sábado, 16 de fevereiro de 2013

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia V)

DO VALE À MONTANHA

Do vale à montanha,
Da montanha ao monte, cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por casas, por prados,
Por Quinta e por fonte,
Caminhais aliados.

Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por penhascos pretos,
Atrás e defronte,
Caminhais secretos.

Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por quanto é sem fim,
Sem ninguém que o conte,
Caminhais em mim.

DURMO. SE SONHO, AO DESPERTAR NÃO SEI

Durmo.
Se sonho, ao despertar não sei
Que coisas eu sonhei.
Durmo.
Se durmo sem sonhar, desperto
Para um espaço aberto
Que não conheço, pois que despertei
Para o que inda não sei.
Melhor é nem sonhar nem não sonhar
E nunca despertar.

BRANDO O DIA, BRANDO O VENTO

É brando o dia, brando o vento
É brando o sol e brando o céu.
Assim fosse meu pensamento !
Assim fosse eu, assim fosse eu !

Mas entre mim e as brandas glórias
Deste céu limpo e este ar sem mim
Intervêm sonhos e memórias...
Ser eu assim ser eu assim !

Ah, o mundo é quanto nós trazemos.
Existe tudo porque existo.
Há porque vemos.
E tudo é isto, tudo é isto !

ELA CANTA, POBRE CEIFEIRA

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão !
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando !

Ah, poder ser tu, sendo eu !
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso !
Ó céu ! Ó campo ! Ó canção !
A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve !
Entrai por mim dentro ! 
Tornai
Minha alma a vossa sombra leve !
Depois, levando-me, passai !

ELA IA, TRANQÜILA PASTORINHA

Ela ia, tranqüila pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeição.
Segui-a, como um gesto de perdão,
O seu rebanho, a saudade minha...

"Em longes terras hás de ser rainha
Um dia lhe disseram, mas em vão...
Seu vulto perde-se na escuridão...
Só sua sombra ante meus pés caminha...

Deus te dê lírios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto
Serás, rainha não, mas só pastora _

Só sempre a mesma pastorinha a ir,
E eu serei teu regresso, esse indistinto
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...

ELAS SÃO VAPOROSAS
Minuete Invisível

Elas são vaporosas,
Pálidas sombras, as rosas
Nadas da hora lunar...

Vêm, aéreas, dançar
Com perfumes soltos
Entre os canteiros e os buxos...
Chora no som dos repuxos
O ritmo que há nos seus vultos...

Passam e agitam a brisa...
Pálida, a pompa indecisa
Da sua flébil demora
Paira em auréola à hora...

Passam nos ritmos da sombra...
Ora é uma folha que tomba,
Ora uma brisa que treme
Sua leveza solene...

E assim vão indo, delindo
Seu perfil único e lindo,
Seu vulto feito de todas,
Nas alamedas, em rodas,
No jardim lívido e frio...

Passam sozinhas, a fio,
Como um fumo indo, a rarear,
Pelo ar longínquo e vazio,
Sob o, disperso pelo ar,
Pálido pálio lunar ...

EM BUSCA DA BELEZA
Soam vãos, dolorido epicurista,
Os versos teus, que a minha dor despreza;
Já tive a alma sem descrença presa
Desse teu sonho, que perturba a vista.

Da Perfeição segui em vã conquista,
Mas vi depressa, já sem a alma acesa,
Que a própria idéia em nós dessa beleza
Um infinito de nós mesmos dista.

Nem à nossa alma definir podemos
A Perfeição em cuja estrada a vida,
Achando-a intérmina, a chorar perdemos.

O mar tem fim, o céu talvez o tenha,
Mas não a ânsia da Coisa indefinida
Que o ser indefinida faz tamanha.

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, sem identificação do autor.

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