domingo, 3 de fevereiro de 2013

José de Alencar (O Ermitão da Glória) Parte 4


VII

O BATISMO

Domingo seguinte a bordo da escuna tudo era festa.

No rico altar armado á popa com os mais custosos brocados, via-se a figura de Nossa Senhora da Glória, obra de um entalhador de São Sebastião que a esculpira em madeira.

Embora fosse tosco o trabalho, saíra o vulto da Virgem com um aspecto nobre, sobretudo depois que o artífice tinha feito a encarnação e pintura da imagem.

Em frente ao altar achavam-se Aires de Lucena, Duarte de Morais e a mulher, além dos convidados da função. Úrsula tinha nos braços, envolta em alva toalha de crivo, a linda criancinha loura, que adotara por filha.

Mais longe, a maruja comovida com a cerimônia, fazia alas, esperando que o padre se paramentasse. Este não se demorou, com pouco apareceu no convés e subiu ao altar.

Começou então a cerimônia do benzimento da Virgem, que prolongou-se conforme o cerimonial da Igreja. Terminado o ato, todos até o último dos grumetes foram por sua vez beijar os pés da Virgem.

Em seguida se passou ao batismo da filha adotiva de Duarte de Morais. Foi madrinha Nossa Senhora da Glória, de quem recebeu a menina o nome que trouxe, pela razão de a ter Aires salvado no dia daquela invocação.

Esta razão porém calou-se; pois a criança foi batizada como filha de Duarte de Morais e Úrsula; e a explicação do nome deu-se com ter ela escapado de grave doença no dia 15 de agosto. Por igual devoção tomou-se a mesma Virgem Santíssima para padroeira da escuna, pois à sua divina e milagrosa intercessão se devia a vitória sobre os hereges e a captura do navio.

Depois da bênção e batismo da escuna, acompanharam todos em procissão o sacerdote que de imagem alçada dirigiu-se à proa onde tinham de antemão preparado um nicho.

Por volta do meio-dia terminou a cerimônia, e a linda escuna desfraldando as velas bordejou pela baía em sinal de regozijo pelo seu batismo, e veio deitar o ferro em uma sombria e formosa enseada que havia na praia do Catete, ainda naquele tempo coberta da floresta que deu nome ao lugar. 

Essa praia tinha dois outeiros que lhe serviam como de atalaias, um olhando para a barra, o outro para a cidade. Era ao sopé deste último que ficava a abra, onde fundeou a escuna Maria da Glória, à sombra das grandes árvores e do outeiro, que mais tarde devia tomar-lhe o nome.

Aí serviu-se lauto banquete aos convivas, e levantaram-se muitos brindes ao herói da festa, Aires de Lucena, o intrépido corsário, cujos rasgos de valor eram celebrados com um entusiasmo sincero, mas decerto afervorado pelas iguarias que trascalavam.

É sempre assim; a gula foi e há de ser para certos homens a mais fecunda e inspirada de todas as musas conhecidas.

Ao toque de trindades, cuidou Aires de voltar à cidade, para desembarcar os convidados; mas com pasmo do comandante e de toda a maruja não houve meio de safar a âncora do fundo.

Certos sujeitos mais desabusados asseguravam que sendo a praia coberta de árvores, na raiz de alguma fisgara a âncora, e assim explicavam o acidente. O geral, porém, vendo nisso um milagre, o referiam mais ou menos por este teor.

Segundo a tradição, Nossa Senhora da Glória agastada por terem-na escolhido para padroeira de um navio corsário, tomado aos hereges, durante o banquete abandonara o seu nicho da proa e se refugiara no cimo do outeiro, onde à noite se via brilhar o seu resplendor por entre as árvores.

Sabendo o que, Aires de Lucena botou-se para a praia e foi subindo a encosta do morro em demanda da luz, que lhe parecia uma estrela. Chegado ao tope, avistou a imagem da Senhora da Glória em cima de um grande seixo, e ajoelhado defronte um ermitão a rezar.

- Quem te deu, barbudo, o atrevimento de roubares a padroeira de meu navio, gritou Aires irado.

Ergueu-se o ermitão com brandura e placidez.

- Foi a senhora da Glória quem mandou-me que a livrasse da fábrica dos hereges e a trouxesse aqui onde quer ter sua ermida.

- Há de tê-la e bem rica, mas depois de servir de padroeira à minha escuna.

Palavras não eram ditas, que a imagem abalou do seixo onde estava e foi sem tocar o chão descendo pela encosta da montanha. De bordo viram o resplendor brilhando por entre o arvoredo, até que chegado à praia deslizou rapidamente pela flor das ondas em demanda da proa do navio.

Eis o que ainda no século passado, quando se edificou a atual ermida de Nossa Senhora da Glória, contavam os velhos devotos, coevos de Aires de Lucena. Todavia não faltavam incrédulos que metessem o caso à bulha.

A crê-los, o ermitão não passava de um mateiro beato, que se aproveitara da confusão do banquete para furtar a imagem do nicho, e levá-la ao cimo do outeiro, onde não tardaria a inventar uma romagem, para especular com a devoção da Virgem.

Quanto ao resplendor era em linguagem vulgar um archote que o espertalhão levara de bordo, e que servira a Aires de Lucena para voltar ao navio conduzindo a imagem.

VIII

A VOLTA

Dezesseis anos tinham decorrido.

Era sobre tarde.

Grande ajuntamento havia na esplanada do Largo de São Sebastião, ao alto do Castelo, para ver entrar a escuna Maria da Glória.

Os pescadores tinham anunciado a próxima chegada do navio, que bordejava fora da barra à espera de vento, e o povo concorria para saudar o valente corsário cujas surtidas ao mar eram sempre assinaladas por façanhas admiráveis.

Nunca ele tornava do cruzeiro sem trazer uma presa, quando não eram três, como nessa tarde em que estamos.

Tornara-se Aires com a experiência um consumado navegante, e o mais bravo e temível capitão de mar entre quantos sulcavam os dois oceanos. Era de recursos inesgotáveis; tinha ardis para lograr o mais esperto marítimo; e com o engenho e intrepidez multiplicava as forças de seu navio a ponto de animar-se a combater naus ou fragatas, e de resistir ás esquadras de pichelingues que se juntavam para dar cabo dele.

Todas estas gentilezas, a maruja bem como a gente do povo as lançava à conta da proteção da Virgem Santíssima, acreditando que a escuna era invencível, enquanto sua divina padroeira a não desamparasse.

Aires tinha continuado na mesma vida dissipada, com a diferença que a sua façanha da tomada da escuna lhe incutira o gosto pelas empresas arriscadas, que vinham assim distrai-lo da monotonia da cidade, além de lhe fornecer o ouro que ele semeava a mãos-cheias por seu caminho.

Em sentindo-se aborrido dos prazeres tão gozados, ou escasseando-lhe a moeda na bolsa, fazia-se ao mar em busca dos pichelingues que já o conheciam às léguas e fugiam dele como o diabo da cruz. Mas dava-lhes caça o valente corsário, e perseguia-os dias sobre dias até fisgar-lhes os arpéus.

Como o povo, também ele acreditava que à intercessão de Nossa Senhora da Glória devia a constante fortuna que uma só vez não o desajudara; e por isso tinha uma devoção fervorosa pela divina padroeira de seu navio, a quem não esquecia de encomendar-se nos transes mais arriscados.

Tornando de suas correrias marítimas, Aires, da parte que lhe ficava líquida depois de repartir a cada marujo o seu quinhão, separava metade para o dote de Maria da Glória e a entregava a Duarte de Morais.

A menina crescera, estava moça, e a mais prendada em formosura e virtude que havia então neste Rio de Janeiro. Queria-lhe Aires tanto bem como à sua irmã, se a tivesse; e ela pagava com usura esse afeto daquele que desde criança aprendera a estimar como o melhor amigo de seu pai. 

O segredo do nascimento de Maria da Glória fora respeitado, conforme o desejo de Aires. Além do corsário e dos dois esposos, só o gajeiro Bruno, agora piloto da escuna; sabia quem realmente era a gentil menina; para ela como para os mais, seus verdadeiros pais foram Duarte de Morais e Úrsula.

Nas torres os sinos a repicarem trindades, e da escuna um batel a largar enquanto roda o cabrestante ao peso da âncora. Vinha no batel um cavalheiro de aspecto senhoril, cujas feições tostadas ao sol ou crestadas pela salsugem do mar respiravam a energia e a confiança. Se nos combates o nobre parecer, assombrando-se com a sanha guerreira, infundia terror no inimigo, fora, e ainda mais neste momento, a expansão jovial banhava-lhe o semblante de afável sorriso.

Era Aires de Lucena esse cavalheiro; não mais o gentil e petulante mancebo; porém o homem tal como o tinham feito as pelejas e trabalhos do mar.

Na ponta da ribeira, que atualmente ocupa o Arsenal de Guerra, Duarte de Morais com os seus, ansioso esperava o momento de abraçar o amigo, e seguia com a vista o batel.

De seu lado Aires também já os avistara do mar, e não tirava deles os olhos.

Úrsula estava à direita do marido, e á esquerda Maria da Glória. Esta falava a um mancebo que tinha junto de si, e com a mão lhe apontava o batel já próximo a abicar.

Apagou-se o sorriso nos lábios de Aires, sem que ele soubesse explicar o motivo. Sentira um aperto no coração, que se dilatava naquela abençoada hora da chegada com o prazer de volver á terra, e sobretudo á terra da pátria, que é sempre para o homem o grêmio materno.

Foi pois já sem efusão e com o passo moroso que saltou na praia, onde Duarte de Morais abria-lhe os braços. Depois de receber as boas-vindas de Úrsula, voltou-se Aires para Maria da Glória que desviou os olhos, retraindo o talhe talvez na intenção de esquivar-se ás carícias que sempre lhe fazia o corsário á chegada.

- Não me abraça, Maria da Glória? perguntou o comandante com um tom de mágoa.

Corou a menina, e correu a esconder o rosto no seio de Úrsula.

- Olhem só! Que vergonhas!... disse a dona a rir.

No entanto Duarte de Morais, pondo a mão na espádua do mancebo, dizia a Aires:

- Este é Antônio de Caminha, filho da mana Engrácia, o qual vai agora para três semanas nos chegou do reino, onde muito se fala de vossas proezas; nem são elas para menos.

Dito o que, voltou-se para o mancebo:

- Aqui tens tu, sobrinho, o nosso homem; e bem o vedes que foi talhado para as grandes cousas que tem obrado. 

Saudou Aires cortesmente ao mancebo, mas sem aquela afabilidade que a todos dispensava. Esse casquilho de Lisboa, que de improviso e a titulo de primo se introduzira na intimidade de Maria da Glória, o corsário não o via de boa sombra.

Quando a noite se recolheu a casa, levou Aires a alma cheia da imagem da moça. Até aquele dia não vira nela mais do que a menina graciosa e gentil, com quem se habituara a folgar. Naquela tarde, em vez da menina, achou uma donzela de peregrina formosura, que ele contemplara enlevado nas breves horas passadas a seu lado.
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continua

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