Mas felizmente Deus agora se alembrou
De mandar chuva
Pr'esse sertão sofredor
Finalmente, chove no Ceará. Embora com um certo atraso, Deus agora se alembrou / De mandar chuva / Pr’esse sertão sofredor. Se alembrou de fazer chover na capital e no interior do estado. A asa branca pode ir preparando a viagem de volta. Os agricultores já devem estar espalhando as sementes nas covas, abertas com antecedência, pois a esperança, que para muitos é a última que morre, para eles não morre nunca. Entra em estado de catalepsia, mas morrer mesmo, não. É. Aqui no Ceará, é assim.
A ansiedade daqueles que trabalham com a terra e com o gado é grande. E têm um bom motivo. As secas periódicas, que desde sempre marcaram a história do Ceará, levam pequenos fazendeiros à ruína e expulsam os pequenos agricultores de suas terras. Daí nascerem as histórias mais ou menos folclóricas de que se encontra um cearense em qualquer quadrante do mundo que se visitar.
Mas, talvez, haja muito de verdadeiro nessas histórias. O cearense pobre do sertão, quando vê a última rês despencar de fome e sede, o mandacaru entristecer, o leito dos últimos fios d’água crestar, os filhos lhe perguntarem com o olhar o que vão comer naquele dia, despede-se de sua terra e de sua gente e embarca. Deixa sua terra juntamente com a asa branca, que também resiste até o fim e só vai embora no último pau de arara. Vai na tentativa de trabalhar e mandar alguma dinheiro para que a mulher e os filhos possam sobreviver. Isso quando não pega a estrada com toda a família, o papagaio e o cachorro. Mas vai, pensando em regressar com as primeiras notícias do retorno da chuva.
Nos tempos passados, o destino eram as terras lá de cima, as terras do norte. Muitos foram e não voltaram, possuídos pelos gênios da floresta, deixando a família à espera por anos, inutilmente. É, porque as florestas têm entidades que assediam, encantam, conquistam, dominam e matam.
Hoje, o roteiro é o sul, o sul maravilha, como muitos chamam. Mas não propriamente os estados realmente do sul, mas os do centro-oeste, principalmente Rio e São Paulo. São Paulo está cheio de cearenses e de nordestinos em geral. São eles, os nordestinos, são eles, os cearenses, que hoje erguem São Paulo. Enfrentam a má vontade e o preconceito explícito das gentes do sul e, às vezes, até mandam buscar a família.
O cearense, porém, tem muito da asa branca. Às primeiras notícias da chuva, aos primeiros prenúncios do inverno — da quadra chuvosa que aqui chamamos de inverno e que os estados que se situam mais para o sul chamam de verão —, põe em um saco os poucos pertences, dá um nó como cadeado e volta para sua terra, com a esperança de arrancar dela o milho, o feijão, a mandioca e a batata doce, que alimentarão a família e que, se vierem com fartura, serão vendidos na feira. Assim é a asa branca: ao primeiro sinal de inverno, ela volta. Aí, então, o nordestino tem a certeza de que o inverno vai pegar.
Foi assim desde sempre. Promessas para a transposição de rios, para a irrigação, para a construção de açudes e de cisternas suficientemente grandes para acumular água potável nos anos de inverno bom sempre foram feitas e não cumpridas, ou cumpridas pela metade. Todos os governantes do Brasil, incluindo D. Pedro II — que, na grande seca de 1880, com a duração de três anos, fez a célebre promessa, cujas palavras foram levadas pelo vento: Venderei a última joia da Coroa, mas nenhum nordestino morrerá de fome. —, têm feito, para solucionar o problema da seca no Nordeste, promessas e até efetivado projetos importantes, como o da perenização do rio Jaguaribe e o da polêmica transposição das águas do rio São Francisco, que, aliás, já devia estar concluída. Mas parece que falta uma atitude séria e consequente de quem traça esses projetos. D. Pedro II, pelo menos, embora não tenha vendido nenhuma joia da coroa, decretou, em 1880, a construção do açude do Cedro.
A chuva, pois, chegou ontem, 15 de fevereiro, em uma pancada forte e mais ou menos demorada, que alagou ruas e avenidas, mas que fez o cearense abrir um sorriso de alívio. Ela chegou por volta das 10 h da manhã e ficou até mais ou menos 1 h. Avisara, no dia anterior, que viria: o dia 14 foi um dos mais quentes do ano que mal se inicia. Não sabemos se ela foi só um ensaio ou se a peça vai entrar mesmo em cartaz. Nestes tempos em que tudo está mudado, inclusive os sinais da natureza, nunca se sabe. Até os profetas do sertão encontram-se acuados e mais ou menos desmoralizados. Os indícios naturais, antes infalíveis, já não mais se confirmam. Assim, por garantia, é melhor esperar pelo 19 de março, para ver o que diz São José.
Torçamos para que o nosso agricultor, este ano, não tenha que acompanhar o voo da asa branca.
Fonte:
A Autora
De mandar chuva
Pr'esse sertão sofredor
Finalmente, chove no Ceará. Embora com um certo atraso, Deus agora se alembrou / De mandar chuva / Pr’esse sertão sofredor. Se alembrou de fazer chover na capital e no interior do estado. A asa branca pode ir preparando a viagem de volta. Os agricultores já devem estar espalhando as sementes nas covas, abertas com antecedência, pois a esperança, que para muitos é a última que morre, para eles não morre nunca. Entra em estado de catalepsia, mas morrer mesmo, não. É. Aqui no Ceará, é assim.
A ansiedade daqueles que trabalham com a terra e com o gado é grande. E têm um bom motivo. As secas periódicas, que desde sempre marcaram a história do Ceará, levam pequenos fazendeiros à ruína e expulsam os pequenos agricultores de suas terras. Daí nascerem as histórias mais ou menos folclóricas de que se encontra um cearense em qualquer quadrante do mundo que se visitar.
Mas, talvez, haja muito de verdadeiro nessas histórias. O cearense pobre do sertão, quando vê a última rês despencar de fome e sede, o mandacaru entristecer, o leito dos últimos fios d’água crestar, os filhos lhe perguntarem com o olhar o que vão comer naquele dia, despede-se de sua terra e de sua gente e embarca. Deixa sua terra juntamente com a asa branca, que também resiste até o fim e só vai embora no último pau de arara. Vai na tentativa de trabalhar e mandar alguma dinheiro para que a mulher e os filhos possam sobreviver. Isso quando não pega a estrada com toda a família, o papagaio e o cachorro. Mas vai, pensando em regressar com as primeiras notícias do retorno da chuva.
Nos tempos passados, o destino eram as terras lá de cima, as terras do norte. Muitos foram e não voltaram, possuídos pelos gênios da floresta, deixando a família à espera por anos, inutilmente. É, porque as florestas têm entidades que assediam, encantam, conquistam, dominam e matam.
Hoje, o roteiro é o sul, o sul maravilha, como muitos chamam. Mas não propriamente os estados realmente do sul, mas os do centro-oeste, principalmente Rio e São Paulo. São Paulo está cheio de cearenses e de nordestinos em geral. São eles, os nordestinos, são eles, os cearenses, que hoje erguem São Paulo. Enfrentam a má vontade e o preconceito explícito das gentes do sul e, às vezes, até mandam buscar a família.
O cearense, porém, tem muito da asa branca. Às primeiras notícias da chuva, aos primeiros prenúncios do inverno — da quadra chuvosa que aqui chamamos de inverno e que os estados que se situam mais para o sul chamam de verão —, põe em um saco os poucos pertences, dá um nó como cadeado e volta para sua terra, com a esperança de arrancar dela o milho, o feijão, a mandioca e a batata doce, que alimentarão a família e que, se vierem com fartura, serão vendidos na feira. Assim é a asa branca: ao primeiro sinal de inverno, ela volta. Aí, então, o nordestino tem a certeza de que o inverno vai pegar.
Foi assim desde sempre. Promessas para a transposição de rios, para a irrigação, para a construção de açudes e de cisternas suficientemente grandes para acumular água potável nos anos de inverno bom sempre foram feitas e não cumpridas, ou cumpridas pela metade. Todos os governantes do Brasil, incluindo D. Pedro II — que, na grande seca de 1880, com a duração de três anos, fez a célebre promessa, cujas palavras foram levadas pelo vento: Venderei a última joia da Coroa, mas nenhum nordestino morrerá de fome. —, têm feito, para solucionar o problema da seca no Nordeste, promessas e até efetivado projetos importantes, como o da perenização do rio Jaguaribe e o da polêmica transposição das águas do rio São Francisco, que, aliás, já devia estar concluída. Mas parece que falta uma atitude séria e consequente de quem traça esses projetos. D. Pedro II, pelo menos, embora não tenha vendido nenhuma joia da coroa, decretou, em 1880, a construção do açude do Cedro.
A chuva, pois, chegou ontem, 15 de fevereiro, em uma pancada forte e mais ou menos demorada, que alagou ruas e avenidas, mas que fez o cearense abrir um sorriso de alívio. Ela chegou por volta das 10 h da manhã e ficou até mais ou menos 1 h. Avisara, no dia anterior, que viria: o dia 14 foi um dos mais quentes do ano que mal se inicia. Não sabemos se ela foi só um ensaio ou se a peça vai entrar mesmo em cartaz. Nestes tempos em que tudo está mudado, inclusive os sinais da natureza, nunca se sabe. Até os profetas do sertão encontram-se acuados e mais ou menos desmoralizados. Os indícios naturais, antes infalíveis, já não mais se confirmam. Assim, por garantia, é melhor esperar pelo 19 de março, para ver o que diz São José.
Torçamos para que o nosso agricultor, este ano, não tenha que acompanhar o voo da asa branca.
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