quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Santos Dumont (O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos) Parte 6, final

Primeiro trataremos do Campo dos Afonsos. Há dois anos o Exército, creio que reconhecendo a pouca praticabilidade desse Campo, o abandonou........ O Aero Club ali instalou o seu Campo de Aviação. Convidado pela diretoria desse clube, há anos, para visitar e dar a minha opinião sobre o dito Campo, disse que o achava mais do que ruim: achava-o péssimo. Aconselhei que procurassem uma grande planície ou, melhor ainda seria, que o Club se ocupasse primeiro da aviação náutica, já que nos deu a natureza um aeródromo náutico único no mundo. O Aero Club não seguiu os meus conselhos.
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É grande a minha tristeza ao ler que o Governo vai de novo tomar posse desse terreno para ali instalar o campo central de aeronáutica!!! Os franceses tiveram a sorte de encontrar bons campos perto de Paris, porém, as vantagens de um campo ótimo são tão grandes que eles foram instalar os seus novos campos quase no extremo da França, em Pau, onde encontraram imensas "landes". Eu estou certo que, ao sul, nós devemos possuir planícies iguais às de Pau, onde se poderá trabalhar sem perigo, nem para o futuro aviador, nem para o aeroplano e onde o ensino será infinitamente mais rápido, graças a poder-se empregar "Pingouins" para o ensino dos principiantes.
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Um principiante, que se familiarize com um desses aparelhos, necessitará de poucas lições para voar. Nos Estados Unidos as escolas de aviação estão muito longe da capital; estão onde se encontram bons campos.

Quanto à Escola naval, eu creio que ela não está mal na Ilha das Enxadas.
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A minha opinião é, pois: para o Exército, a escolha de um vasto campo no sul do Brasil, ou mesmo o de Santa Cruz. Para a Marinha, creio que se deve escolher uma base, para os seus hidroaeroplanos, o mais perto possível da cidade do Rio, que é onde vivem os oficiais e alunos. Aproveito esta ocasião para fazer um apelo aos senhores dirigentes e representantes da Nação para que dêem asas ao Exército e à Marinha Nacional. Hoje, quando a aviação é reconhecida como uma das armas principais da guerra, quando cada nação européia possui dezenas de milhares de aparelhos, quando o Congresso Americano acaba de ordenar a construção de 22.000 destas máquinas e já está elaborando uma lei ordenando a construção de uma nova série, ainda maior; quando a Argentina e o Chile possuem uma esplêndida frota aérea de guerra, nós, aqui, não encaramos ainda esse problema com a tenção que ele merece!

Rio de Janeiro, 16 de novembro de 1917.
Santos-Dumont.

S. Exa. agradeceu-me e disse-me que, no futuro, se tivesse necessidade de meus conselhos, me preveniria.
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O parque de meus dirigíveis, que se achava em St. Cloud, media um décimo de quilômetro quadrado. Quando me lancei na aviação procurei um maior, que foi o de Bagatelle; tinha perto de um quilômetro quadrado. Logo após de meu vôo de 250 metros, vi que este campo era demasiado pequeno e fui instalar-me em Issy-les-Moulinaux, — mais de um quilômetro quadrado — porém, cercado de casas; vi os defeitos. Fui então para St. Cyr, campo militar de somente alguns quilômetros quadrados, porém, contíguo a grandes planícies.
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Vêem, portanto, que dou imensa importância a um campo de aviação; dele depende o êxito na formação de aviadores: sinto pois, que o Aero Club, do qual tenho a honra de ser Presidente Honorário, não tenha seguido os meus conselhos, de abandonar, há muitos anos, o Campo do Afonsos; sinto que ele não tenha se servido do hangar que construí na praia Vermelha, ao lado do mais lindo dos aeródromos — a Baía de Guanabara.

Sei que o Aero Club, vai, agora, abandonar os Afonsos.
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É tempo, talvez, de se instalar uma escola de verdade em um campo adequado. Não é difícil encontra-lo no Brasil. Nós possuímos, para isso, excelentes regiões, planas e extensas, favorecidas por ótimas condições atmosféricas. Antes de tudo, porém, é preciso romper com o nosso preconceito de medir por metros quadrados um campo de aviação e de procura-los nos arrabaldes das grandes cidades.

Em França diz-se que um campo tem tantas dezenas de quilômetros quadrados; em Inglaterra e Estados Unidos, fala-se em milhas quadradas; no Chile e Argentina, fala-se em léguas quadradas; aqui, neste imenso e privilegiado Brasil, fala-se em "metros quadrados". É preciso considerar, antes de tudo, que, mesmo na hipótese de um milhão de metros quadrados isto seria apenas um quilômetro quadrado, apenas 1/36 de uma légua quadrada! Um aeroplano moderno, que faça 200 quilômetros por hora, partindo do centro de um campo de tais dimensões, em menos de 9 segundos estaria fora do perímetro do aeródromo!

Fora do aeródromo, está em zona perigosa, principalmente para os principiantes.

Não falemos nas desvantagens de morarem os alunos longe dos campos. Eles precisam dormir próximo à escola, ainda que para isso seja necessário fazer instalações adequadas, porque a hora própria para lições é, reconhecidamente, ao clarear do dia.
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O nosso governo possui, a duas horas do Rio de Janeiro, o esplêndido e vasto campo de Santa Cruz, com perto de duas léguas quadradas, absolutamente planas.

 O terreno onde houver cupim ou outras irregularidades não servirá.

Margeando a linha da Central do Brasil, especialmente nas imediações de Mogi das Cruzes, avistam-se campos que me parecem bons.

O campo de remonta do exército, no Rio Grande do Sul, deve ser ideal.

Sinto-me perfeitamente à vontade para falar com esta franqueza aos meus patrícios, para quem a minha opinião, porém, parece menos valiosa que para os americanos do norte e chilenos. Sinto-me à vontade porque ela é inspirada pelo meu patriotismo, jamais posto em dúvida, e nunca pelo meu interesse. Nunca me seduziu uma posição oficial ou remunerada, pois pretendo levar a vida que até hoje levei, dedicando o meu tempo às minhas invenções.

Há vinte anos que vivo para a aeronáutica, nunca tive privilégios, fiz vôos sempre ao lado do meu atelier para, apenas, verificar uma invenção de que nunca procurei auferir benefícios.
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Penso que, sob todos os pontos de vista, é preferível trazer professores da Europa ou dos Estados Unidos, em vez de para lá enviar alunos.

Estou certo que os rapazes brasileiros que fossem ao estrangeiro aprender a arte da aviação, se fariam esplêndidos e corajosos aviadores. Entretanto, não nos esqueçamos de que nem todo aviador é bom professor. Para ensinar uma arte não é bastante conhecer-lhe a técnica, mas é preciso, também, saber ensina-la.

É possível que, dentre 4 ou 6 rapazes que forem estudar na Europa, se encontre um, bom professor; isto, porém não passa de uma probabilidade. Mais acertado e mais seguro, portanto, seria escolher, desde logo, alguns bons professores, entre os muitos que há na Europa e nos Estados Unidos, e contrata-los para ensinar a aviação aqui, em território nosso.
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Os aeroplanos devem ser encomendados às melhores casas européias ou americanas, cujos tipos já tenham sido consagrados pelas experiências na guerra.
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Resumindo, pois, penso que não teremos aviação de verdade, enquanto não possuirmos um grande campo, de léguas quadradas, ou mesmo um pequeno, de alguns quilômetros, rodeado, porém, de grandes planícies que, não obstante não pertençam à escola, ofereçam bom terreno para a descida do aparelho em caso de necessidade. Precisamos também de professores experimentados na arte de ensinar aviação e que morem, com os alunos, próximo à escola.
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Já me fizeram sentir que eu não voava mais e, entretanto, pretendo, ainda, dar conselhos. Não obstante, tenho-os dado com a máxima sinceridade e franqueza, certo de que aqueles que me ouvem se lembram de que eu não fui apenas aviador, mas que me foi necessário estudar, pensar, inventar, construir e só depois voar! Nos Estados Unidos, Wright, Curtiss, etc., foram aviadores precursores, já não voam há 10 anos e agora estão encarregados da organização e construção da aeronáutica. Em França, Bleriot, os Farman, os Morane, etc., foram aviadores precursores, não o são mais há muitos anos e também estão utilizados pelos seus governos para a construção e organização da navegação aérea. Clement, Delauney, Marquis de Dion, Renault, etc., foram todos "chauffeurs", porém, agora, são considerados os inventores do automobilismo e estão encarregados da sua construção e organização.

Estes senhores foram "chauffeurs" ou "aviadores", como eu também o fui. Não mais o sou, como também eles também não o são; mas, o dom de inventores, a aptidão de organizadores e de construtores e este conhecimento das necessidades da arte que eles inventaram e praticaram lhes ficou, e os seus governos os têm sabido aproveitar.
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O título de aviador que continuam a dar-me, sem que o mereça, há já dez anos — pois, a última vez que conduzi um aeroplano foi em 1908 — tem ainda, para mim, um outro lado desagradável, e é o de causar desapontamentos a amigos e admiradores nas cidades do interior por onde passo.

No primeiro dia, grande alegria; mas quando são prevenidos que não trouxe aeroplano e que não vou voar, há um grande desapontamento.

Cito um caso que se passou ultimamente. Chego a uma cidadezinha do interior e encontro um amigo e companheiro íntimo de colégio. Havia justos 30 anos que não nos víamos. Grande prazer dos dois por nos encontrarmos. Proponho passeios a pé ou a cavalo, durante os quais discorreríamos sobre os tempos antigos. O meu amigo opõe-se, pois já não está mais em idade de subir montanhas a pé, e mesmo já lhe é desagradável andar a cavalo! Nos nossos passeios, em "charrete", o meu amigo, que é muito espirituoso, fez-me rir contando anedotas da nossa infância; porém, a um momento dado, pára e diz: — Já rimos bastante; agora vamos falar sério: os habitantes da cidade e eu, estamos muito descontentes contigo; pois vens passar aqui alguns dias e não fazes um vôo! Que custa mandares um telegrama e fazer vir o teu "realejo"? Tocarias a manivela e nos mostrarias o que és capaz de fazer!

— Pois bem, caro amigo; você sente-se já cansado para fazer longos passeios a pé ou a cavalo; eu, que tenho a sua idade, com a diferença que levei a vida mais agitada que um homem pode levar, arrisquei-a centenas de vezes e via a morte de perto em várias ocasiões; pois bem, você acha que eu deva ainda praticar esse "sport", o mais difícil de todos e que exige nervos e sangue frio extraordinários?! Não! não é um "realejo", e é por termos nós, os que entramos na luta nos fins do século passado, reconhecido as dificuldades da aviação, a necessidade para o aviador de possuir esplêndidos nervos, desprezo completo e inconsciente pela vida, o que só se encontra na mocidade, e, também, este outro dom dos jovens: a ambição de glória e o entusiasmo, repito, foi por havermos reconhecido tudo isto e não nos encontrarmos mais nestas condições que deixamos de ser aviadores.

É, pois, uma grande homenagem que prestamos aos aviadores do presente.

O meu amigo, um pouco confuso, responde: — "A culpa não é nossa, tinham anunciado que o aviador Santos-Dumont estava na cidade..."
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Eu, para quem já passou o tempo de voar, quisera, entretanto, que a aviação fosse para os meus jovens patrícios um verdadeiro sport.

Meu mais intenso desejo é ver verdadeiras escolas de aviação no Brasil. Ver

o aeroplano — hoje poderosa arma de guerra, amanhã meio ótimo de transporte — percorrendo as nossas imensas regiões, povoando o nosso céu, para onde, primeiro, levantou os olhos o Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão.

SANTOS=DUMONT

FIM

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

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