quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

José de Alencar (O Ermitão da Glória) Parte 6

XI

NOVENA

A primeira vez que Maria da Glória saiu da câmara para a varanda, foi uma festa em casa de Duarte de Morais.

Ninguém se cabia de contente com o regozijo de ver a menina outra vez restituída às alegrias da família.

De todos o que mostrava menos era Aires de Lucena, pois por instantes sua feição velava-se com uma nuvem melancólica; mas sabiam os outros que dentro d'alma ninguém maior, nem tamanho júbilo sentira, como ele; e sua tristeza naquele momento era a lembrança do que sofrera vendo a moça a expirar.

Aí estava entre outras pessoas da privança da casa, Antônio de Caminha que se houvera galhardamente na perseguição dos franceses, embora não lograsse capturar a presa a que dera caça.

Não escondia o moço o regozijo que sentia com o restabelecimento daquela a quem já tinha chorado, como perdida para sempre.

Nesse dia revelou Maria da Glória aos pais um segredo que escondia.

- É. tempo de saberem o pai e a mãe que fiz um voto a Nossa Senhora da Glória, e peço sua licença para o cumprir.

- Tu a tens! disse Úrsula.

- Fala; dize o que prometeste! acrescentou Duarte de Morais.

- Uma novena.

- O voto foi para te pôr boa? perguntou a mãe.

Corou a moça e confusa esquivou-se á resposta. Acudiu então Aires que até ali ouvira calado:

- Não se precisa saber o motivo; basta que o voto se fez, para se dever cumprir. Tomo sobre mim o que for preciso para a novena, e não consinto que ninguém mais se encarregue disso; estais ouvindo, Duarte de Morais?

Cuidou Aires desde logo nos aprestos da devoção, e para que se fizesse com o maior aparato, resolveu que a novena seria em uma capela do mosteiro, para a qual se transportaria de seu nicho da escuna a imagem de Nossa Senhora da Glória.

Diversas vezes foi ele com Maria da Glória e Úrsula a uma loja de capelista para se proverem de alfaias com que adornassem a sagrada imagem. O melhor ourives de São Sebastião incumbiu-se de fazer um novo resplendor cravejado de brilhantes, enquanto a menina com suas amigas recamava de alcachofras de ouro um rico manto de brocado verde.

Nestes preparativos consumiam-se os dias, e tão ocupado andava Aires com eles, que não pensava em outra cousa, nem já se lembrava do voto que fizera; passava as horas junto de Maria da Glória, entretendo-se com ela dos adereços da festa, satisfazendo-lhe as mínimas fantasias; essa doce tarefa o absorvia por modo que não lhe sobravam nem pensamentos para mais.

Afinal chegou o dia da novena, que celebrou-se com uma pompa ainda não vista na cidade de São Sebastião. Foi grande a concorrência de devotos que vieram de São Vicente e Itanhaem para assistir à festa.

A todos encantou a formosura de Maria da Glória, que tinha um vestido de riço azul com recamos de prata, e um colar de turquesas com arrecadas de safiras.

Mas suas jóias, de maior preço, as que mais a adornavam, eram as graças de seu meigo semblante que resplandecia com uma auréola celeste.

- Jesus!... exclamou uma velha beata. Podia-se tirar dali, e pô-la no altar que a gente havia de adorá-la como a própria imagem da Senhora da Glória.

Razão, pois, tinha Aires de Lucena, que toda a festa a esteve adorando, sem carecer de altar, e tão absorto, que de todo esqueceu o lugar onde se achava, e o fim que ali o trouxera.

Só quando, terminada a festa, ele saía com a família de Duarte de Morais, acudiu-lhe que não rezara na igreja, nem rendera graças à. Senhora da Glória por cuja milagrosa intercessão escapara a menina da cruel enfermidade.

Era tarde porém; e se passou-lhe pela mente a idéia de tornar à igreja para reparar seu esquecimento, o sorriso de Maria da Glória arrebatou-lhe de novo o espírito naquele enlevo, em que o tivera preso.

Depois da doença da menina dissipara-se o enleio que ela sentia na presença de Aires de Lucena. Agora com a chegada do corsário, em vez de acanhar~e, ao contrário expandia-se a flor de sua graça, e desabrochava em risos, embora roseados pelo pudor.

Uma tarde que passeavam os dous pela ribeira, em companhia de Duarte de Morais e Úrsula, Maria da Glória, vendo embalar-se airosamente sobre as ondas a escuna, soltou um suspiro e vo1tando-se para Lucena, disse-lhe:

- Agora tão cedo não vai ao mar!

- Por quê?

- Deve descansar.

- Somente por isso? perguntou Aires desconsolado.

- E também pelas saudades que deixa aos que lhe querem, e pelos cuidados que nos leva. O pai que diz? Não é assim?

- Certo, filha, que o nosso Aires de Lucena ia tem feito muito pela pátria e pela religião, para dar-nos também aos amigos alguma parte da sua existência.

- Toda vo-la darei doravante; ainda que tenha eu também saudades do mar, das noitadas de bordo, e daquele voar nas asas da borrasca, em que o homem acha-se face a face com a cólera do. céu. Mas, pois. assim o querem, seja feita a vossa vontade.

Estas últimas palavras proferiu-as Aires olhando para a menina.

- Não se pese disso, tornou-lhe ela; que em lhe apertando as saudades, embarcaremos todos na escuna, e iremos correr terras, onde nos levar a graça de Deus e de minha Madrinha.

XII

O MILAGRE

Correram meses, que Aires passou na doce intimidade da família de Duarte de Morais, e no enlevo de sua admiração por Maria da Glória.

Já não era o homem que fora; os prazeres em que outrora se engolfava, de presente os aborrecia, e tinha vergonha da vida dissipada que levara até ali.

Ninguém mais o via por tavolagens e folias, como nos tempos em que parecia sôfrego de consumir a existência.

Agora, se não estava em casa de Duarte de Morais, perto de Maria da Glória, andava pelas ruas a cismar.

Ardia o cavalheiro por abrir seu coração àquela que já era dele senhora, e muitas vezes fora com o propósito de falar-lhe do seu afeto.

Mas na presença da menina o desamparava a resolução que trazia; e sua voz afeita ao comando, e habituada a dominar o rumor da procela e o estrondo dos combates, balbuciava tímida e submissa uma breve saudação.

Era o receio de que a menina voltasse à esquivança de antes, e viesse a tratá-lo com a mesma reserva e acanhamento que tanto o magoava então.

Não se apagara de todo n'alma do corsário a suspeita de ser o afeto de Antônio de Caminha bem acolhido, se não já retribuído, por Maria da Glória.

É certo que a menina tratava agora o primo com afastamento e enleio, que mais se manifestava quando este a enchia de atenções e finezas.

Ora, Aires que se julgava aborrecido por merecer um tratamento semelhante, agora que todas as efusões da gentil menina eram para ele, desconfiava desse acanhamento, que podia encobrir um tímido afeto.

Assim é sempre o coração do homem, a revolver-se no constante ser e não ser em que se escoa a vida humana.

De sair ao mar, era cousa em que Aires já não tocava aos marujos da escuna, que mais ou menos andavam ao corrente do que havia. Se alguém lhes falava de fazerem-se ao largo, respondiam a rir, que o comandante encalhara n'água doce.

Muito tempo já era passado depois de sua última viagem, quando Aires de Lucena, querendo acabar com a incerteza em que vivia, animou-se a dizer à filha adotiva de Duarte de Morais, uma noite ao despedir-se dela:

- Maria da Glória, tenho um segredo para contar-lhe.

O lábio que proferiu estas palavras era trêmulo, e o olhar do cavalheiro retirou-se confuso do semblante da menina.

- Que. segredo é, Senhor Aires? respondeu Maria da Glória também perturba da.

- Amanhã lho direi.

- Olhe lá!

- Prometo.

No dia seguinte por tarde encaminhou-se o corsário para a casa de Duarte de Morais; ia resolvido a declarar-se com Maria da Glória e confessar-lhe o muito que a queria para sua esposa'. e companheira.

Levava o pensamento agitado e o coração inquieto como quem vai decidir de sua sorte. Às vezes apressava o passo, na sofreguidão de chegar; outras o retardava com receio do momento.

À Rua da Misericórdia encontrou-se com um ajuntamento, que o fez parar. No meio da gente via-se um homem idoso, com os cabelos já grisalhos da cabeça e da barba tão longos, que lhe desciam aos peitos e caiam sobre as espáduas.

Caminhava ele, ou antes se arrastava de joelhos, e levava em bandeja de metal um objeto, que tinha figura de mão cortada acima do punho.

Pensou Aires que era esta a cena, muito comum naqueles tempos, do cumprimento solene de uma promessa; e seguiu a procissão com olhar indiferente.

Ao aproximar-se porém o penitente, conheceu com horror que não era um ex-voto de cera, ou milagre, como o chamava o vulgo, o objeto posto em cima da salva; mas a própria mão cortada do braço direito do devoto, que às vezes levantava para o céu o coto mal cicatrizado ainda.

Inquiriu dos que o cercavam a explicação do estranho caso; e não faltou quem lha desse com particularidades que hoje fariam rir.

Tivera o penitente, que era mercador, um panarício na mão direita; e sobreveio-lhe grande inflamação de que resultou a gangrena. No risco de perder a mão, e talvez a vida, valeu-se o homem de São Miguel dos Santos, advogado contra os cancros e tumores,. e prometeu-lhe dar para sua festa o peso em prata do membro enfermo.

Exalçou o Santo a promessa, pois sem mais auxílio de mezinhas, veio o homem a ficar inteiramente são, e no perfeito uso da mão, quando no juízo do físico pelo menos devia ficar aleijado.

Restituído à saúde, o mercador que era muito agarrado ao dinheiro, espantou-se com o peso que lhe haviam tomado do braço enfermo; e achando salgada a quantia, resolveu de esperar pela decisão de certo negócio, de cujos lucros tencionava tirar o preciso para cumprir a promessa.

Um ano decorreu porém sem que o tal negócio se concluísse, e ao cabo desse tempo começou a mão do homem a mirrar, a mirrar, até que ficou de todo seca e rija, como se fora de pedra.

Conhecendo então o mercador que estava sendo castigado por não haver cumprido a promessa, levou sem mais detença a prata que devia ao Santo; mas este já não a quis receber, pois ao amanhecer do outro dia achou atirada à porta da igreja a oferenda que ficara sobre o altar.

O mesmo foi da segunda e terceira vez, até que o mercador vendo que era sem remissão a sua culpa e devia expiá-la, decepou a mão já seca e vinha trazê-la, não só como símbolo do milagre, mas como lembrança do castigo.

Eis o que referiram a Aires de Lucena.
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continua...

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