terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Soares de Passos (O Mendigo)

Nas torres soberbas da grande cidade
O sol desmaiado não tarda a morrer;
Recrescem as sombras: que importa? a vaidade
No manto das sombras envolve o prazer.

E u velho entretanto lá sobe a montanha,
Caminha, caminha, no cimo parou:
Em frígidas gotas o rosto lhe banha
Suor copioso, que à terra baixou.

Quis antes da morte, nas serras distantes
Fitar inda os olhos cansados da luz;
A aldeia da infância saudar por instantes,
Depois satisfeito depor sua cruz.

Olhou, e um suspiro de vaga saudade
Juntou a seus prantos em funda mudez;
Depois, ao volver-se, topando a cidade,
Que em ébrio tumulto folgava a seus pés:

«Mal hajas, cidade, que ao pobre faminto
«O pão da desgraça negaste cruel!
«Mal hajas, mal hajas, que a terra do extinto
«Talvez lhe negaras, à tumba infiel!»

E exausto e sem forças, caiu de joelhos;
E a fronte cansada firmou no bordão:
Passados instantes, os olhos vermelhos
Ao céu levantava, dizendo: perdão!

Caíam-lhe soltas no colo vergado
As longas madeixas em longos anéis:
Que nobre semblante de rugas sulcado,
Sulcado dos anos e mágoas cruéis!

«Perdão para as vozes que solta a desgraça!
«Perdão para o triste, perdão, ó meu Deus!
«Bem hajas, que aos lábios lhe roubas a taça
«De fel e amarguras, abrindo-lhe os céus.

«Já filhos não tenho, levou-mos a guerra;
«Esposa não tenho, finou-se de dor;
«Amigos não vejo na face da terra:
«Que faço eu no mundo? bem hajas, Senhor!

«Às portas do rico bati sem alento,
«Eu rico n'outrora, mendigo por fim:
«O rico sem alma negou-me o sustento,
«Aqueles que amava fugiram de mim.

«Vaguei pelo mundo, nas faces mirradas
«Colhendo os insultos que ao pobre se dão;
«Sem pão, sem abrigo, por noites geladas
«Pousei minha fronte nas lajes do chão.

«Que vezes a morte chamei sem alento
«Cansado dos anos, e fomes, e dor!
«A morte não veio: sofri meu tormento...
«Só hoje me ouviste! bem hajas, Senhor!

«Os homens e o mundo negaram-me os braços,
«Mas tu me recolhes, tu me abres os teus...
«Minha alma te busca, desprende-a dos laços...
«Perdão para todos, perdão, ó meu Deus!»

E um ai derradeiro soltou d'ansiedade,
Caindo por terra nas urzes do chão;
Ao longe, no seio da grande cidade,
Brilhava das festas nocturno clarão.

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

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