terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

José de Alencar (O Ermitão da Glória) Parte 5

IX

PECADO


Ia agora Aires de Lucena todos os dias á casa de Duarte de Morais, quando de outras vezes apenas lá aparecia de longe em longe.

Havia ai um encanto que o atraía, e este, pensava o corsário não ser outro senão o afeto de irmão que votava a Maria da Glória, e crescera agora com as graças e prendas da formosa menina.
Mui freqüente era encontrá-la Aires a folgar em companhia do primo Caminha, mas á sua chegada ficava ela toda confusa e atada, sem ânimo de erguer os olhos do chão ou proferir palavra.

Uma vez, em que mais notou essa mudança, não se pôde conter Aires que não observasse:

- Estou vendo, Maria da Glória, que lhe meto medo?

- A mim, Senhor Aires? balbuciou ai menina.

- A quem mais?

- Não me dirá por quê?

- Esta sempre alegre, mas é ver-me e fechar-se como agora nesse modo triste e...

- Eu sou sempre assim.

- Não; com os outros não é, tornou Aires fitando os olhos em Caminha.

Mas logo tomando um tom galhofeiro continuou:

- Sem dúvida lhe disseram que os corsários são uns demônios!...

- O que eles são, não sei, acudiu Antônio de Caminha; mas aqui estou eu, que no mar não lhes quero ver nem a sombra.

- No mar têm seu risco; mas em seco não fazem mal; são como os tubarões, replicou Aires.

Nesse dia, deixando a casa de Duarte de Morais, conheceu Aires de Lucena que amava a Maria da Glória e com amor que não era de irmão.

A dor que sentira pensando que ela pudesse querer a outrem. que não ele, e ele somente, lhe revelou a veemência dessa paixão que se tinha imbuído em seu coração e ai crescera até que de todo o absorveu.

Um mês não era passado, que apareceram franceses na costa e com tamanha audácia que por vezes investiram a barra, chegando até a ilhota da Laje, apesar do Forte de São João na Praia Vermelha.

Aires de Lucena, que em outra ocasião fora dos primeiros a sair contra o inimigo, desta vez mostrou-se tíbio e indiferente.

Enquanto outros navios se aprestavam para o combate, a escuna Maria da Glória se embalava tranqüilamente nas águas da baía, desamparada pelo comandante, que a maruja inquieta esperava debalde, desde o primeiro rebate.

Uma cadeia oculta prendia Aires à terra, mas sobretudo à casa onde morava Maria da Glória, a quem ele ia ver todos os dias, pesando-lhe que o não pudesse a cada instante.

Para calar a voz da pátria, que ás vezes bradava-lhe na consciência, consigo encarecia a necessidade de ficar para a defensão da cidade, no caso de algum assalto, sobretudo quando saía a perseguir os corsários, o melhor de sua gente de armas.

Sucedeu porém que Antônio de Caminha, mancebo de muitos brios, teve o comando de um navio de corso, armado por alguns mercadores de São Sebastião; do que mal o soube, Aires, sem mais detença foi se a bordo da escuna, que desfraldou as velas fazendo-se ao mar.

Não tardou que se não avistassem os três navios franceses, pairando ao largo. Galharda e ligeira, com as velas apojadas pela brisa e sua bateria pronta, correu a Mana da Glória a bordo sobre o inimigo.

Desde que fora batizado o navio, nenhuma empresa arriscada se tentava, nenhum lance de perigo se afrontava, sem que a maruja com o comandante à frente, invocasse a proteção de Nossa Senhora da Glória.

Para isso desciam todos a câmara da proa, já preparada como uma capela. A imagem que olhava o horizonte como a rainha dos mares, girando na peanha voltava-se para dentro, a fim de receber a oração.

Naquele dia foi Aires presa de estranha alucinação, quando rezava de joelhos, ante o nicho da Senhora. Na sagrada imagem da Virgem Santíssima, não via ele senão o formoso vulto de Maria da Glória, em cuja contemplação se enlevava sua alma.

Por vezes tentou recobrar-se dessa alheação dos sentidos e não o conseguiu. Foi-lhe impossível arrancar d'alma a doce visão que a cingia como um regaço de amor. Não era a Mãe de Deus, a Rainha Celestial que ele adorava nesse momento, mas a loura virgem que tinha um altar em seu coração.

Achava-se ímpio nessa idolatria, e abrigava-se em sua devoção por Nossa Senhora da Glória; mas ai estava seu maior pecado, que era nessa mesma fé tão pura, que seu espírito se desvairava, transformando em amor terrestre o culto divino.

Cerca de um mês Aires de Lucena esteve no mar, já combatendo os corsários e levando-os sempre de vencida, já dando caça aos que tinham escapado e castigando o atrevimento de ameaçarem a colônia portuguesa.

Durante esse tempo, sempre que ao entrar em combate, a equipagem da escuna invocava o patrocínio de sua madrinha, Nossa Senhora da Glória, era o comandante presa da mesma alucinação que já sentira, e erguia-se da oração com um remorso, que lhe pungia o coração pressago de algum infortúnio.

Pressentia o castigo de sua impiedade, e se arrojava na peleja receoso de que o desamparasse enfim a proteção da Senhora agravada; mas por isso não lhe minguava a bravura, senão que o desespero lhe ministrava maior furor e novas forças.

X

O VOTO


Ao cabo do seu cruzeiro, tornara Aires ao Rio de Janeiro onde entrou à noite calada, quando já toda a cidade dormia.

Havia tempos que soara no mosteiro o toque de completas; já todos os fogos estavam apagados, e não se ouvia outro rumor a não ser o ruído das ondas na praia, ou o canto dos galos, despertados pela claridade da lua ao nascer.

Cortando a flor das ondas alisadas, que se aljofravam como os brilhantes reçumos da espuma irisada pelos raios da lua, veio a escuna dar fundo em frente ao Largo da Polé.

No momento em que ao fisgar da âncora arfava o lindo navio, como um corcel brioso sofreado pela mão do ginete, quebrou o silêncio da noite um dobre fúnebre.

Era o sino da Igreja de Nossa Senhora do Ó que tangia o toque da agonia Teve Aires, como toda a equipagem, um aperto de coração ao ouvir o lúgubre anúncio. Não faltou entre os marujos quem tomasse por mau agouro a circunstância de ter a escuna fundeado no momento em que começara o dobre.

Logo após abicava à ribeira o batel conduzindo Aires de Lucena, que saltou em terra ainda com o mesmo soçobro, e a alma cheia de inquietação.

Era tarde da noite para ver Duarte de Morais; mas não quis Aires recolher sem passar-lhe pela porta, e avistar-se com a casa onde habitava a dama de seus pensamentos.

Alvoroçaram-se os sustos de sua alma já aflita, encontrando aberta àquela hora adiantada a porta da casa, e as frestas das janelas esclarecidas pelas réstias de luz interior.

De dentro saía um rumor soturno como de lamentos, entremeados com reza

Quando deu por si, achava-se Aires, conduzido pelo som do pranto, em uma câmara iluminada por quatro círios colocados nos cantos de um leito mortuário. Sobre os lençóis e mais lívida que eles, via-se a estátua inanimada, mas sempre formosa, de Maria da Glória.

A nívea cambraia que lhe cobria o seio mimoso, afiava com um movimento quase imperceptível, mostrando que ainda não se extinguira de todo nesse corpo gentil o hálito vital.

Ao ver Aires, Úrsula, o marido e as mulheres que rodeavam o leito, ergueram para ele as mãos como um gesto de desespero e redobraram o pranto

Não os percebia porém o corsário; seu olhar baço e morno se fitara no vulto da moça e parecia entornar sobre ela toda sua alma, como uma luz que bruxuleia.

Um momento, as pálpebras da menina se ergueram a custo, e os olhos azuis, coalhados em um pasmo glacial, volvendo para o nicho de jacarandá suspenso na parede, cravaram-se na imagem de Nossa Senhora da Glória, mas cerraram-se logo.

Estremeceu Aires, e ficou um instante como alheio a si, e ao que passava em torno.

Lembrava-se do pecado de render ímpia adoração a Maria na imagem de Nossa Senhora da Glória, e via na enfermidade que lhe arrebatava a menina, um castigo de sua culpa.

Pendeu-lhe a cabeça acabrunhada, como se vergasse ao peso da cólera celeste; mas de chofre a ergueu com a resolução de ânimo que o arrojava ao combate, e por sua vez pondo os olhos na imagem de Nossa Senhora da Glória, caiu de joelhos com as mãos erguidas.

- Pequei, Mãe Santíssima, murmurou do fundo d'alma; mas vossa misericórdia é infinita. Salvai-a; por penitência de meu pecado andarei o ano inteiro no mar para não a ver; e quanto trouxer há de ser para as alfaias de vossa capela.

Não- eram proferidas estas palavras, quando estremeceu com um sobressalto nervoso o corpo de Maria da Glória. Entreabriu ela as pálpebras e exalou dos lábios fundo e longo suspiro.

Todos os olhos se fitaram ansiosos no formoso semblante, que ia se corando com uma tênue aura de vida.

- Torna a si! exclamaram as vozes a um tempo.

Ergueu Aires a fronte, duvidando do que ouvia. Os meigos olhos da menina ainda embotados pelas sombras da morte que os tinham roçado, fitaram-se nele; e um sorriso angélico enflorou a rosa desses lábios que pareciam selados para sempre.

- Maria da Glória! bradou o corsário arrastando-se de joelhos para a cabeceira do leito.

Demorou a menina um instante nele o olhar e o sorriso, depois volvendo-os ao nicho, cruzou as mãos ao peito, e balbuciou flebilmente algumas palavras de que apenas se ouviram estas:

- Eu vos rendo graças, minha celeste Madrinha, minha Mãe Santíssima, por me terdes ouvido...

Expirou-lhe a voz nos lábios; outra vez cerraram-se as pálpebras, e descaiu-lhe a cabeça nas almofadas. A donzela dormia um sono plácido e sereno. Passara a crise da enfermidade. Estava salva a menina.
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continua...

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