sábado, 16 de fevereiro de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 8. Brinquedos

No bonde em que voltei da cidade, hoje à tardinha, vinham crianças com brinquedos.

Perto de mim, um senhor idoso e barbeado fazia ver ao filho de seis anos como funcionava um galante volantim mecânico, que o pequeno, mais por comprazer ao tipo velho, inutilmente lidava por acionar.

Mais adiante, uma senhorita loura, sopesava uma bola nas pontas dos dedos compridos, fazendo-a girar velozmente, com prazer, como sentindo nas papilas, a carícia de uma tatilidade nova, e uma sensação ótica inédita na rotação dos gomos bancos, azuis, amarelos e escarlates. E essa dança de cores parecia emanar, pela mão translúcida e ágil, como um vago punhado de flores e de borboletas, de toda aquela pessoa que se diria a própria Primavera a viajar de bonde.

Perto, uma menina embezerrada olhava esse exercício e essa bola com um ar de proprietária complacente, estéril de uma bola.

Na cidade, quando lá perambulei à cata do bonde, havia azáfama nas lojas de brinquedos e novidades. As crianças eram poucas, porque geralmente os grandes não gostam de sair com crianças e porque, nestes dias de festas, preferem fazer-lhes a clássica surpresa. -Na verdade, os grandes é que se divertem com os presentes que fazem; e, não satisfeitos, ainda se reservam, no seu egoísmo, o direito de saborear a surpresa dos presenteados. É com delícias que aproveitam, entre Natal e Reis, a concessão feita pelos costumes para mergulhar a sua infantilidade envergonhada no mundo maravilhoso das coisas inúteis e bonitas.

Outrora, mais ou menos até Rousseau, considerava-se a criança como um homem pequeno. Os próprios artistas as presentavam como adultos em escala menor. Muito custou reconhecer-se que o homem é que é uma criança crescida. Entretanto, dir-se-ia que isso entra pelos olhos.

Para as crianças ainda não crescidas, tudo é brinquedo.

O brinquedo especializado é uma invenção que os grandes fizeram para se divertirem com eles e com as crianças. Estas muitas vezes, se vêem reduzidas ao papel de usufrutuárias, ou menos ainda, ao de guardas e conservadoras dos bonitos objetos. Para elas, coitadas, tudo é brinquedo. Uma toalha enrolada, que se revestiu de um casaco velho, faz o papel de uma boneca perfeita, ainda melhor do que a própria boneca perfeita. Um cabo de vassoura pode ser um cavalo sem rival, com vantagem de não impor ao dono sua raça, nem os acidentes da sua forma ou do seu caráter, mas com a capacidade preciosa de ser árabe ou ponney pangaré ou ruano, fuá ou poleiro, à vontade. Uma galinha, um ferro de engomar, um grilo ou uma caixa de fósforos são divertimentos mais interessantes e de mais durável prestigio de que o macaco de pau que sobe por um cordel, do que o trenzinho de ferro com túneis e estações, do que o palhaço que gira sobre o calcanhar de pinho e tilinta soalhas e guizos de lata. – Estas observações não são originais, mas apesar disso são justas.

É verdade que os petizes recebem com ânsias esses presentinhos de festas, e fazem a propósito um pouco de rumor. É o atrativo da novidade. É a pressa de ver e experimentar. É oprazer de dizer "meu". É a tentação de fazer inveja aos outros pequenos. É, sobretudo, a mímica do desejo, do alvoroço, da cobiça, do egoísmo apropriador, que os grandes lhes têm ensinado e que os pequenos vão executando, numa adaptação mecânica do sentimento confuso e alvorecente aos recortes do gesto distinto e expressivo.

As crianças amam acima de tudo a espontaneidade da sua própria imaginação, que os brinquedos, quanto mais complicados e perfeitos, mais embaraçam. Ou então preferem a complicação extrema e sempre nova das coisas vivas. Se por natureza são assim, devia deixar-se obrar a natureza. Mas os adultos querem o artifício, todos os gêneros de artifício, e impõem-os às crianças, perturbando-lhes o viço da curiosidade espontânea e da livre investigação. Por isso mesmo, a ciência é o último luxo da humanidade, sendo o seu primeiro desejo.

Fonte:
Domínio Público

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