sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

José de Alencar (O Ermitão da Glória) Parte 8

XV

O NOIVO


Em um mês, que tanto fazia desde a volta de Aires, não lhe dissera Maria da Glória uma palavra sequer acerca da longa ausência.

- Tão alheio lhe sou, que nem se apercebeu do ano que passei longe dela. De seu lado também não tocava o cavalheiro nesse incidente de sua vida1 que desejava esquecer. Quando Duarte de Morais insistia com ele para saber a razão por que se partira tão inesperadamente, e por tanto tempo sem dar aviso aos amigos, o corsário esquivava-se à explicação e apenas respondia:

- Tive notícia do inimigo e fui-me sem detença. Deus Nosso Senhor ainda permitiu que tornasse ao cabo de um ano, e eu lhe rendo graças.

Convenceram-se quantos o ouviam falar assim, que havia um mistério na ausência do cavalheiro; e o povo miúdo cada vez mais persistia na crença de que a escuna estivera encantada todo aquele tempo.

O primeiro cuidado de Aires, logo depois de sua chegada, foi ir com toda a sua maruja levar ao mosteiro de São Bento o preço de tudo quanto haviam capturado, para ser aplicado à festa e ornato da capela de Nossa Senhora da Glória.

Acabado assim de cumprir o seu voto e a penitência a que se tinha sujeitado, não pensou Aires senão em viver como dantes para Maria da Glória, bebendo a graça de seu formoso semblante.

Mas não tornaram nunca mais os dias abençoados do íntimo contentamento em que tinham vivido outrora. Maria da Glória mostrava a mesma indiferença pelo que passava em torno dela; parecia uma criatura já despedida deste vale de lágrimas, e absorta na visão do outro mundo.

Dizia Úrsula que essa abstração de Maria da Glória lhe ficara da doença, e só havia de passar em casando; pois não há para curar as meninas solteiras como os banhos da igreja.

Notara porém Aires que especialmente com ele tornava-se a menina mais arredia e concentrada; e vendo a diferença de seu modo para com Antônio de Caminha, de todo convenceu-se que a menina gostava do primo, e estava-se finando pelo receio de que ele, Aires, pusesse obstáculo a seu mútuo afeto.

Dias depois que essa idéia lhe entrou no espírito, achando-se em casa de Duarte de Morais, sucedeu que Maria da Glória de repente debulhou-se em pranto, e eram tantas as lágrimas que lhe corriam pelas faces como fios de aljôfares.

Úrsula que a viu nesse estado, exclamou:

- Que tens tu, menina, para chorar assim?

- Um peso do coração!... Chorando passa.

E a menina saiu a soluçar.

- Tudo isso é espasmo! observou Úrsula. Se não a casarem quanto antes, vai a mais, a mais, e talvez quando lhe quiserem acudir, não tenha cura.

- Já que se oferece a ocasião, carecemos tratar deste particular, Aires, em que desde muitos dias atrás ando para tocar-vos.

Perturbou-se Aires a ponto que faltou-lhe a voz para retorquir; foi a custo e com esforço que, vencida a primeira comoção, pôde responder.

- Estou ao vosso dispor, Duarte.

- É tempo de saberdes que Antônio de Caminha quer bem a Maria da Glória e já nos confessou o desejo que tem de a receber por esposa. Também a pediu o Fajardo, sabeis, aquele vosso camarada; mas esse é muito velho para ela; podia ser seu pai.

- Tem a minha idade, com diferença de meses, observou Aires com uma expressão resignada.

- Assentei não decidir sobre isso em vossa ausência, pois embora vos considerássemos perdido, não tínhamos essa certeza; e agora que nos fostes felizmente restituído, a vós compete decidir da sorte daquela que tudo vos deve.

- E Maria da Glória?... perguntou Aires já senhor de si. Retribui ela o afeto de Antônio de Caminha; e o quer por marido?

- Sou capaz de jurar, acudiu Úrsula.

- Não consenti que se lhe falasse nisto, sem primeiro sabermos se era de vosso agrado essa união. Mas ela ai está; podemos interrogá-la se o quereis, e será o melhor.

- Avisais bem, Duarte.

- Ide, Úrsula, e trazei-nos Maria da Glória; mas não careceis de preveni-la.

Com pouco voltou a mulher de Duarte acompanhada pela menina.

- Maria da Glória, disse Duarte, vosso primo Antônio de Caminha pediu vossa mão, e nós desejamos saber se é de vosso agrado casar-vos com ele.

- Já não sou deste mundo, para casar-me nele, respondeu a menina.

- Deixai-vos de idéias tristes. Haveis de recobrar a saúde; e com o casamento voltará a alegria que perdestes!

- Essa mais nunca!

- Enfim decidi de uma vez se quereis Antônio de Caminha por marido, pois melhor não creio que possais achar.

- É do agrado de todos, este casamento? perguntou Maria da Glória fitando os olhos em Aires de Lucena.

- De todos, começando por aquele que tem sido vosso protetor, e que tanto, se não mais do que vossos pais, tinha o direito de escolher-vos um esposo.

- Pois que foi escolhido por vós, Senhor Aires, aceito.

- O que eu ardentemente desejo, Maria da Glória, é que ele vos faça feliz.

Um triste sorriso desfolhou-se pelos lábios da menina.

Aires retirou-se arrebatado, porque sentiu romper-lhe do seio o soluço, por tanto tempo recalcado.

XVI

A BODA


Eram cerca de 4 horas de uma formosa tarde de maio.

Abriam-se de par em par as portas da Matriz, no alto do Castelo, o que anunciava a celebração de um ato religioso.

Já havia no adro de São Sebastião numeroso concurso de povo, que ali viera trazido pela curiosidade de assistir a cerimônia.

À parte, em um dos cantos da igreja, recostado ao ângulo, via-se um velho marujo que não era outro senão o Bruno.

O contramestre não estava nesse dia de boa sombra; tinha um semblante carrancudo, e às vezes fechando a mão calejada ferrava um murro em cheio na carapuça.

Quando seus olhos, espraiando-se pelo mar, encontravam a escuna, que de âncora a pique balouçava-se sobre as ondas, prestes a fazer-se de vela, o velho marujo soltava um suspiro ruidoso.

Depois voltava-se para a Ladeira da Misericórdia, como se contasse ver chegar desse lado alguma pessoa, por quem estivesse esperando.

Não se passou muito, que não apontasse no alto da subida, um préstito numeroso, o qual seguiu direito á portaria da Matriz.

Vinha no centro Maria da Glória, vestida de noiva, e cercada por um bando de virgens, todas de palma e capela, que iam levar ao altar a sua companheira.

Seguiam-se Úrsula, as madrinhas e outras damas convidadas para a boda, a qual era sem dúvida das de maior estrondo que se tinham celebrado até então na cidade de São Sebastião.

Aires de Lucena assim o determinara, e de seu bolso concorreu com o cabedal necessário para a maior pompa da cerimônia.

Logo após as damas, caminhava o noivo, Antônio de Caminha, entre os dois padrinhos, e no meio de grande cortejo de convidados, dirigido por Duarte de Morais e Aires de Lucena.

Ao entrar a portada da igreja, Aires destacou-se um momento para falar a Bruno, que avistando-o, viera a ele:

- Aprestou-se tudo?

- Tudo, meu capitão.

- Ainda bem; daqui a uma hora partiremos, e para não mais voltar, Bruno.

Ditas estas palavras, Aires entrou na igreja. O velho marujo que adivinhara quanto sofria naquele momento o seu capitão, ferrou outro murro na carapuça, e tragou o soluço que lhe estava estortegando na garganta.

Dentro da Matriz já os noivos tinham sido conduzidos ao altar, onde os esperava o vigário paramentado para celebrar o casamento, cuja cerimônia logo começou.

O corsário, de joelhos em um dos ângulos mais obscuros do corpo da igreja, assistia de longe ao ato; mas de momento a momento acurvava a fronte sobre as mãos esclavinhadas, come absorvido em fervente oração.

Não rezava, não; bem o quisera; mas um tropel de pensamentos se agitava em seu espírito abatido, que o arrastava ao passado, e o fazia reviver os anos devolvidos.

Repassava na mente seu viver de outrora, e acreditava que Deus lhe enviara do céu um anjo da guarda para o salvar. No caminho da perdição, ele o encontrara sob a forma de uma gentil criança; e desde esse dia sentira despertarem em sua alma os estímulos generosos, que o vício nela havia sopitado.

Mas por que, tendo-lhe enviado essa celeste mensageira, lha negara Deus quando a quis fazer a companheira de sua vida, e unir ao dele o seu destino?

Aí lembrou-se de que já uma vez Deus a quisera chamar ao céu, e só pela poderosa intercessão de Nossa Senhora da Glória a deixara viver, mas para outro.

- Antes não houvésseis atendido ao meu rogo, Virgem Santíssima! balbuciou Aires.

Nesse instante Maria da Glória, de joelhos aos pés do sacerdote, voltou o rosto com súbito movimento e fitou no cavalheiro estranho olhar, que a todos surpreendeu.

Era o momento em que o padre dirigia a interrogação do ritual; e Aires, prestes a ouvir o sim fatal, balbuciava ainda:

- Morta, ao menos ela não pertenceria a outro.

Um grito repercutiu pelo âmbito da igreja. A noiva caíra desmaiada aos pés do altar, e parecia adormecida.

Prestaram-lhe todos os socorros; mas embalde, Maria da Glória rendera ao Criador sua alma pura, e subira ao céu sem trocar a sua palma de virgem pela grinalda de noiva.

O que tinha cortado o estame da suave bonina? Fora o amor infeliz que ela ocultava no seio, ou a Virgem Santíssima a rogo de Aires?

São impenetráveis os divinos mistérios, mas podia nunca a filha ser a esposa feliz daquele que lhe roubara o pai, embora tudo fizesse junto depois para substitui-lo?

As galas da boda se trocaram pela pompa fúnebre; e á noite, no corpo da igreja, ao lado da essa dourada via-se ajoelhado e imóvel um homem que ali velou naquela posição, até o outro dia.

Era Aires de Lucena.
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continua...

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