domingo, 24 de fevereiro de 2013

Carlos Machado (Caldeirão Poético da Bahia)

Formatação por J. Feldman com imagens obtidas na internet

COMÉRCIO

comprar tempo
em barras
– como ouro
ou sabão –
e estocá-lo
nos armazéns
da cobiça

instituir
o próspero
comércio
da eternidade

e abrir as
portas
para nova
e concorrida
profissão:
ladrão
de tempo

PUNHOS

o tempo tem punhos
de renda

e toda a cerimônia dos
carrascos

na mão direita três
punhais:

ponteiros de metal
cravados

na pele fria de cada
hora que vai

PÊNDULO
o braço do pêndulo
nunca se agita

apenas acena sem
ênfase

em compasso de
despedida

MARGARIDA

na margarida
do relógio

desfolho
uma a uma
as pétalas do dia

nesse jogo
de sal e saibro
toda pétala
a mais é
vida a menos

e toda flor
malmequer

FIDELIDADE

só a pedra é fiel
a sim mesma:

a lesma {e seus
coleios}

a lesma {e sua
gosma}

de molusco} é
sempre

o avesso do que
se supõe

mas a pedra ¿não
será ela

mesma uma forma
dura de lesma?

ANATOMIAS

anatomia de coisas

desnudar
o pássaro de vidro
e ver em seu lado
oculto
o outro lado
de seu vulto

dissecar
vozes
sombras descalças
e perquirir
a substância
escassa que principia
na polpa
branca do dia

flagrar a ânsia
do relógio
e a cadência
dessa máquina
humana

fotografar
a permanência
da chama

anatomia do gesto

dobrar a esquina
de mim mesmo
olhar pra trás
e ainda
enxergar
o resto de
meu gesto
tonto

PÁSSARO DE VIDRO (2)
quanto mais escancaras
teu íntimo de vidro

quanto mais descortinas
o avesso dos sentidos

mais o que revelas
deixas escondido

PÁSSARO DE VIDRO (3)
o pássaro é cego
e cego é quem
se agita
em seu espaço
ambíguo

esse espaço
de incessante
tarde nua

onde o vôo
risca um traço
branco
de vidro no vidro

ANJO MURITIBANO
sim, uma vez
vi um anjo

nada dos anjos
católicos
gabriéis
armados e vingativos

nada dos anjos
de Rilke
alemães terríveis

meu anjo
sem asa
e sem palavra
não foi visto num castelo
em Duíno
mas numa casa
chã e rasa

em Muritiba

era um anjo
pequenino
morto morto
placidamente morto

estava numa
caixa de sapatos

SÁBADO

cavalos burros
jumentos
na rua:
é dia de feira

no paralelepípedo
a pata do quadrúpede
acende uma centelha

CANÇÃO DE MÁRIO E FERNANDO 

estética e angústia
traços-de-união
entre dois orpheus
desencontrados

um sem biografia
o outro sem história
arte longa curta vida

— e ambos viraram
sílabas

sombras fugidias
sobre as águas
do Tejo ou do Sena:

a vida escrevivida
         vale a pena?

orpheus na sala
de espelhos
divididos
multiplicados

ai tortuosa
aritmética da alma

1 é número múltiplo

CÃMERA

How you die is the most
important thing you ever do.
                    Thimoty Leary


uns preferem
a morte discreta
asséptica
sem vexame

outros apostam
no alvoroço:
enxame
de câmeras até
o osso do nada

thimothy leary
guru
lisérgico não quis
o analgésico
do silêncio

 morreu em show
cibernético
câmera aberta
para o olho
              poente

 ESFINGES

 Alguns, prudentes, não falam com estranhos.
Outros, muito práticos, dizem apenas o necessário
Para o bom andamento dos negócios.

Alguns, calmos e sérios, fecham portas e janelas.
Outros, afoitos, ou filhos de um deus sem-terra,
Oferecem biscoitos, talvez flores, e longa prosa.

De todos, quem sorri com mais dentes de ouro?
quem finge? quem vê no espelho sua própria esfinge?

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/carlos_machado.html

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