segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Vicência Jaguaribe (O Samba, da Ficção à Realidade)

A trama da novela “Lado a Lado”, produzida pela Rede Globo e transmitida no horário das seis, ambienta-se no Rio de Janeiro, então capital da recém-proclamada república. O ambiente histórico-social é o do início do século XX, poucos anos após a abolição da escravatura, quando os negros, embora libertos, viviam ainda sob o tacão dos brancos.

Morando nos morros, em situações precárias, os ex-escravos, negros ou mulatos, não frequentavam os lugares frequentados pelos brancos nem tinham acesso ao estudo e ao trabalho bem remunerado. Viviam, pois, de biscates. Homens pobres, negros (e também brancos), que haviam ingressado na Marinha, eram humilhados e até recebiam castigos físicos, o que provocou a Revolta da Chibata, insurreição dos marinheiros da Marinha Brasileira, em cujo primeiro dia houve ameaça de bombardeamento da cidade do Rio de Janeiro, mas os revoltosos tiveram de se render. As mulheres viviam como criadas nas casas de famílias endinheiradas ou vendiam doces e outras comidas, cujas receitas vieram da terra de seus antepassados. Porém, principalmente, eram com frequência assediadas sexualmente pelos brancos, como se ainda vivessem na senzala.

Preservar as tradições de seus ancestrais trazidos contra a vontade da mãe África era a única maneira de construir uma identidade negra. Mas a sociedade dos brancos criava empecilho a esse desejo de individualidade coletiva, considerando ilegal a prática da capoeira e dos ritos religiosos africanos.

Focaliza-se, então, o momento em que surgiu o samba e a reação da sociedade branca àquele ritmo primitivo, de sensualidade explícita. E é esse o ponto mais interessante da novela: os brancos racistas e imunes às transformações e ao advento de uma nova era, lutando para ignorar o ritmo que nascia da musicalidade inerente aos negros e que acabou sendo adotado como o ritmo brasileiro por excelência.

É interessante pensar nessa luta — que acabou gloriosa — hoje, no ano de 2013, nestes dias de carnaval, momento da apoteose do samba e dos sambistas, muitos dos quais descendentes de escravos e herdeiros da genialidade e da coragem dos primeiros sambistas. Eles, os sambistas de hoje, que, em bom número, ainda moram nos morros do Rio de Janeiro e que são, pelo menos durante os dias de carnaval, respeitados e homenageados como os legítimos representantes da brasilidade.

Agora, saiamos um pouco do universo ficcional da novela e entremos na máquina do tempo. Tentemos reconstituir o mundo da realidade em que surgiu o samba.

Comecemos com a origem e o significado da palavra samba. Segundo consta nos variados estudos sobre o assunto, tem o vocábulo origem no termo africano semba, cujo significado é rejeitar, separar. Esse elemento lexical denominou uma dança, a “umbigada”: no centro de uma roda formada por homens e mulheres que batem palmas, fazem coro e tocam instrumentos de percussão, o dançarino solista, com requebros, dá uma umbigada em um companheiro da roda, que vai substituí-lo no centro. Outros instrumentos, importantes para o samba como hoje o conhecemos, foram sendo inseridos nessas manifestações de dança: o ganzá, a cuíca, o reco-reco, o pandeiro.

Mas, ao que parece, o samba cantado está diretamente relacionado às cantigas dos negros nas senzalas, associadas ao ritmo das umbigadas. Esse canto era marcado por uma estrofe solo, com um refrão fixo cantado em coral, como resposta. Essa é uma estrutura tipicamente africana.

Para que surgisse o samba propriamente dito, somou-se uma conjunção de influências: da umbigada, do lundum ou lundu e do maxixe, considerado uma versão nacional da polca, ritmo ao qual foram introduzidos passos sensuais.

Pode-se determinar o espaço físico do surgimento do samba: a cidade do Rio de Janeiro, em uma área conhecida na época como Pequena África — mais especificamente Cidade Nova —, território que compreendia o eixo que vai da Avenida Presidente Vargas ao canal do Mangue, cujos extremos eram a zona do porto, o Centro tradicional e o bairro do Estácio. Concomitantemente surgem, no Rio de Janeiro, os primeiros ranchos carnavalescos, oriundos dos ranchos baianos da Folia de Reis, uma manifestação, pois, da cultura tradicional baiana na cidade. A informação da inserção de elementos da tradição baiana no Rio de Janeiro é importante: os boêmios, músicos e cantores reuniam-se nas casas de mulheres baianas, que organizavam as festas e os desfiles carnavalescos da comunidade.

Essas baianas, chamadas tias, proporcionaram o ambiente para o surgimento do samba, gênero novo na música popular brasileira. Foi na casa de tia Dadá que o compositor carioca Caninha ficou conhecendo o samba-raiado, chamado depois samba de partido-alto, cuja característica era o improviso cantado em forma de desafio por dois ou mais solistas.

A mais famosa dessas baianas, no entanto, foi a tia Ciata — Hilária Batista de Almeida —, baiana de Santo Amaro da Purificação, terra de Caetano Veloso e de Maria Bethânia. A casa de tia Ciata, em cujas festas rolava cachaça em excesso, era frequentada por figuras como Pixinguinha, João da Baiana, Sinhô e Donga. Aliás, uma versão dos fatos diz haver sido Donga o autor do primeiro samba brasileiro, Pelo telefone, composto em 1916, versão contestada pelos outros frequentadores da casa de tia Ciata, com o argumento de que o que se compunha ali era coletivo.

Mas a polêmica em torno do samba Pelo telefone vai além de sua autoria. Há mais de uma versão de sua letra. A versão gravada pela Casa Édison, em 1917, diz o seguinte: O chefe da folia / Pelo telefone / Manda me avisar / Que com alegria / Não se questione / Para se brincar. Outra versão, essa usada pelos que se sentiram lesados por Donga e afirmavam que a letra da música era coletiva, traz os seguintes versos: O chefe da polícia / Pelo telefone / Manda me avisar / Que na Carioca / Tem uma roleta / Para se jogar. Como se vê, é a versão não oficial, isto é, a não gravada na época, a mais aceita hoje. Essa versão, inclusive, está apoiada pelo contexto da época: em maio de 1913, o jornal “A noite”, para denunciar a incapacidade da polícia do Rio de Janeiro, mandou instalar uma roleta no Largo da Carioca, 14, em frente à sua sede. Os repórteres convidavam os passantes a jogar. No dia seguinte, o próprio jornal publicou uma reportagem com o título “O jogo é livre”.

Donga, anos depois, reconheceu que o samba não fora composição sua. Ele simplesmente aproveitara versos das trovas populares.

Finda a visão histórica do nascimento do samba, voltemos ao universo ficcional da novela. Há no teleteatro em foco um casal que poderia muito bem haver existido na realidade: o negro Zé Maria e a mulata Izabel. Ele entrou na Marinha, foi humilhado e chicoteado. Revoltado, insurge-se contra o comandante do navio e participa da “Revolta da Chibata”. Zé Maria foi expulso da Marinha e preso.

Izabel, que no momento da revolta estava noiva de Zé Maria, sem saber que o noivo havia sido preso, sentiu-se abandonada. Desgostosa e carente, acabou seduzida pelo filho branco de um senador da República, e engravida. A esposa do senador fez tudo para separar o filho — um rapazote irresponsável e contumaz sedutor de mulatas — de Izabel, que, aliás, não o amava. A baronesa, como gostava de ser tratada, simulou, inclusive, a morte do neto.

Na época, apresentava-se, no Rio de Janeiro, uma dançarina francesa, que se interessou pelas manifestações artísticas do morro e convidou Izabel a ir com ela para a França divulgar o novo ritmo oriundo das danças e cantigas dos escravos. Izabel, sem notícias de Zé Maria e sofrendo com a perda do filho, acompanha a dançarina. Na França, é sucesso. Estava, assim, começando a internacionalizar-se o samba, ritmo rejeitado pelos  brasileiros da época, grande parte dos quais ex-proprietários de escravos. Não aceitavam os novos tempos e não admitiam que uma dança de movimentos lascivos e ritmo primitivo fosse aceita e aplaudida pela sociedade e representasse o Brasil no exterior.

Projetemos um episódio fantástico. Imaginemos que fosse dado à sociedade carioca, racista e conservadora do início do século XX assistir aos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Imaginemos aqueles senhores tradicionalistas e bem postos na vida, acreditando em uma origem puramente europeia, e aquelas senhoras compenetradas e cientes de sua condição e origem, vendo a apoteose do samba e dos sambistas, em uma festa cujos lugares de destaque são ocupados por negros e mulatos de várias tonalidades de pele; assistindo a uma festa cuja atração principal é a figura escultural e praticamente nua da mulata, aplaudida de pé por homens e mulheres brancos, brasileiros e estrangeiros vindos de todas as partes do mundo.

Que aconteceria às nossas personagens de ficção? Continuariam a comportar-se como escravocratas empedernidos, imunes às inovações socioculturais, ou mudariam de atitude, diante daquelas brônzeas estátuas vivas, dançando no ritmo sensual do samba?

Quem poderá responder a essas questões provenientes de uma situação surrealista? Ninguém, é claro. Mas que esse exercício de imaginação nos leve a refletir sobre a maneira como ainda é tratado em nossa sociedade esse povo que tanto contribuiu para o fortalecimento de nossa cultura e para a formação de uma identidade reconhecida lá fora como indiscutivelmente brasileira — própria do país do carnaval, que vive, nestes dias, mais um carnaval.

Fontes:
A Autora
Imagem = http://www.blogcartaobom.com.br/2012/11/dia-do-samba/

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