domingo, 10 de fevereiro de 2013

Santos Dumont (O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos) Parte 3

Três semanas, contadas dia por dia, após o último desastre, meu aparelho, o n.º 6, estava pronto.

O tempo, porém, continuava mau. Em 19 de Outubro (1901), à tarde, pois a manhã foi chuvosa, subi de novo, contornei a Torre, a uma altura de 250 metros, sobre uma enorme multidão que aí estacionava à minha espera, e passei por Autenil, sobre o hipódromo do mesmo nome, que ficava em meu caminho.

Havia corridas; a minha passagem, tanto na ida como na volta, despertou um delírio de aplausos; ouvi a gritaria e vi lenços e chapéus arrojados no ar; eu distava da terra apenas de 50 a 100 metros...

Da minha saída ao momento em que passei do zênite do ponto de partida, decorreram 29 minutos e 30 segundos.

Com a velocidade que levava, passei a linha da chegada — como fazem os yachts, os barcos a petróleo, os cavalos de corridas, etc. — , diminuí a força do motor e virei de bordo; então, voltando, e com menos velocidade, manobrei para tocar a terra, o que fiz em 31 minutos após minha partida.

Pois bem, alguns senhores quiseram que fosse esse o tempo oficial!

Grandes polêmicas.

Tive comigo toda a imprensa e o povo de Paris e também Son Altesse Imperiale le Prince Roland Bonaparte, presidente da Comissão Científica que ia julgar o assunto.

O voto me foi favorável.
* *

Não se tinham passado dois anos e eram ganhos os cem mil francos do prêmio Deutsch, que, acrescidos aos juros e mais prêmios pequenos, perfazia o total de 129.000 francos, que foram assim destinados: 50.000 francos aos meus mecânicos e operários das usinas que me tinham auxiliado; e o restante a mais de 3.950 pobres de Paris, distribuídos, a pedido meu, pelo Sr. Lepine, Chefe de Polícia, em donativos de menos de 20 francos.

Por essa ocasião, o saudoso Sr. Campos Sales, então Presidente da República, enviou-me uma medalha de ouro e, logo, em seguida, fui agradavelmente surpreendido com o recebimento com o prêmio de 100:000$000, que me foi oferecido pelo Congresso Nacional; além destas, duas outras medalhas recebi: uma do Instituto de França, outra do Aero Club de França.
* *

Depois do meu n.º 6, construí vários outros balões, que não me deram os resultados desejados. Há um ditado que ensina "o gênio é uma grande paciência"; sem pretender ser gênio, teimei em ser um grande paciente. As invenções são, sobretudo, o resultado de um trabalho teimoso, em que não deve haver lugar para o esmorecimento.

Consegui, afinal, construir o meu n.º 9; com ele pude alcançar alguma coisa; fiz dezenas de passeios sobre Paris, fui várias vezes às corridas, dele me apeei à porta de minha casa, na Avenida dos Campos Elíseos, e nele, quase todas as noites, fiz corso sobre o Bois de Boulogne.

A minha presença com ele na revista militar de Longchamps, em 14 de julho de 1903, causou um imenso sucesso.

Foi o mais popular de todos os meus... Filhos, só mais tarde suplantado pela minúscula "Demoiselle".
* *

Depois... Eu ouvia chalaças deste gênero: "O Sr. não faz nada?" "Está sempre fechado em seu quarto, a dormir!"

Nesse ínterim vim ao Brasil; no Rio de Janeiro, em São Paulo, Minas e Estados do Norte, por onde passei, me acolheram os meus patrícios com as mais cativantes festas de que jamais me esquecerei e que tanto me penhoraram.
* *

Durante as minhas horas de intensa alegria e felizes sucessos, só uma saudade me fazia triste: era a ausência de meu pai. Ele que me dera tão bons conselhos e os meios de realizar o meu sonho, não mais estava neste mundo para ver que eu "me tinha feito um homem".

É costume oriental fazer recair sobre os pais todo o mérito, toda a glória, que um homem conquiste na vida. Esta maneira de ver pode ser criticada ou desaprovada, porém, no meu caso, ela seria muito justa, pois, tudo devo a meu pai: conselhos, exemplos de trabalho, de audácia, de economia, sobriedade e os meios com os quais pude realizar as minhas invenções.

Tudo lhe devo, desde os exemplos.

Nascido na Cidade de Diamantina, o Dr. Henrique Dumont, formou-se, em Engenharia, pela Escola Central de Paris e, depois de trabalhar vários anos na E. F. Central (foi em uma casita situada na garganta João Aires que eu nasci) dedicou-se à lavoura no Estado do Rio. Vendo que aí nada de grande podia fazer, partiu com minha mãe e oito filhos, então todos crianças, para Ribeirão Preto, que se achava a três dias de viagem a cavalo da ponta dos trilhos da Mogiana.

Explorara, antes, o interior do Estado de São Paulo e ficou maravilhado com as matas de Ribeirão Preto.
* *

Neste país essencialmente agrícola, ele foi o protótipo do fazendeiro audacioso, e, com uma energia tão grande como a sua confiança no futuro, desbravou sertões e cultivou o solo, aí trabalhou durante dez anos, ao cabo dos quais, por ter sido acometido de uma paralisia, vendeu aquelas "matas", então transformadas em cerca de 5.000.000 de cafeeiros, servidos por uma estrada de ferro particular, por ele construída e que os liga a Ribeirão Preto.

Hoje, para que não morresse na memória dos homens a lembrança do valor desse audacioso, os ingleses, em significativa homenagem, conservaram em seu nome na companhia proprietária atual daquelas terras.

Em 1905, a Dumont Coffee Company colheu, naquele cafezal, 498 mil arrobas; em 1911, obteve uma renda bruta de 3.883 contos de réis.

Um de nossos grandes estadistas, depois de uma visita que fizera a meu pai, escreveu, numa impressão de viagem, referindo-se àquela fazenda: "Ali tudo é grande, tudo é imenso; só há uma coisa modesta; a casa onde mora o fundador de tudo aquilo".
* *

Dormi três anos e no mês de julho de 1906 apresentei-me no campo de Bagatelle com o meu primeiro aeroplano.

Perguntar-me-á o leitor porque não o construí mais cedo, ao mesmo tempo que os meus dirigíveis. É que o inventor, como a natureza de Linneu, não faz saltos; progride de manso, evolui. Comecei por fazer-me bom piloto de balão livre e só depois ataquei o problema de sua dirigibilidade. Fiz-me bom aeronauta no manejo dos meus dirigíveis; durante muitos anos, estudei a fundo o motor a petróleo e só quando verifiquei que o seu estado de perfeição era bastante para fazer voar, ataquei o problema do mais pesado que o ar.

A questão do aeroplano estava, havia já alguns anos, na ordem do dia; eu, porém, nunca tomava parte nas discussões, porque sempre acreditei que o inventor deve trabalhar em silêncio; as opiniões estranhas nunca produzem nada de bom.
* *

Abandonei meus balões e meu hangar no parque do Aero Club.

Em completo silêncio trabalhei três anos, até que, em fins de julho, após uma assembléia do Aero Club, convidei meus amigos a assistirem minhas experiências, no dia seguinte.

Foi um espanto geral. Todo mundo queria saber como era o aparelho.

A suas dimensões eram: comprimento, 10 metros; envergadura, 12 metros; superfície total, 80 metros quadrados; peso, 160 quilos; motor, 24 HP.

Era uma aparelho grande e biplano e assim o fiz, apenas, a fim de reunir maiores facilidades para voar, pois sempre preferi os aparelhos pequenos, tanto que me esforcei para inventa-los, o que consegui com o minúsculo "Demoiselle", o aeroplano ideal para o amador.

Continuando na minha idéia de evolução, dependurei o meu aeroplano em meu último balão, o n.º 14; por esta razão, batizaram aquele com o nome de 14-bis. Com esse conjunto híbrido, fiz várias experiências em Bagatelle, habituando-me, dia a dia, com o governo do aeroplano, e só quando me senti senhor das manobras é que me desfiz do balão.


É verdade que sempre fui de uma felicidade, de uma sorte inaudita em todos os meus empreendimentos aéreos; tive uma boa estrela.

Atribuo, também, essa sorte à minha prudência.

Nesta ordem de idéias; o primeiro problema que tive a resolver foi a possibilidade de levar-se um motor à explosão ao lado de um balão cheio de hidrogênio. Uma noite, tendo suspenso a alguns metros de altura o motor no meu n.º 1, pus-o em marcha; — estava com o seu silencioso — notei que as fagulhas que partiam com os gases queimados iam em todas as direções e poderiam atingir o balão.

Veio-me a idéia de suprimir o silencioso e curvar os tubos de escapamento para o chão. Passei da maior tristeza à maior alegria, pois, quanto maiores eram as fagulhas, com maior força eram jogadas para a terra e, por conseguinte, para longe do balão. Estava, pois, resolvido este problema: o motor não poria fogo ao balão.

Só o que precisava impedir era que, em caso de escapamento dos gases do balão pelas válvulas, estes não viessem alcançar o motor, Para impedir isto, eu sempre coloquei as válvulas bem atrás, à popa do balão, por conseguinte, longe do motor.

O ponto fraco nos aeroplanos era o leme; dei, pois, sempre a maior atenção a este órgão e seus comandos, para os quais sempre empreguei os cabos de aço de 1ª qualidade que são usados pelos relojoeiros nos relógios de igreja.

Lutei, a princípio, com as maiores dificuldades para conseguir a completa obediência do aeroplano; neste meu primeiro aparelho coloquei o leme à frente, pois era crença geral, nessa época, a necessidade de assim fazer. A razão que se dava era que, colocado ele atrás, seria preciso forçar para baixo a popa do aparelho, a fim de que ele pudesse subir; não deixava de haver uma certa verdade nisso, mas as dificuldades de direção foram tão grandes que tivemos de abandonar essa disposição do leme. Era o mesmo que tentar arremessar uma flecha com a cauda para a frente.
* *

Em meu primeiro vôo, após 60 metros, perdi a direção e caí.

Este meu primeiro vôo, de 60 metros, foi posto em dúvida por alguns, que o quiseram considerar apenas um salto. Eu, porém, no íntimo, estava convencido de que voara e, se me não mantive mais tempo no ar, não foi culpa de minha máquina, mas, exclusivamente minha, que perdi a direção.

Com grande velocidade, consertei rapidamente o aparelho, fiz-lhe algumas pequenas modificações e, durante algumas semanas, "rodei" em Bagatelle a fim de me aperfeiçoar no seu difícil governo.

Logo depois, em 23 de outubro, perante a Comissão Científica do Aero Club e de grande multidão, fiz o célebre vôo de 250 metros, que confirmou inteiramente a possibilidade de um homem voar.

Esta última experiência e a de 12 de julho de 1901, me proporcionaram os dois momentos mais felizes de toda a minha vida.
* *

––––––-
Continua…

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

Nenhum comentário: