem espanhola, que sabia tudo. Com ele estudei por muitos anos.

Nos livros que comigo levara para o Brasil, li nomes de várias pessoas que faziam ascensões em balão, por ocasião de festas públicas. Eram as únicas que, então, se ocupavam da aeronáutica.

Sem nada dizer ao meu professor, nem aos meus primos, procurei no Anuário Bottin os nomes desses senhores, desejosos de fazer uma ascensão. Alguns já não se ocupavam mais do assunto, outros me apavoraram com os perigos de subir e com o exagero dos preços. Um, porém, houve que, após me informar de todos os meios, pediu-me mais de mil francos para levar-me consigo, devendo eu pagar, ainda, todos os estragos que fossem causados pelo balão na sua volta à terra.

Era ameaçadora a condição, pois esse senhor já uma vez tinha derrubado a chaminé de uma usina, outra vez, descera sobre a casa de um camponês e, incendiando-se o gás do balão, em contato com a chaminé, pusera fogo à casa...

Vieram-me à memória os conselhos de meu pai e os seus graves exemplos de sobriedade e economia. Ia eu gastar em algumas horas quase que a renda de um mês inteiro e, muito provavelmente, a renda de todo o ano!

Desanimei de fazer uma ascensão. Era muito complicado...
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Durante vários anos, estudei e viajei.

Segui com interesse, nos jornais ilustrados, a expedição de André ao Pólo Norte; em 1897, estava eu no Rio de Janeiro quando me chegou às mãos um livro em que se descrevia com todos os seus pormenores, o balão dessa expedição.

Continuava eu a trabalhar em segredo, sem coragem de pôr em prática as minhas idéias; tinha pouca vontade de arruinar-me. Esse livro, entretanto, do construtor Lachambre, esclareceu-me melhor e decidiu inabalavelmente minha resolução.

Parti para Paris...
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— Quero subir em balão. Quanto me pedem por isso?

— Temos justamente um pequeno balão no qual o levaremos por 250 frs.

— Há muito perigo?

— Nenhum.

— Em quanto ficarão os estragos da descida?

— Isso depende do aeronauta; meu sobrinho, aqui presente, M. Machuron, que o acompanhará, tem subido dúzias de vezes e nunca fez estrago algum. Em todo caso, haja o que houver, o Sr. não pagará nada mais que os duzentos e cinqüenta francos e dois bilhetes de caminho de ferro para a volta.

— Para amanhã de manhã o balão!...

Tinha chegado a vez...
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Fiquei estupefato diante do panorama de Paris visto de grande altura; nos arredores, campos cobertos de neve... Era inverno.

Durante toda a viagem acompanhei as manobras do piloto; compreendia perfeitamente a razão de tudo quanto ele fazia.

Pareceu-me que nasci mesmo para a aeronáutica. Tudo se me apresentava muito simples e muito fácil; não senti vertigem, nem medo.

E tinha subido...
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De volta, em caminho de ferro, pois descêramos longe, transmiti ao piloto o meu desejo de construir, para mim, um pequeno balão.

Tive como resposta que a fábrica a que ele pertencia, tinha, havia pouco, recebido amostras de seda do Japão de grande beleza e peso insignificante.

No dia seguinte estava eu no atelier dos construtores.

Apresentaram-me projetos, mostraram-me sedas... Propuseram-me fazer construir um balão de 250 metros cúbicos...

Tomei a palavra: — O Sr. disse-me ontem que o peso dessa seda, depois de envernizada, é de tantas gramas; o gás hidrogênio puro eleva tal peso; desejo uma barquinha minúscula e, pelo que vi ontem, um saco de lastro me será bastante para passar algumas horas no ar; eu peso 50 quilos; conclusão: — quero um balão de cem metros cúbicos.

Grande espanto!

Creio mesmo que pensaram que eu era doido.

Alguns meses depois, o "Brasil", com grande espanto de todos os entendidos, atravessava Paris, lindo na sua transparência, como uma grande bola de sabão.

As suas dimensões eram: diâmetro 6 metros, volume 113 metros cúbicos, a seda empregada (113 metros quadrados) pesava 3"500, envernizada e pronta, 14 quilos. A rede envolvente e cordas de suspensão pesavam 1.800 gramas. A barquinha, 6 quilos. O guide-rompe (corda de compensação), comprido de 6 metros, pesava 8 quilos, uma ancorazinha, 3 quilos.

Os meus cálculos tinham sido exatos: parti com mais de um saco de lastro.

Este minúsculo "Brasil" despertou grande curiosidade. Era tão pequeno que diziam que eu viajava com ele dentro da minha mala!

Nele e em outros, fiz, em vários meses, amiudadas viagens, em que ia penetrando na intimidade do segredo das manobras aéreas.
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Continua…

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

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