quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Danglei de Castro Pereira (Sousândrade: tradição e modernidade) Parte V, final

Pode-se dizer que, em O Guesa, o eu-poético opera uma desagregação da imagem do poeta romântico. Dotada de uma visão racional diante do cânone romântico tradicional, a poética sousandradina poderia ser vista como uma crítica à máscara externa implícita no seio do romantismo conservador:
(Alviçareiras no areial:)
– Aos céus sobem estrellas,
Tupan-Caramurú!
É Lindoya, Moema,
Coema,
É a Paraguassú;
– Sobem céus as estrellas,
Do festim rosicler!

Idalinas, Verbenas
De Athenas,
Corações de mulher;
– Moreninhas, Consuelos,
Olho-azul Marabás,
Pallidez Juvenilias,
Marilias
Sem Gonzaga Thomaz!
(O Guesa. Canto II, p. 32.)

Nesses versos, fica patente a crítica imposta por Sousândrade ao cânone dominante. O desfilar de musas como “Lindoya, Moema, Paraguassú e Marilia” denuncia uma crítica à formação européia predominante em nossa literatura que, por muitas vezes, confecciona o interno a partir de uma espécie de molde externo. “Tupan-Caramuru” pode ser entendido como a concretização da artificialidade na expressão dos elementos de nossa cultura, pois um Deus tipicamente indígena, “Tupan”, aparece contaminado pela figura do branco colonizador, Diogo Álvares Correia.

Os versos “Olho-azul Marabás/ Pallidez, Juvenilias” corroboram a crítica à “europeização” do traço nacional pelo externo. Essa crítica se estende ao próprio movimento romântico na referência a “Moreninhas, Consuelos” e “Marabá”, personagens tipicamente românticas que podem sintetizar a artificialidade do discurso romântico epigonal. “Coema” poderia ser entendido como uma alegoria da artificialidade desse discurso.

Dessa forma, a visão lúcida diante da artificialidade romântica “epigonal” leva a uma metalinguagem de cunho satírico. Nesse percurso, o discurso sousandradino apropria-se da tradição para redimensioná-la em uma atitude marcadamente de vanguarda modernista:

 (Arraia-miuda, nas malhas; AGASSIZ-UYARA)

– Que violentam-se ellipses,
Ora, na ode infernal!
== Venias... dias d’entrudo...
            Mais crudo
Foi do Templo o mangoal.
– Nús, desformes, quebrados,
Neos, rijos, sem dó!
== Venias... gyra, Baníua,
            A Caríua
Doce mócóróró.
(O Guesa. Canto II, p. 33)

(Discussão entre mestres de fôrmas e fórmas:)

– Redondilhas menores...
== Per Guilherme e Nassáu!
Res, non verba, senhores
                            Doctores,
             Quer d’estados a nau!
(O Guesa. Canto II, p. 34)

            (NEPTUNOS:)

– Os poetas plagiam,
            Desde rei Salomão:
            Se Deus crea – procream,
                            Transcream –
            Mafamed e Sultão.
(O Guesa. Canto II, p. 35)

Nos versos acima, o poeta introduz comicamente figuras da tradição, metaforizadas jocosamente nos “mestres de fôrmas e fórmas”, na figura mítica de “Netuno” e na dança pandemônio do “Tatuturema”. “AGASSIZ-UYARA” indicaria uma ironia em relação à erudição própria do discurso tradicional, caracterizado como “Arraia-miuda” lançada “nas malhas”. Nessa linha de leitura, o “plágio” dos poetas apontaria para uma ridicularização do próprio fazer literário, verificada nos versos “ – Nús, deformes, quebrados,/ Neos, rijos, sem dó!”. Nesses versos, o termo “Neos”, investido de uma visão pejorativa, é envolvido caoticamente pelos termos “desformes, quebrados” e associado a elementos como “Baíua”, “Caríua” e à onomatopéia “mócóróró”, produzindo a deflagração da distância expressiva entre os termos eruditos face aos traços naturais. Em tom de galhofa, Sousândrade aponta para sua estrutura distinta, ou seja, o “violentam-se elipses” indica a metalinguagem imanente ao poema.

Nesse ponto, temos o poeta como um visionário, um Deus ao molde do Vate romântico na medida em que inverte a criação divina ao aludir a construção racional de seus versos, metaforizada no transcriar expresso no excerto citado há pouco.

Ora, O Guesa que sempre se sentia
            Revestido do signo, e sem do insano
            Zeno ser filho, então lhe acontecia
            Deixar o manto ethereo e ser humano”
(O Guesa. Canto II, p. 24)

Nesse processo racional, a humanização do poeta/Guesa, observável no fragmento acima, corrobora para a concretização do veio crítico comentado nesse artigo. O revestir-se em “signo” remonta à tradição romântica de vislumbrar através da criação literária um mundo idealizado que, muitas vezes, transfigura a própria realidade. No entanto, o deixar o “manto ethereo e ser humano” aponta para a tomada de consciência em relação a esse processo. Sendo assim, o impulso criativo humanizado traz para o texto o teor racional, remetendo à lucidez do poeta face à realidade que o cerca.

Vista por esse prisma, a figura feminina de Virjanura, musa inspiradora do personagem Guesa, pode ser entendida como uma crítica ao comportamento romântico tradicional no que se refere à construção da personagem feminina:

 “...Nas mãos tinha-a, mirava-a, possuia” [...].
 Quão taciturno agora! Qual se os beijos
Esse altar profanassem dos desejos
—Uma aza negra esvoa na alegria....”
(O Guesa. Canto IV, p. 81)

O ato de possuir a amada descaracteriza a visão romântica, na qual a musa é tida como algo inatingível e, portanto, como elemento a ser adorado. A tristeza, após a consumação da posse, indica a consciência da degradação da musa. A “aza negra que esvoa na alegria” é a constatação da dessacralização da figura feminina que, vista a partir de uma ótica realista, aparece destituída de sua aura de pureza e castidade.

“Virjanûra” sintetiza, assim, a sátira à falsidade do olhar romântico em relação ao espaço brasileiro, podendo ser entendida como um prolongamento da inquietação apresentada por Gonçalves Dias na composição de “Marabá”. A diferença reside no fato de que Virjanüra aparece projetada para além da mera idealização romântica, uma vez que o eu-poético não a renega e, sim, toma-a como musa, dessacralizando-a.

Podemos observar que, em O Guesa, a pureza do espaço natural, quando mencionada, é relegada a um passado remoto:

“Ou quando a que nasceu para ser nossa
Vemos em braços d’outrem delirando:
Ou meiga patria, esperançosa e môça,
Do seu tumulo ás bordas soluçando.”
(O Guesa. Canto II, p. 20)

Uma das formas de perceber o teor puro, atribuído ao traço nacional, é a fusão desse traço à figura da musa. Tal procedimento remete a uma personificação do espaço natural que, por muitas vezes, pode ser confundido com a própria musa. A inquietação do eu-poético em relação à posse do espaço natural, que é visto nos “braços d’outrem delirando”, aponta para a conscientização de que a “meiga pátria, esperançosa e môça” perde sua plenitude, aparecendo soluçante às bordas do seu túmulo.

3 Considerações finais

De nosso ponto de vista, acreditamos que, embora fortemente marcado pela visão romântica, Sousândrade opera uma racionalização do impulso emotivo primário presente na vertente canonizada no Romantismo Brasileiro. Tal postura pode ser verificada pela lucidez com que o poeta apresenta o espaço interno corrompido pelo traço externo. Ao se apropriar criticamente do canône tradicional, por meio da adoção de um Romantismo titânico, Sousândrade revela uma noção de brasilidade distinta do ufanismo romântico, fato que faz dele um ícone para a modernidade brasileira.

Pode-se dizer, então, que a poética sousandradina não busca a expressão do interno moldado pelo prisma europeu, como o fez em larga medida José de Alencar; pelo contrário, critica essa submissão, encarando-a como ponto de descaracterização de nossa cultura. Daí termos, no romantismo sousandradino, uma sátira à “originalidade” pretendida pelo Romantismo.

Sousândrade, portanto, proporcionou a emergência de um nacionalismo racional e, com isso, mostrou um olhar inovador, o que aponta para a constatação de que a literatura brasileira seria efetivamente fundada a partir da síntese da matriz nativa com as interferências externas.

Nas considerações feitas até o momento, procuramos enfatizar que o poeta maranhense apresenta uma maior lucidez em relação à “rotina incorporada”, presente no discurso romântico conservador canonizado no Brasil. Tal postura confere à poética do maranhense um redimensionamento da harmonia romântica, levando à expressão de um Romantismo, mais lúcido e racional, próximo da vertente romântica alemã.

O poeta maranhense não fica na mera reprodução de valores alheios a nossa cultura, mas tenta deflagrar a tensão existente entre eles no seio de nossa cultura. Na valorização da “cor local”, Sousândrade deixa transparecer um anseio nacionalista. A utilização de elementos da língua tupi como “urarí” (veneno), “urucari” (palmeira), “potyras” (flor), “cáe-á-ré” (rio de água branca na língua dos índios Barés) e “jacaré”, além da constante alusão à cultura indígena, figuram como uma possibilidade de saída diante da dependência romântica ao elemento externo.

Por esse prisma, a valorização da “cor local” é fator de ironia na inusitada poética sousandradina, pois no interno sobrevive o “sonho” de uma plenitude futura que, no entanto, não se realiza. No clamor pela valorização da “cor local”, o poeta de O Guesa não vê o nativo como mero prolongamento do europeu civilizado – Jurupari equiparado a Satanás, ou O Guesa comparado a Jesus –, mas como expressão das matrizes nativas enquanto detentoras do cerne da brasilidade. É justamente por essa posição intrinsecamente nacionalista que Sousândrade pode ser relacionado à modernidade.

Como vimos, a postura lúcida perante a matriz nacional aproxima a poética de Sousândrade ao Romantismo titânico ou racional. Sua preocupação em expressar a situação degradada do homem nativo (vítima da ação colonizadora) confere ao poema um engajamento político-social concretizado na figura utópica da República. Expressando a realidade histórica e social da segunda metade do século XIX, Sousândrade busca uma visão mais ampla da dependência econômica imposta pela ação do estrangeiro colonizador, evidenciando, com isto, o aprisionamento cultural do colonizado, que passa a construir sua visão de mundo pelo prisma do outro e, nesse processo, perpetua a dependência.

O poeta maranhense foi um dos primeiros poetas brasileiros a apontar para a nova perspectiva sócio-econômica que se materializava: o capitalismo. O despontar dessa nova estrutura social modifica o olhar sousandradino face às particularidades nacionais, deflagrando o pessimismo e a amargura diante da situação dos povos colonizados.

Essa visão negativa, crivada de racionalidade, aparece de forma sintética nos versos que seguem:

Tupan! vampiro em volta da candeia!
Dissolução do inferno em movimento!
(O Guesa, Canto II. p.41)

O Deus “Tupan” caracterizado como um vampiro, denota o racionalismo imanente ao poetar sousandradino, uma vez que retira do mito indígena toda a carga positiva para, a partir daí, decretar a decadência da nação que se expande comparada a um inferno.

Esse procedimento aponta para aquilo que Vizzioli (1993) chama de conciliação entre a razão e o sentimento no romantismo racional ou titânico. Assim como Hölderlin, Sousândrade impôs a sua poética o mesmo posicionamento crítico, questionando a pura emotividade romântica para, racionalmente, expor uma poética lúcida em relação à realidade de sua época.

É justamente por esse olhar crítico perante a matriz nativa que o poeta distancia-se da mesmice de seus contemporâneos. Tal postura implica uma manipulação consciente da tradição literária, permitindo a compreensão da modernidade sousandradina como resultado de uma visão romântica, privilegiada pela lucidez diante de seu tempo. Como salienta Williams (1976), a obra de Joaquim de Sousândrade possui características modernas, mas só pode ser compreendida em sua plenitude se encarada necessariamente como uma obra romântica.

De nosso ponto de vista, Sousândrade pode ser entendido como um poeta romântico, pois mesmo demonstrando uma consciência crítica diante da degeneração moral e ética da sociedade do século XIX, continua preso ao olhar utópico característico do discurso romântico.

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Notas 

[i] Caberiam a Augusto e Haroldo de Campos (1964) os louros pela reavaliação da obra do maranhense, a quem chamariam de “terremoto clandestino”, atribuindo-lhe uma posição de destaque dentre os poetas brasileiros, não como perpetuador de uma tradição, mas como um poeta que soube redimensionar essa tradição.

[ii] No presente trabalho, no tocante à produção de Gonçalves Dias, tomaremos como referência Poesias completas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1957

[iii] Será resguardada a ortografia original do poema, mesmo que, em alguns momentos, esta apresente algumas incorreções aos olhos da norma culta vigente. O texto fonte será sempre: SOUSÂNDRADE, O Guesa. Edição Fac-similar. Org. Jomar de Morais. São Luís/MA: SIOGE, 1979.


Fonte:   
Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 4, número 2, jan./jun. 2004. Disponivel em http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0402/07.htm

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