quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Danglei de Castro Pereira (Sousândrade: tradição e modernidade) Parte II

2.1 O cânone romântico brasileiro

O cânone consagrado em nosso Romantismo, amplamente discutido por Edgar Cavalheiro (1959), figuraria como o resultado de uma exposição de valores nacionais influenciados esteticamente por um olhar europeu. Segundo Cavalheiro (op. cit.), poder-se-ia delimitar, dentro da complexidade do movimento, características comuns entre as manifestações de nosso Romantismo. Dentre as quais, as principais seriam: i) o abandono ao cânone clássico, o que implica antes de tudo na mudança da noção de belo artístico e a conseqüente negação da cultura greco-romana; ii) a valorização de temas e traços particulares de cada região e, por fim, iii) a valorização do traço subjetivo, pois a expressão romântica passaria a ser centrada na individualidade e não na obra em si.

Para Cavalheiro (op. cit.), a tendência romântica à valorização das peculiaridades inerentes a cada região assume a função de distinguir a corrente brasileira das influências externas. Essa distinção, conseguida através da interação entre a visão subjetiva e a realidade, fez com que o olhar subjetivo revelasse uma supervalorização do espaço brasileiro em uma atitude marcadamente emotiva. O poeta romântico brasileiro, assolado pelo furor nacionalista, cantou o território brasileiro como o melhor e o mais belo do mundo e, nesse processo, plasmou um olhar utópico que, em muitos casos, aproxima-se da impulsividade emotiva perceptível na vertente epigonal.

A esse respeito podemos lembrar Gonçalves Dias.[ii] Em “Canção do Exílio”, por exemplo, a valorização do natural e a afirmação patriótica, associadas a uma esperança no futuro, podem ser entendidas como constantes canônicas de nosso Romantismo. Em poemas como “O canto do Piaga” e “I-Juca-Pirama”, é possível identificar o elemento natural como a expressão do “genuinamente” brasileiro. Em “Leito de folhas verdes”, Gonçalves Dias sintetiza, na figura da mulher indígena, a pureza dos elementos naturais. “A flor que desabrocha ao romper d’alva” pode ser entendida como uma metáfora da própria nação brasileira à espera da plenitude do porvir.

Essa postura nos leva a afirmar que existe, no cânone romântico brasileiro, uma tendência à pacificação do sujeito pelo traço natural. A expressão de sentidos positivos ligados a esse ambiente atenua o sofrimento do Eu em conflito com o mundo. A identificação entre o Eu e a natureza sintetiza a negação da realidade agressora, pois a pureza da natureza seria para o romântico um dos mecanismos utilizados para a efetivação do ímpeto transcendente. O artista tende a ver no espaço natural uma função catártica, pois procura, por meio da equiparação à pureza do espaço, resgatar sua plenitude perdida no contato com o mundo civilizado. O natural, visto por esse prisma, revela o desejo de purificação do Eu e, por esse motivo, passa a ser ponto de equilíbrio entre o homem e o mundo.

Dentro desse traço catártico, as imagens ligadas ao natural estão, quase sempre, em harmonia e remetem a uma paz interior. Reportemo-nos aos versos de “Quadras de minha vida”, de Gonçalves Dias: “De bela flor vicejante,/ E da voz imensa e forte/ Do verde bosque ondulante...”. Aqui, o elemento natural é visto como purificador do Eu romântico, que procura afirmar-se como parte integrante da harmonia natural. O tom ameno e singelo, percebido na adoção de imagens delicadas como o céu azul e límpido, o campo verdejante, a alvura das nuvens, o rio limpo que segue seu curso, a beleza das flores, a pureza da amada comparada à mãe e à irmã, entre outros, teriam a função de reafirmar a ligação do sujeito com o estado de pureza da natureza.

Alfredo Bosi (1993, p. 245) observa que a linguagem romântica tende a buscar a equiparação ao natural com o intuito purificador, uma vez que “a metáfora romântica mais simples é sempre a que se funda sobre alguma correlação entre paisagem e estado de alma”. Dessa forma, o apego ao natural representaria a busca por purificação do mundo corrompido que degrada o sujeito. Daí a predisposição romântica a se fixar na exposição do traço exótico e exuberante de nossa natureza tropical, pois quanto mais intocada a natureza, mais o sujeito se identificará com esse ambiente de pureza.

A religiosidade seria outro pólo explorado pelo sujeito como fonte de purificação para os desequilíbrios do mundo empírico. Em “Sobre o túmulo de um menino”, Gonçalves Dias mostra a imagem angelical da criança morta como forma de amenizar o sofrimento da perda: “O invólucro de um anjo aqui descansa/ [...] Como o’ferenda de amor ao Deus que o rege; / Não perguntes quem foi, não chores; passa”. Na temática romântica, o traço religioso, visto como fonte de esclarecimentos e explicações para a degradação do homem pela realidade, pode ser entendido como um prolongamento do elemento natural.

Dada à tendência romântica de idealização da realidade, o aflorar dessa tentativa de pacificação exprime-se por uma profunda emotividade. Nessa tentativa de transformar o mundo, a castidade, a pureza angelical, o homem e a mulher quase perfeitos serão valorizados e largamente utilizados pelos artistas românticos. Nos versos do poema “Rôla” de Gonçalves Dias: “Amo-te, quero-te, adoro-te/ Abraso-me quando em ti penso,” é notável como o sentimento amoroso figura como fonte de plenitude. Em “Se se morre de amor”, de Gonçalves Dias, o lirismo deixa transparecer essa atitude idealizada, devendo ser preservado em sua plenitude.

A pureza, então, passa a ser vista como fonte da plena realização do desejo transcendente e, uma vez profanada, gera a dilaceração da plenitude do Eu: “amá-la, sem ousar dizer que amamos,/ E temendo roçar os seus vestidos,/ Arder por afogá-la em mil abraços:/ Isso é amor, e desse amor se morre!” (Gonçalves Dias). A plenitude concretiza-se na impossibilidade, o sujeito idolatra a amada à distância; é como se a proximidade destruísse a idealização. Nos momentos em que o desejo de profanação materializa-se, o sujeito transfigura o “perfeito”, degradando a figura divinizada.

Essa possibilidade de degradação imanente ao espírito romântico, muitas vezes proporciona um amargor em relação à visão positiva do sujeito com o mundo (Eu pacificado pelo natural). Nesse caso, o pessimismo invade o espaço eufórico, levando à angústia e à melancolia. O universo natural, transfigurado em negatividade e sofrimento, passa a agressor, perpetuando o desequilíbrio do Eu. É o “mal du siècle”, momento em que o Eu torna-se irônico por assumir uma posição consciente face sua inquietação com o mundo.

Segundo Octavio Paz (1984), a ironia advém da constatação da dualidade do homem. É justamente a consciência dessa situação que proporciona a angústia e o pessimismo do Eu romântico. O sujeito inverte a apreciação positiva e se torna sarcástico, brincando com a impossibilidade de realização do equilíbrio. Tal postura romanesca é caracterizada por Bosi (1993, p. 248) como uma “inversão do liame tradicional”, pois o dia é relegado à noite, a beleza, ao grotesco; a vida, à morte; a pureza, à depravação; a perfeição, à imperfeição.

Essa postura negativa leva o Eu romântico a ver na morte o elemento de purificação do espírito, agora transfigurado em sofrimento e dor pela passagem inerte e vazia pela vida. Nessa fase de desespero e agonia, é comum a incorporação de elementos como a prostituta, o fluir inútil do tempo e das esperanças, a noite fantasmagórica, a fixação na lápide e no sepulcro, entre outros. É como se o poeta negasse sua vida atormentada para ver, na morte, o elemento de regresso ao equilíbrio perdido.

Em sua procura por transcendência, o artista romântico plasma um discurso extremamente inusitado, adotando uma linguagem “culta”, recheada de metáforas, sinestesias, paralelismos, hipérboles, entre outras figuras de linguagem. A preocupação formal em exprimir a emotividade produz um efeito paradoxal, pois, ao tentar ser genuinamente emotivo e atingir a “pureza expressiva”, o artista racionaliza esse impulso no momento de concretizá-lo em linguagem.

Tal procedimento produz uma espécie de aprisionamento do Eu pela linguagem. Musset (1835) expressa muito bem esse aprisionamento ao afirmar que as palavras atrapalham a plena expressão romântica. Não sendo suficiente para a expressão total do sujeito, a língua limita seu ímpeto primário e passa a ser explorada enquanto extrapolação expressiva.

Desse modo, o Romantismo representou uma reformulação da linguagem, pois, na tentativa de extrair dela seu significado mais profundo, o sujeito usou os recursos formais para atingir a perfeição expressiva. No dizer de Blanchot (1988, p. B-3), o movimento romântico buscou “o cerne da palavra para extrair dela a pureza expressiva”. Daí termos, nesse período, o chamado “barroquismo”, entendido, aqui, como trabalho estético com a palavra para atingir um plano expressivo mais próximo do desejado pelo espírito romântico.

Nesse sentido, o Romantismo brasileiro, marcado por uma profunda emotividade, plasmou no campo lingüístico uma atmosfera de valorização do elemento nacional como fator de individualização de nossa realidade. Foi o momento de afirmação de nossa identidade nacional, representando uma verdadeira revolução do ponto de vista expressivo. Como bem observa Manuel Bandeira (1963), o Romantismo foi o momento em que o Brasil expressou verdadeiramente sua cultura através da literatura.

Essa constante auto-afirmadora não impediu, no entanto, que nosso Romantismo sofresse interferências externas. É notável como artistas românticos europeus como Byron, Lamartine, Victor Hugo, Chateaubriand e tantos outros influenciaram nossos poetas. Esse perene “olhar para fora” determinou um caráter europeu imanente a nossa vertente canonizada, já que o Romantismo brasileiro tradicional ou conservador moldou a “cor local”, tendo como paradigma as influências externas.

Para Manuel Bandeira (1963, p. 66), “a poesia romântica enche o século, de 36 até os primeiros anos da década de 80, renovando-se através das gerações, não na forma – vocabulário, sintaxe, métrica – a que se manteve sensivelmente fiel, mas nos temas, no sentimento e no tom.”. Apresentando algumas tentativas de mapeamento da diversidade temática romântica, assim Bandeira divide o ideário:

Pondo-se de parte as pequenas diferenciações individuais, pode-se distribuir a evolução romântica em três momentos capitais: o inicial, em que à inspiração religiosa, base da poesia de Magalhães e Porto Alegre, reflexo da de Lamartine, acrescentou Gonçalves Dias a que buscava assunto na vida dos selvagens americanos; o segundo, representado pela escola paulista de Álvares de Azevedo e seus companheiros, onde predominou o sentimento pessimista, o tom desesperado ou cínico de Byron ou Musset; e finalmente o terceiro, o da chamada escola condoreira, de inspiração social, a exemplo de Hugo e Quinet. (BANDEIRA, 1963, p. 66)

Como podemos perceber, cada momento representou um posicionamento subjetivo em relação à realidade. O nacionalismo religioso, o pessimismo egocêntrico, o lirismo amoroso e os problemas sociais forneceram o cabedal temático ao nosso Romantismo que, permeado pelas interferências externas, formaria a diversidade de nossa arte romântica.

Ao tentar resumir rapidamente o cânone poético brasileiro consagrado no século XIX, Luiz Costa Lima (2001) assim se manifesta:

Suponho que me tivessem dado a tarefa de dizer em poucas palavras em que consistiria o cânone poético que, consagrado no século 19 brasileiro, se mantém até hoje. Proporia a fórmula seguinte: tematicamente, o poeta há de mostrar apreço pela moral e os bons costumes enquanto aclimata seus cenários à natureza tropical; estilisticamente, trovões de eloqüência estremecem uma superfície sentimental – embalante. Castro Alves (1847-1817) e Gonçalves Dias (1823- 1864) são seus paradigmas, seguidos a certa distância por Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e o inefável Casimiro. (Folha de S. Paulo, 25/03/2001)

Nas palavras de Lima (op. cit.) é possível confirmar que o ideário romântico brasileiro foi marcado profundamente pelo que podemos chamar de uma “eloquência natural”. No entanto, essa visão conservadora, amplamente difundida pelos manuais de Literatura em nosso país, apresenta uma visão limitada de nossa diversidade romântica. O Romantismo brasileiro, a nosso ver, foi muito mais complexo e heterogêneo. Lobo (1986) comenta que:

[…] o estudo minucioso do emprego de fontes e temas predominantes no Romantismo talvez nos leve posteriormente a encontrar uma Gestalt de uma contra-ideologia existente no seio de escritores românticos marginais e esquecidos pela história da literatura romântica oficial. (LOBO, 1986, p. 24)

Concordando com Lobo, diremos que essa contra-ideologia pode ser encontrada não só em autores marginais, mas também nos chamados grandes autores do Romantismo brasileiro, o que proporcionaria uma revisão do ponto de vista conservador predominante na delimitação de nosso cânone romântico.

Fonte:
Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 4, número 2, jan./jun. 2004

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