quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Soares de Passos (A Vida)

A meu irmão

Que! lutar sempre em afanosa guerra
Contra os rigores dum feroz destino!
A cada passo lacerar as plantas
Nesta agra senda que nomeiam vida!
Correr após um sonho, uma esperança
Que leda nos sorria, a vê-la ao cabo
Sumir-se, desfazer-se como o fumo!
Ou, se tocamos o vedado pomo,
Arrojá-lo de nós, murcho e vazio!
Alcançar por um bem, mil dissabores!
Por uma hora de gozo, mil de prantos!
Sofrer, sempre sofrer, não vir um dia
Em que possamos exclamar: ventura!
E é este o cálice de aprazível néctar
Que ao banquete do mundo nos convida?
É este o éden que nos prende os olhos,
E nos faz recuar ante o sepulcro?

Nascemos: com que pena à luz do dia
Surgimos logo do materno seio,
Filhos da dor, obedecendo à origem,
Nos vagidos da infância a anunciamos:
E ainda assim no deslizar sereno
Dos dias infantis, a vida encanta;
A taça da existência tem doçura,
Como se o mel lhe coroasse a borda
Para mais fácil nos tentar os lábios.
O horizonte dos anos se dilata;
Vem a idade do amor. Que belos sonhos
Em mágico painel a vista iludem!
Um ser, que a mente em chama nos diviniza,
Nosso oásis feliz anima todo,
Bem como o sol anima toda a natureza,
Ou a rosa do vale os flóreos prados.
Mas quantos podem na manhã da vida
Colher a rosa de seu mago enlevo?
Quantos a estrela que adoraram crentes
Sentem passar, e desfazer-se em breve,
Não luzeiro do céu, porém da terra,
Meteoro fugaz que baixa ao solo,
E se dissipa, redobrando a noite!

As ilusões do amor se desvanecem:
Desse mundo feliz o homem baqueia
E devorando a mágoa segue avante.
Prometeu afanoso ei-lo procura
Dar alma e vida ás criações que inventa,
Ai! já não belas, mas de impura argila.
Honras, glórias, poder, bens de fortuna,
Ciência austera, festivais prazeres,
A tudo se abalança, aspira a tudo,
E em tudo encontra desenganos sempre,
Ao ponto que fitara jamais chega,
Ou, se o alcança, não lhe dura o gozo.
Ai do que envolto em miserandas faixas,
Embalada sentiu a pobre infância
Cos gemidos da fome! Esse à ventura
Quase nem ousa levantar os olhos:
Perpétuo desalento lhos abate
À triste condição em que nascera.
Planta gerada num terreno estéril,
Não se ergue altiva, não estende os ramos,
Vive entre espinhos, e entre espinhos morre.
Em vão se cansa o triste: raras vezes
A dura terra lhe concede o prémio
Do suor e das lágrimas que verte
No seio ingrato dessa mãe ferina
Um pão acerbo que amassou com pranto,
É o alimento que reparte aos filhos;
E o marco do caminho à cabeceira
Onde desprende o moribundo alento.
Ai dele! mas não menos desditoso
O que em púrpuras e ouro vendo o dia,
Ou conduzido pela mão da sorte,
Chegou ao cumes que a fortuna habita;
E, na posse dos bens que o mundo anseia,
Palpou tremendo seu medonho nada.
Este empunhando o cetro, empalidece,
Sentindo às plantas vacilar-lhe o sólio;
No fastígio da glória aquele geme,
Ao ver o louro que lhe cinge a frente
Pelo bafo da inveja emurchecido.
Um as honras consegue, e as vê sem preço;
Outro as riquezas, e lamenta os dias
Que mais belos perdeu em seu alcance.
Qual, a ciência devassando ousado,
Após longas vigílias estremece
Da dúvida ante o espectro; qual ardente
Das festas no rumor despende a vida,
E a taça do prazer lhe deixa o enfado.

Feliz aquele que em modesta lida,
Isento da ambição e da miséria,
No regaço do amor e da virtude
A vida passa. Mas feliz ainda
Se, das turbas ruidosas afastado,
À sombra do carvalho, entre os que adora,
Sente a existência deslizar tranquila.
Como as águas serenas do ribeiro
Que as herdades pacíficas lhe banha.
Mas, que digo! nem esse. Infindos males
Comuns a todos, seu viver não poupam,
Dum lado a crua guerra lhe sacode
O facho assolador às brandas messes;

A pálida doença, doutro lado,
Dos entes que mais ama o vai privando;
E ele mesmo talvez, infausta presa
Dessa serpente que nos liga à morte,
Nos ecúleos da dor a vida exaure.
E, como se estes males não bastaram,
Sua mesma virtude lhe é suplício.
Compassivo coa dor que os outros sofrem,
A dor alheia o atormenta ainda.
Justo, adora a justiça; e, olhando em torno,
A injustiça e opressão verá reinando;
Verá a inocência vítima do crime,
A virtude humilhada, o vício altivo,
Os prantos da miséria escarnecidos,
Por toda a parte o mal, a dor; e as queixas,
Ai dele, ai dele, se um momento pára
Na atroz contemplação de tantos males!
Ai dele, que turbado e confundido,
Em maldições blasfemará terrível
Da virtude, de si, de Deus, de tudo!

Não! da vida no pélago agitado
Um abrigo não há, não há um porto
Onde possamos descansar tranquilos.
Em nós, dentro em nós mesmos, ruge irada
A tempestade que evitar queremos.
Como a serpente no cristal da linfa,
Na alma serena o sofrimento mora;
Não pode o gozo dos mais belos dias
Encher o abismo que no seio temos.
Em vão, em vão ansiamos a ventura:
Sumos na terra qual viajante exausto
Que ouve o sussurro d'escondida fonte,
E morre à sede sem poder tocá-la.

Vida, tremenda herança d'amarguras,
Eu te hei sondado nos meus próprios males,
E em meus irmãos na dor, nos homens todos:
Grilhão pesado que nos dá o berço,
E que depomos nos umbrais da tumba
A luta, a mágoa, eis os teus dons funestos.
Mas donde a causa do sofrer eterno
Que as gerações às gerações transmitem?
Que um século, tombando de cansaço,
Como um peso importuno lega ao outro?
Donde o crime feroz que um tal castigo
Sobre nós atraiu? Se um Deus é justo,
Que deus, que lei, sem escutar-nos, pôde
A sentença lavrar? Silêncio é tudo!
Em vão, para sabê-lo, em vão mil vezes
Interroguei confuso o céu e a terra:
O céu de bronze não me ouviu a prece,
A terra obscura não me soube o enigma.
Dos profetas na voz, na voz dos sábios,
A dúvida cruel achei somente.
Pedindo à morte a solução da vida,
Desci às tumbas; apalpei as cinzas;
Quis ver se um eco da gelada campa
Surgirá à minha voz; mas foi debalde.
Frias ossadas, carcomidos restos
De quem sofreu também, só me disseram
Que tudo acaba ali. A terra, a terra,
O seio impuro dos famintos vermes:
Eis o refúgio, a habitação amiga
Que após a luta nos espera ao cabo!

Morte, morte, bem vinda sejas sempre,
Em nome da existência eu te saúdo!
Tu reinas pela dor na espécie humana,
E, quem sabe? talvez nesse universo;
O sol, o mesmo sol envolto nas sombras,
Parece reflectir-te as negras asas;
E acaso à tua voz, a cada instante,
Um cometa voraz fulmina um globo.
Por que inda tardas a empunhar o ceptro
Que neste ao menos te pertence há muito?
Ao desterrado do éden por que deixas
O resto do poder que inda te usurpa?
Eia, desprende sobre a terra as asas,
Sobre esta criação, que abandonada
Talvez por seu autor como imperfeita,
Qual nau perdida em tormentosos mares,
Vaga sem rumo nesse espaço etéreo!

Mas que sinistra voz! Silêncio, ó lira!
Não mais prossigas teu cantar blasfemo!
Fanal de salvamento, luz d'esp'rança,
Que na altura do Gólgota brilhaste,
Desce à minha alma que a tristeza inunda!
Desce! de todos resumindo as dores
O cálice d'Ele foi o mais acerba.
Ele sofreu! Soframos, e esperemos!
Depois da noite escura vem o dia:
Depois deste desterro, a eterna pátria!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

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