domingo, 3 de fevereiro de 2013

Gil Vicente (Auto da Lusitânia)


O Auto da Lusitânia, uma das últimas peças de Gil vicente, foi escrito em 1531 e representado pela primeira vez em 1532, perante a corte de D. João III quando nasceu seu filho, D. Manuel.

 A peça trata das bodas de Lusitânia e Portugal (personagens mitológicos), mas Gil Vicente, como muitas vezes faz, mistura no enredo e nos diálogos muitos temas, personagens, e cenas que constituem como "diversões" à margem do tema maior.

 Lusitânia é filha de Lisibea (Lisboa) e do Sol, e por ela se apaixonou um caçador grego de nome Portugal. Quando os amores parecem desencaminhar-se, acorrem às deusas (diesas) gregas, com cuja proteção se decide então o casamento. Este o tema, que se desenrola da seguinte maneira: comça o auto com vários diálogos e recitativos de pessoas comuns acerca dos assuntos de amor e outros, alguns picarescos como convém a uma farsa, até que entra em cena o Licenciado, que faz o papel de narrador e representa Gil Vicente; ele introduz o tema das bodas dizendo que o Sol viu Lisibea nua sem nenhuma cobertura (...) e houve dela uma filha tão ornada se sua luz, que lhe puseram nome Lusitânia, que foi diesa e senhora desta Província. Passados tempos, um famoso cavaleiro grego de nome Portugal ouviu falar da boa caça na serra de Sintra (serra da Solércia), e como este Portugal, todo fundado em amores, visse a formosura sobrenatural de Lusitânia, filha do Sol, improviso se achou perdido por ela.

 O texto tem ressonâncias no presente de Gil Vicente, que busca formar um panorama de sua terra, apreendendo a totalidade de suas raízes culturais.

 O Auto da Lusitânia classifica-se como uma fantasia alegórica. A peça é dividida em duas partes distintas:

 - na primeira parte, assiste-se às atribuições de uma família judaica;

 - na segunda parte, assiste-se ao casamento de Portugal, cavaleiro grego, com a princesa Lusitânia. Dois demônios, Belzebu e Dinato, que aparecem no texto vêm presenciar o casamento e escutam o diálogo entre Todo o Mundo e Ninguém.

 O autor deu o nome de Todo o Mundo e Ninguém às suas personagens principais desta cena. Pretendeu com isso fazer humor, caracterizando o rico mercador, cheio de ganância, vaidade, petulância, como se ele representasse a maioria das pessoas na terra (todo o mundo). E atribuindo ao pobre, virtuoso, modesto, o nome de Ninguém, para demonstrar que praticamente ninguém é assim no mundo.

 "Todo o Mundo" era um rico mercador, e "Ninguém", um homem pobre. Belzebu e Dinato tecem comentários espirituosos, fazem trocadilhos, procurando evidenciar temas ligados à verdade, à cobiça, à vaidade, à virtude e à honra dos homens. 

 Vejamos:

 Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:

 Ninguém: Que andas tu aí buscando?

 Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:
                          delas não posso achar, 
                          porém ando porfiando
                          por quão bom é porfiar. 

 Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?

 Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo
                          e meu tempo todo inteiro
                          sempre é buscar dinheiro
                          e sempre nisto me fundo.

 Ninguém: Eu hei nome Ninguém,
                e busco a consciência.

 Belzebu: Esta é boa experiência:
              Dinato, escreve isto bem.

 Dinato: Que escreverei, companheiro? 

 Belzebu: Que Ninguém busca consciência.
               e Todo o Mundo dinheiro.

 Ninguém: E agora que buscas lá? 

 Todo o Mundo: Busco honra muito grande.

 Ninguém: E eu virtude, que Deus mande
                que tope com ela já.

 Belzebu: Outra adição nos acude:
               escreve logo aí, a fundo,
               que busca honra Todo o Mundo
               e Ninguém busca virtude.

 Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse?

 Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse
                          tudo quanto eu fizesse.

 Ninguém: E eu quem me repreendesse
                em cada cousa que errasse.

 Belzebu: Escreve mais.

 Dinato: Que tens sabido? 

 Belzebu: Que quer em extremo grado
               Todo o Mundo ser louvado,
               e Ninguém ser repreendido.

 Ninguém: Buscas mais, amigo meu? 

 Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê.

 Ninguém: A vida não sei que é,
                a morte conheço eu.

 Belzebu: Escreve lá outra sorte.

 Dinato: Que sorte? 

 Belzebu: Muito garrida:
               Todo o Mundo busca a vida
               e Ninguém conhece a morte.

 Todo o Mundo: E mais queria o paraíso,
                          sem mo Ninguém estorvar.

 Ninguém: E eu ponho-me a pagar
                quanto devo para isso.

 Belzebu: Escreve com muito aviso.

 Dinato: Que escreverei?

 Belzebu: Escreve
               que Todo o Mundo quer paraíso
               e Ninguém paga o que deve.

 Todo o Mundo: Folgo muito d'enganar,
                          e mentir nasceu comigo.

 Ninguém: Eu sempre verdade digo
                sem nunca me desviar.

 Belzebu: Ora escreve lá, compadre,
               não sejas tu preguiçoso.

 Dinato: Quê?

 Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso,
               E Ninguém diz a verdade.

 Ninguém: Que mais buscas?

 Todo o Mundo: Lisonjear.

 Ninguém: Eu sou todo desengano.

 Belzebu: Escreve, ande lá, mano.

 Dinato: Que me mandas assentar?

 Belzebu: Põe aí mui declarado,
               não te fique no tinteiro:
               Todo o Mundo é lisonjeiro,
               e Ninguém desenganado.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/a/auto_da_lusitania

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