quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 5. Todo o Mal Está Em Se Falar Demais)

O que vale deveras, deveras, nos indivíduos, não são as idéias, que mudam, que ondulam, que o menor sopro de interesse ou paixão modifica, é o fundo indefinível de bondade que neles exista. E esse fundo mesmo, e preciso que não se pretenda apurar com fúrias de análise! Não é senão um pouco menos mudável e incerto, neste perpétuo devenir em que tudo o que vive se resume num equilíbrio momentâneo e precário de elementos errantes e fluidos. Devemos crer nesse fundo, sem o examinar com insistente rigor. A nossa boa vontade o faz crescer. Acreditar que ele existe é corroborar-lhe a existência. A nossa fé transfunde-se no íntimo dos outros como uma levedura vivaz. E assim cada um de nós é um pouco criador; criador das mais doces coisas do mundo.

Os homens de bem são geralmente melhores do que a sua própria lógica faria supor. Há indivíduos excelentes que falam como cínicos ou malvados.

A palavra não foi dada a todos os homens para encobrir os seus pensamentos: foi dada à maior parte para encobrir a falta de pensamento. Felizes os que ainda têm pensamentos que encobrir! A maioria pensa à medida que fala. A necessidade de falar é que a obriga a pensar um pouco. E há pior: a necessidade de falar a obriga por vezes a dizer coisas que nunca teria pensado.

Era preciso falar muito menos. O silêncio seria a nossa melhor cura. E seria freqüentemente a melhor das satisfações que pudéssemos dar de nós, em nossa irremediável enfermidade.

No silêncio germinam as forças heróicas. No silêncio condensam-se as forças invencíveis. O silêncio é a túnica invisível e pesada das almas inquebrantáveis, sumidas na profundidade triste da sua clarividência e da sua piedade.

Silence and Secrecy! -palavra de Carlyle que devia ser a divisa das almas religiosas, isto é, das almas humanas.

Os amigos deviam estar juntos apenas para se sentirem viver um ao outro, mantendo entre si esses largos silêncios falantes que são o que há de mais expressivo na linguagem do amor. A linguagem do amor é uma brosladura vã de palavras sobre um fundo uniforme de sentimento. Para que sobrecarregar a brosladura? Para que arriscar desenhos supérfluos que podem comprometer irremediavelmente o tecido? A linguagem apropriada seria musical, a meia voz, lenta como um cantus planus envolvido pela melancolia suave que banha as felicidades efêmeras.

O mundo com todas as suas complicações miseráveis e a nossa personalidade mundana e aparente, com todas as suas pretensões, e imbecilidades, mistificações e parlapatices, deveriam desaparecer, como fumo varrido por um vento puro e purificador, diante do milagre de duas almas que de verdade se querem, - milagre! coisa incompreensível e estupefaciente, nesta raça de macacos famélicos e obscenos. E seria como se cada uma dissesse para a outra, sem dizer nada: "Eis-me aqui. Tal como sou, eis-me aqui: um pouco de lodo com duas asas. Amemo-nos, pelas nossas asas. Mas em silêncio, chut! em si-lên-ci-o... Basta o sopro de uma palavra vã para que essas asas se rompam como teias de aranha!

Etre méconnu memê par ceux qu'on aime, é est la coupe d'amertume et la croíx de la vie... escreveu Amiel com o seu sangue.

Dentro do silêncio, a compreensão mútua, despindo os incômodos véus da palavra exterior e dos conceitos ordinários, e mesmo da palavra interior, poderia assumir a forma serena de uma iluminação. De uma claridade difusa e divina. Para além da lógica tardígrada das magras aparências, das reflexões esterilizantes. - Poderia. Mas!...

Fonte:
Domínio Público

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