sábado, 15 de janeiro de 2022

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 43 –

As estações do ano são maravilhosas - cada uma com suas nuances, seus encantos, suas belezas. E inspiram e seduzem de variadas formas. Uma delas é a gastronomia. As frutas estão sempre presentes, cada uma obedecendo o clima que lhe é apropriado. O mesmo acontece com as verduras, as hortaliças . . .

E o outono no sul do Brasil tem uma peculiaridade que só acontece por aqui - colhe-se o pinhão, que é semente da araucária, tradicional nas florestas, nas campinas, nas planícies. E nos cânions do planalto.

Entre abril e maio as pinhas (frutos) maduras soltam os pinhões, tão apreciados como alimento, quanto cobiçados pelos comerciantes. São comuns algumas cenas . . .

Manhã domingueira, junho, invernia. Na caminhada habitual pela estrada da mata levamos um bornal para juntar o pinhão que pretendemos colher. A brisa é fria, os passos, curtos, a atenção é total. Colhemos as sementes (pinhões) da próxima sapecada. Ajunto versos entre as grimpas. E vou advertindo a companhia:

Vá em frente devagarinho  
para que nada se perca,  
nem que atrás do pinhãozinho  
tenhas que varar a cerca.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Sammis Reachers (Aidano e o marimbondo de fogo)

Nosso amigo Aidano é um camarada polivalente. Mecânico de mão cheia, já foi gerente de loja, trabalhou em agência de aluguel de automóveis e por fim resolveu ganhar a vida como motorista de ônibus.

O ocorrido que iremos relatar aconteceu enquanto Aidano trabalhava na empresa Fagundes, em São Gonçalo. Uma das linhas onde nosso amigo  ficou efetivado foi na linha Alcântara x Curuzu, que ele mesmo classificou como "a melhor linha de ônibus em que já trabalhei".

Aidano trabalhava com uma cobradora da pá virada, enfezada e meio doida. Em certa viagem, ainda em Alcântara, o ônibus quase sempre era tomado por estudantes, que faziam a maior algazarra no veículo, enquanto voltavam para suas casas no Curuzu. A cobradora, muito aporrinhada, dizia para Aidano:

- Quando chegarmos no Curuzu, naquela rua cheia de buracos e quebra-molas, pode acelerar o ônibus pra essa galerinha que gosta de agitar, sentir um agito de verdade.

- Mas e você lá atrás? (as roletas ainda ficavam na parte de trás do veículo).

- Não esquenta comigo não, eu levanto e vou em pé. Mete bronca!!!

Pois assim Aidano fazia: era chegar no Curuzu e ele acelerava a velha jardineira à toda, botando a molecada pra pular. A cobradora vibrava, vendo o sofrimento dos agitadores...

Certa feita, chegando no Curuzu na viagem fatídica, nosso companheiro fez conforme o combinado. Mas, de repente, um grande marimbondo entrou pela janela ao lado de Aidano, e, sem ele ver, foi pousar diretamente em seu colo. Foi aí que o inacreditável aconteceu. O Infeliz do inseto foi dar uma ferroada lá, justamente no ponto fraco do homem; Ele sentiu aquela  pontada e imediatamente afastou o marimbondo. Mas em instantes a ferroada fez efeito e Aidano passou a gritar de dor, fazendo caras e bocas, xingando mais que a saudosa Dercy Gonçalves, mas sem diminuir a velocidade do veículo. Afinal, ele pensava, precisava chegar logo no ponto final para ir ao banheiro e avaliar o estrago, além de poder jogar uma água naquela fervura.

Enquanto isso, a molecada, já meio acostumada com o pula-pula, gritava adoidado. E lá de trás, em pé ao lado da roleta, a cobradora, ao ver Aidano berrando como um louco, imaginou que ele estava zoando junto com os moleques devido ao pula-pula, e resolveu entrar na onda: passou ela também a gritar e a rir alucinadamente, enquanto Aidano berrava e acelerava e o ônibus corria e sacolejava como se fosse desmanchar-se! Quem visse de fora aquela zona pensaria que aquilo era ônibus especial levando foliões de carnaval...

Pobre Aidano, somente ao chegar no ponto final é que pode ver que o lugar atingido estava inchado, do tamanho de uma laranja, e das grandes...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Hans Christian Andersen (O Caracol e a Roseira)


Em volta do jardim havia um bosque de avelãs e mais adiante se estendiam os campos e os prados, nos quais haviam vacas e ovelhas. Porém, no meio do jardim havia uma roseira em plena floração. A seus pés estava um caracol, o qual valia muito, segundo a sua própria opinião.

- Espere que chegue o meu tempo, - dizia - farei muito mais do que dar rosas, avelãs ou leite, como as vacas ou ovos como as galinhas.

- Espero muito de você! - respondeu a Roseira - Poderei saber quando veremos essas maravilhas que tanto anuncia?

- Levarei para isso o tempo que achar necessário. - replicou o Caracol - Você sempre tem tanta pressa em seu trabalho, que não chega a despertar a curiosidade de ninguém.

No ano seguinte, o Caracol estava quase no mesmo lugar de antes, isto é, ao Sol e ao pé da Roseira. Esta estava cheia de botões, que começavam a abrir-se, mostrando umas rosas magníficas, sempre viçosas e novas. E o Caracol, mostrando meio corpo para fora da concha, esticou seus tentáculos e os encolheu novamente, para voltar a esconder-se.

- Tudo tem o mesmo aspecto do ano passado. Não se vê o mínimo progresso em nenhum lugar. A Roseira está coberta de rosas... Mas nunca fará nada de novo.

Passou-se o verão e logo após o outono. A Roseira dera rosas lindas, até que começaram a cair os primeiros flocos de neve.

O tempo ficou úmido e tempestuoso e a Roseira se inclinou até o solo, enquanto o Caracol se escondia dentro da terra.

Começou novo ano e a Roseira reviveu. O Caracol também apareceu.

- Você já é uma roseira velha, - disse o Caracol - de forma que logo secará. Você já deu ao mundo tudo o que havia dentro de si. E se isso valeu alguma coisa, é assunto que não tenho tempo de examinar, mas o certo é que você não fez nada para o seu aperfeiçoamento, senão teria produzido algo diferente. Pode negá-lo? E agora você se converterá numa vara seca e desnuda. Entende o que digo?

- Está me alarmando! - exclamou a Roseira - Nunca pensei nisso. Jamais imaginei o que está dizendo.

- Não, você não se preocupou muito em pensar em algo. Porém, nunca pensou em averiguar a razão de sua floração, por que você produz flores? E por que motivo o fazia sempre de forma igual?

- Não! - replicou a Roseira - Dei flores com a maior alegria, porque não podia fazer outra coisa. O Sol era tão quente e o ar tão bom!... Eu bebia o orvalho e a chuva; respirava... E vivia. Logo me chegava novo vigor da terra, assim como do céu. Experimentava um certo prazer, sempre novo e maior, e era obrigada a florescer. Tal era a minha vida, não poderia fazer outra coisa.

- Você sempre levou uma vida muito cômoda. - observou o Caracol.

- Na realidade, sinto-me muito favorecida, - disse a Roseira - e, de agora em diante, não vou possuir tantos bens. Você possui uma dessas mentes inquiridoras e profundas e de tal maneira é bem dotado, que não duvido de que assombrará o mundo sem demora.

- Não tenho tal propósito. - replicou o Caracol - O mundo não é nada para mim. Que tenho a ver com ele? Já tenho muito o que fazer comigo mesmo.

- Em todo caso, não temos o dever, na terra, de fazer o que pudermos pelo bem dos demais e de contribuir para o bem comum com todas as nossas forças? Que foi que você já deu ao mundo?

- Que foi que eu dei? Que lhe darei? Pouco me importa o mundo. Produza as suas rosas, porque sabe que não pode fazer outra coisa, que as avelãs deem avelãs e as vacas leite. Cada um de vocês possui um público especial, eu tenho o meu, dentro de mim mesmo. Vou entrar dentro de mim e permanecer aqui. O mundo para mim não é nada e não me oferece o mínimo interesse.

E assim o Caracol entrou em sua casa e se fechou.

- Que lástima! - exclamou a Roseira - Não posso colocar-me num lugar abrigado, por mais que o deseje. Sempre tenho que dar rosas e mudas de roseira. As folhas caem ou são arrastadas pelo vento e o mesmo acontece com as pétalas das flores.

Em todo o caso, eu vi uma das rosas entre as páginas do livro de orações da dona da casa, outra de minhas rosas foi colocada no peito de uma jovenzinha muito formosa, e outra, enfim, recebeu um beijo dos lábios suaves de um menino, que se entusiasmou ao vê-la. Tudo isso me encheu de felicidade e será uma das recordações mais gratas de toda a minha vida.

E a Roseira continuou florescendo com a maior inocência, enquanto que o Caracol continuava retirado dentro da sua viscosa casa. Para ele o mundo não valia nada.

Passaram-se os anos. O Caracol voltou para a terra e a Roseira também. Do mesmo modo, a rosa seca no livro de orações já desaparecera, mas no jardim floresciam novas rosas e também havia novos caracóis, e se escondiam dentro de suas casas, sem se incomodarem com os outros porque para eles o mundo não representava nada.

Teremos que contar também a história deles. Não, porque, no fundo, não se diferenciariam nada daquilo que já contamos.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 17

 

A. A. de Assis (Ainda existem poetas?)

Houve tempo em que quase todo mundo gostava de poesia. Nem todos escreviam versos, porém era raro achar alguém que não soubesse de cor algumas estrofes dos grandes bardos: Gonçalves Dias, Castro Alves, Casimiro de Abreu, Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Cruz e Sousa, Olegário Mariano, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meirelles, Lilinha Fernandes, Helena Kolody, Vinícius de Morais, Mário Quintana, Manoel de Barros...

Acabaram os poetas? Claro que não. Apenas perderam visibilidade. Quintana e Manoel de Barros foram dois dos últimos nacionalmente conhecidos. Dos novos poetas pouca notícia se tem. Hoje em dia só conseguem ser famosas as pessoas que fazem muito sucesso como astros ou estrelas da televisão ou dos esportes. Mesmo na política dificilmente aparece algum grande “ídolo”. Somos todos uma multidão de anônimos.

Em Maringá existem numerosos poetas. Em qualquer lugarzinho há pelo menos um. No Brasil todo, se você procurar, encontrará milhares. Alguns mais ilustrados, outros mais modestos, mas todos capazes de transformar palavra em arte.

Poeta profissional, que vive de vender poesia, não conheço. Porém poetas amadores, que escrevem por amor às letras, há de bastante. Tanto que quase toda cidade tem uma Academia de Letras ou alguma outra associação literária.

O público geral não conhece a produção deles, até porque a chamada grande mídia não tem o costume de lhes dar espaço. É mais ou menos como futebol de botão. Em todo lugar há gente que gosta de tal brincadeira, no entanto jornal nenhum fala desse tipo de jogo.

A correria dos tempos modernos tem algo a ver com isso. Ninguém mais tem tempo para ler poesia. Seria uma raridade achar hoje alguém que soubesse de cor o “Navio Negreiro” ou um soneto de Camões. Para ganhar leitores, muitos autores têm então preferido escrever poemas curtinhos. Uma trova se lê em oito segundos; um haicai em seis segundos.

Pouca gente sabe disso, mas existem uns mil bons haicaístas no Brasil. Trovadores há cerca de dois mil. Eles se conhecem uns aos outros graças ao gosto comum pela poesia, relacionam-se via internet, têm boletins e blogues para divulgação dos seus versos, participam de concursos e encontros de confraternização em diferentes cidades. Ou seja: têm seu próprio mundo, e nisso encontram uma bela e barata forma de fazer amigos e alegrar a vida.

Há, sim, muito poeta ainda. Seja ele um doutor em literatura ou um cantador de esquina, o importante é que nos seus versos a poesia permanece viva.

E quase todo mundo continua gostando. Basta dispor de uns minutos de tempo livre para ouvir uns versinhos e o mais seco dos ouvintes se emociona e encanta.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 06-1-20)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Versejando 96

 
Dia 11 havia postado esta trova, graças ao alerta de Carolina Ramos que apontou um erro na métrica do 3. verso, envio novamente, corrigido.

Aparecido Raimundo de Souza (Enquanto círculos incompletos devoravam o absurdo...)

EU ESTAVA BRABO, INVOCADO, enfurecido, colérico, chateado, entristecido, tipo uma aeronave envelhecida, cheia de voos interrompidos, tudo porque não havia encontrado o bairro, tampouco a rua da casa dela, nem o ponto indicado como referência. Num descompasso de agonia dei meia volta decidido a ir embora, a sumir de vez. Apagar o nome daquela infeliz, esquecer que ela nunca existiu em meu pensamento.

Foi quando me veio à lembrança um fato que até aquele momento não havia colocado em prática. Estanquei os passos, meio que atarantado, depois de andar por quase uma hora a pé. A trezentos metros da estação que me levaria para casa, resolvi jogar com essa carta, aliás, a derradeira que me restava na manga. Carta de feição amarga, como um cálice de fel. O celular. Eu não havia ligado para o número que ela havia me passado. Quem sabe!...

Se esse recurso falhasse, jogaria fora minha onda de ódio junto com o aparelho celular na primeira lata de lixo que encontrasse pela frente. De roldão, o currículo vitae com tudo de bom que havia lido a respeito da vida pregressa daquela jovem desconhecida. “Menina difícil - pensei comigo - essa ilustre sem rosto”. Contudo, para meu espanto, a sumida atendeu na hora, com um “alô!” que me acendeu a esperança!

Finalmente! Expliquei, em rápido discurso, que não havia encontrado o endereço e concluí quase implorando que viesse ter comigo o mais rápido possível. Em resposta ela se abriu em mesuras esclarecendo que tomaria um banho, trocaria de roupas e pegaria uma “uber”. Não daria para vir de trem. A estação ficava muito longe de onde estava. Segundo seus cálculos, no máximo em quarenta minutos nosso encontro seria consumado. Passei a ela a minha localização e me postei à espera. Enquanto aguardava, me restou a ideia de comer alguma coisa.

Aliviado por ter obtido uma resposta favorável, me acomodei numa lanchonete. Optei por uma das mesinhas dispostas numa espécie de varandão em formato de semicírculo. Desse espaço, assistiria ao vai e vem intermitente da avenida que cruzava frontal às escadarias da estação do Metrô justaposteadas à uma praça de nome engraçado. Vigiaria também, de contrapeso, o movimento das calçadas.

Mesmo tom, quem saia e entrava no estabelecimento. Na verdade, meu empenho não era outro senão o de bisbilhotar a pessoa que aguardava. Eu a veria primeiro, sem que me enxergasse logo que saltasse do carro. Sorvendo o refrigerante (acompanhado de um sanduíche de queijo quente), permaneci por quase duas horas como um menino bobo, no aguardo da nobre donzela. Como seria? Branca, preta, loira, morena? Alta, baixa, feia, bonita, desdentada? Simpática, chata, meiga, nojenta? Dócil, pegajosa ou apetitosa como esses docinhos de banana que a gente come de sobremesa nesses restaurantes sofisticados das grandes metrópoles?

No meu devaneio, passei a desenhar a criatura com pinceladas rápidas e objetivas, na angústia descontrolada de obter uma imagem da sua misteriosa figura. Nesta vasca desenfreada, viajei um pouco na maionese, atropelando os pensamentos que iam e vinham numa celeridade voraz. Seria essa estranha mais uma, ou uma a mais, que pintaria no pedaço a pleitear o cargo de musa e dona do meu coração?

Bateria somente um papo informal e depois me viraria às costas e voltaríamos cada um com seu vazio interior de regresso para nossos mundinhos particulares? A bem da verdade, nessa procura, me sentia enfastiado e deprimido. Quase certo regressar com as desilusões cotidianas para meu canto de origem carregando mais um fardo pesado para juntar aos outros na vasta coleção das frustrações de sempre. Contudo, algo no fundo do meu “eu”, me animava. Um não sei o que dizia que essa coalizão não redundaria inepta como as anteriores.

Sob o signo da esperança, a encantada chegaria triunfal, simplesmente não se esbarraria comigo como uma manequim desfilando etiquetas dentro de uma vitrina repleta de luzes de neon. Meu olhar, impaciente, buscava a sua silhueta em todos os cantos da tarde. Meu coração pulsava mais forte em cada rosto que cruzava. Em cada ser que atravessava, fosse indo ou vindo, ou saltando de um automóvel ou táxi. Nessa voracidade inexplicável, eu encorajava uma agonia pesada, um incômodo que machucava por dentro. Uma dor forte que se fechava, de repente e traçava rumos indomados dentro da multidão deflagrada.

Em paralelo, meu “eu” interior, como tentando decifrar uma imagem real e palpável, aproveitava a deixa e criava expectativas, ou melhor, abrigos onde agasalhava a presença dela, embalada por cores vivas em matizes jamais sonhados. Para deleite de meus olhos, para encanto de minha alma, a estrangeira, finalmente, agraciou. Diria que realçou, resplandeceu. Notei nela, logo que saltou e se pôs de pé, o semblante preocupado, quase intransponível, sob a pesada maquiagem que me recordou, num rápido relance, uma deusa egípcia.

A cândida veio vindo se achegando meio temerosa, meio “será que é ele, será que devo perguntar antes?!”. Como se adivinhasse esses seus pensamentos me antecipei atrevido e correndo ao seu encontro, indaguei pressuroso: “é você, é você, a pretendida que procuro?”. Um sim vibrou como o som de um teclado de órgão ensaiando uma canção suave, impregnada de quimeras desconhecidas, famintas de muitas palavras. No instante seguinte, meu peito se contraiu.

Minha alma em ebulição festiva se ajoelhou diante da sua beleza. Estarrecido, eu homem vivido, de muitos anos nas costas, me desmoronei num labirinto sem volta, para alcançar o tamanho da sua magia. A satisfação que corria ligeira fustigou tudo dentro de mim. Aflorou por inteiro. Saltou, pulou e encheu de variadas cores, os meus olhos esbugalhados da sua meiguice ímpar. Ali, ao meu lado, finalmente, a minha metade que tanto procurava. As muitas faces por mim desenhadas: a menina flor, a rainha, a fascinação se materializando em arroubos e “donaires”. Igualmente essas afabilidades se transformaram em tenros botões de rosas se abrindo ao mesmo tempo cheio de efeitos especiais.

Como passarinhos inventados com penas vermelhas e amarelas voando no azul do meu infinito e fazendo refletir no meu espelho da alma, o arroubamento de me soltar por espaços nunca pisados, em troca de horizontes desconhecidos e jamais imaginados me adoidei. Saí do chão. Tantos anos depois, ainda a vejo assim. Imutável, inimitável. Pura como no esbarro da primeira vez. Sinto seu medo se formando dentro do carro branco. Recordo seu perfil tímido, meio que oscilante, quieto, refugiado ao lado do motorista que a trouxera para o nosso bate papo.

Apesar do tempo passado, palmilhado, ainda consigo trazer à tona, como num desses filmes de curta metragem, o deleite, a mesma galhardia da animação poética que nasceu quando a vi naquele longínquo início de março, faltando alguns dias para as velinhas do meu aniversário. Essa deidade ainda tem o toque certo, o gracejo que me agitou e me fez tremer desde a base à raiz dos cabelos. Ainda agora ela carrega no conjunto que compõem o seu corpo, a nota musical que acolheu e agasalhou a minha alma e a deixou em regozijo de festa. Essa mulher incrivelmente preserva intacto o recheio perfeito que guardo a sete chaves, num lugar que só eu sei e mantenho esse segredo todo para que ninguém ouse imaginá-la como eu a afiguro.

Apesar da nossa disparidade de idade, a minha metade da maçã docinha continua a irradiar a juventude no êxtase dos vinte e nove, em contraste com meus sessenta e oito, lembrando que a diferença entre nós — em nada influiu no carinho que a cada dia parece se tornar mais gigantesco. Destoado dessa lacuna enorme, a áurea do meu amor persiste encantada. Transpira num “boom” de pratos orquestrais ao tempo em que cria em torno de nós, um instante mágico e único, uma enchança repressão de expectativas prontas para explodir ao menor toque da sua voz. Ela é, pois, como o sol que se espalha. Diria sem medo de errar, como o alimento divino que mata a minha fome em todos os sentidos.

Meu amor é um porvir repleto de sensações nunca sentidas, de emoções jamais vividas. Ela é poesia de arrebol. Mais que isso, um elo plural ligando o hoje ao super amanhã. É ainda, num momento mais complexo, meu horizonte bordado por asas aladas, a essencialidade do meu agora dentro de um ontem magricelo, mas perfeito, como o côncavo e o convexo. A minha amada não é só uma flor em botão. É mais que um nome ao acaso. É o licor das harpas, o vinho doce temperando vontades. São, por fim, numa derradeira visão, os sons e os barulhos de todos os enfeites. As noites e dias. As fantasias de passeios distantes. Um amontoado de loucuras quebrando o próprio mimo.

Essa mulher é a sensação do infinito lá em cima, dançando assinaturas corpóreas no caderno louco da minha vida insana. Ela é a fêmea completa, a criança grande, a estrela de minhas brincadeiras. Ela é, igualmente, a dona dos lábios rosados como seda aquecida pelo sol mormacento. Eu a vejo, ainda, mais bela, a cada dia. Às vezes, nas minhas divagações, como um natal com flocos de neve. Nessas horas, ela revolve meu estômago que se contrai em pequenos nós de excitação. Ela é, ainda, o eco do meu grito desesperado clamando incansavelmente por nosso AMOR.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Olivaldo Júnior (Poemas Escolhidos) V

MEU AMOR HÁ DE CHEGAR NUM DOMINGO


Quando eu vier distraído,
descabido, desprovido
de qualquer bom senso,
meu amor há de chegar num domingo.

Meu amor há de chegar
e ficar para o café.
Assim, como quem não quer nada
além de um pouco de pão,
meu amor há de ficar para almoçar.
Macarrão com carne,
batata e maionese,
mais um copo bem grande de "refri"
e um pedaço de Romeu e Julieta,
tão brazucas
quanto um bom pingado!...

Meu amor há de pingar no telhado.
E há de ser chuva mansa,
com cheiro de Terra do Nunca
e jeito de serra, montanha,
chalé só para dois.

Domingo, zapeando a tevê,
entre o Faustão, a Eliana
e o Programa Silvio Santos,
meu amor há de chegar
sorrindo!...

Depois, como quem faz
que não gosta da segunda,
vai ficar de namorico
na porta
e engolir a hóstia
que ganhou de manhã,
até se esvanecer
dentre as nuvens
que eu mesmo criei
sexta-feira passada.
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NAMORAR É...

Namorar é crer no amor
quando tantos creem no medo,
quando tantos têm horror
a não ter com o bem segredo.

Namorar é ter alguém
pra fazer um cafuné,
pra não ser de mais ninguém
a não ser de quem dá pé.

Namorar é ser cantiga
no silêncio matinal,
ser de paz quando houver briga.

Namorar é ver Natal
quando tantos veem intriga,
ser da vida o Carnaval.
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O AFOGADO

Não, amor, não me adiantam
essas redes que me jogas
da outra margem do mar,
de uma praia que vislumbro
como se fosse a praia
em que nós dois nos conhecemos...

Não, amor, não me adiantam
essas ripas que me jogas
da outra margem do cais,
de algum porto que descubro
como se fosse um náufrago
em que nós nos reconhecemos...

Não, amor, não me adiantam
essas roupas que me jogas
da outra margem do lar,
de um lugar que vive obscuro,
concha que trouxe a praia
em que nós dois nos concebemos.
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POESIA SINGELA

Poesia, tão singela
quanto um rosto de criança
que inda espera da janela
ver Quixote e Sancho Pança!...

Poesia, tão singela
quanto a nossa confiança,
que procura numa vela
sua chama de esperança!...

Poesia, tão singela
quanto o sonho que foi bom,
todo feito em aquarela!...

Poesia, tão singela,
que, no dia de Drummond,
doma a fera e surge, bela!...

Fonte:
Poemas enviados pelo autor

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 11

 

Alcântara Machado (Amor e sangue)

Sua impressão: a rua é que andava, não ele. Passou entre o verdureiro de grandes bigodes e a mulher de cabelo despenteado.

– Vá roubar no inferno, Seu Corrado!

"Vá sofrer no inferno, Seu Nicolino!" Foi o que ele ouviu de si mesmo.

– Pronto! Fica por quatrocentão.

– Mas é tomate podre, Seu Corrado!

Ia indo na manhã. A professora pública estranhou aquele ar tão triste. As bananas na porta da Quitanda Tripoli Italiana eram de ouro por causa do sol. O Ford derrapou, maxixou, continuou bamboleando. E as chaminés das fábricas apitavam na Rua Brigadeiro Machado.

Não adiantava nada que o céu estivesse azul porque a alma de Nicolino estava negra.

– Ei, Nicolino! NICOLINO!

– Que é?

– Você está ficando surdo, rapaz! A Grazia passou agorinha mesmo.

– Des-gra-ça-da!

– Deixa de fita. Você joga amanhã contra o Esmeralda?

– Não sei ainda.

– Não sabe? Deixa de fita, rapaz! Você…

– Ciao.

– Veja lá, hein! Não vá tirar o corpo na hora. Você é a garantia da defesa.

A desgraçada já havia passado.

Ao Barbeiro Submarino. Barba: 300 réis. Cabelo: 600 Réis. Serviço Garantido.

– Bom dia!

Nicolino Fior d’Amore nem deu resposta. Foi entrando, tirando o paletó, enfiando outro branco, se sentando no fundo a espera dos fregueses. Sem dar confiança. Também Seu Salvador nem ligou.

A navalha ia e vinha no couro esticado.

– São Paulo corre hoje! É o cem contos!

O Temístocles da Prefeitura entrou sem colarinho.

– Vamos ver essa barba muito bem feita! Ai, ai! Calor pra burro. Você leu no Estado o crime de ontem, Salvador? Banditismo indecente.

– Mas parece que o moço tinha razão de matar a moça.

– Qual tinha razão nada, seu! Bandido! Drama de amor coisa nenhuma. E amanhã está solto. Privações de sentidos. Júri indecente, meu Deus do Céu! Salvador, Salvador… – cuidado aí que tem uma espinha – … este país está perdido!

– Todos dizem.

Nicolino fingia que não estava escutando. E assobiava a Scugnizza.

As fábricas apitavam.

Quando Grazia deu com ele na calçada abaixou a cabeça e atravessou a rua.

– Espera aí, sua fingida.

– Não quero mais falar com você.

– Não faça mais assim pra mim, Grazia. Deixa que eu vá com você. Estou ficando louco, Grazia. Escuta. Olha, Grazia! Grazia! Se você não falar mais comigo eu me mato mesmo. Escuta. Fala alguma cousa por favor.

– Me deixa! Pensa que eu sou aquela fedida da Rua Cruz Branca?

– O quê?

– É isso mesmo.

E foi almoçar correndo.

Nicolino apertou o fura-bolos entre os dentes.

As fábricas apitavam.

Grazia ria com a Rosa.

– Meu irmão foi e deu uma bruta surra na cara dele.

– Bem feito! Você é uma danada, Rosa. Xi!…

Nicolino deu um pulo monstro.

– Você não quer mesmo mais falar comigo, sua desgraçada?

– Desista!

– Mas você me paga, sua desgraçada!

– Nã-ã-o!

A punhalada derrubou-a.

– Pega! Pega! Pega!

– Eu matei ela porque estava louco, Seu Delegado!

Todos os jornais registraram essa frase que foi dita chorando.

Eu estava louco —————
Seu Delegado! —————-
Matei por isso! —————- Bis
Sou um desgraçado! ——–

O estribilho do Assassino por amor (Canção da atualidade para ser cantada com a música do “Fubá”, letra de Spartaco Novais Panini) causou furor na zona.

Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda. Publicado em 1927.

Cecília Meireles (Antologia Poética) = 3 =

CANTIGUINHA


Meus olhos eram mesmo água,
— te juro —
mexendo um brilho vidrado,
verde-claro, verde-escuro.

Fiz barquinhos de brinquedo,
— te juro —
fui botando todos eles
naquele rio tão puro.
.....................

Veio vindo a ventania,
— te juro —
as águas mudam seu brilho,
quando o tempo anda inseguro.

Quando as águas escurecem,
— te juro —
todos os barcos se perdem,
entre o passado e o futuro.

São dois rios os meus olhos,
— te juro —
noite e dia correm, correm,
mas não acho o que procuro.
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CRIANÇA

Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre, — e resiste.

Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente...

Cabecinha boa de menino mudo
que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.

Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.
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EPIGRAMA N.o 4

O choro vem perto dos olhos
para que a dor transborde e caia.
O choro vem quase chorando
como a onda que toca na praia.

Descem dos céus ordens augustas
e o mar chama a onda para o centro.
O choro foge sem vestígios,
mas levando náufragos dentro.
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FIO

No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.

Tu não vês o jogo perdendo-se
como as palavras de uma canção.

Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrelas na mão...

— para que serve o fio trêmulo
em que rola o meu coração?
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INVERNO

Choveu tanto sobre o teu peito
que as flores não podem estar vivas
e os passos perderam a força
de buscar estradas antigas.

Em muita noite houve esperanças
abrindo as asas sobre as ondas.
Mas o vento era tão terrível!
Mas as águas eram tão longas!

Pode ser que o sol se levante
sobre as tuas mãos sem vontade
e encontres as coisas perdidas
na sombra em que as abandonaste.

Mas quem virá com as mãos brilhantes
trazendo o seu beijo e o teu nome,
para que saibas que és tu mesmo,
e reconheças o teu sonho?

A primavera foi tão clara
que se viram novas estrelas,
e soaram no cristal dos mares,
lábios azuis de outras sereias.

Vieram, por ti, músicas límpidas,
trançando sons de ouro e de seda.
Mas teus ouvidos noutro mundo
desalteravam sua sede.

Cresceram prados ondulantes
e o céu desenhou novos sonhos,
e houve muitas alegorias
navegando entre Deus e os homens.

Mas tu estavas de olhos fechados
prendendo o tempo em teu sorriso.
E em tua vida a primavera
não pode achar nenhum motivo...

Fonte:
Cecília Meirelles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.

Nilto Maciel (O Sétimo Aniversário de Branca de Neve)

No final da tarde, Sandra e Morais davam ordens aos garçons e os últimos retoques no salão de festas, arrumavam os docinhos, os enfeites. Não paravam de falar aos filhos para que se comportassem. Nada de briguinhas, confusões. Queriam uma festa sem defeitos. Luzia, fantasiada de Branca de Neve, ia e vinha pelo salão, sorriso em todo o rosto. Olhava os ornamentos das mesas e paredes. Vistoriava o pequeno palco. Bruno se acercava das guloseimas, pronto a dar o bote. Saulo brigava com o irmão. Não metesse a mão em nada. Morais completava a admoestação. Nenhum deles devia se antecipar ao início da festa, servindo-se antes da chegada dos convidados. Impacientavam-se todos. As crianças corriam, os pais fumavam e se irritavam. E nada de convivas. “Será o trânsito?” Inquieto, Morais chamou um garçom. Sandra se exaltou. O marido não devia beber antes da chegada dos amigos. “Cerveja ou uísque?” A senhora acendeu mais um cigarro e se pôs a andar pelo salão, a revistar adornos e manjares. Um rapaz se apresentou, carregando uma filmadora. Morais pôs-se a dar-lhe instruções. Os meninos ora corriam, ora se abeiravam das mesinhas repletas de gulodices. O sol se punha atrás dos prédios.

A chegada de Xênia, Osvaldo e filhos causou exaltação nos anfitriões. Alegria geral, abraços, risos. Iniciaram-se as filmagens. A menina Ana correu ao encontro de Luzia e entregou-lhe um presente. As demais crianças se fizeram arredias. Sentaram-se os quatro adultos. Morais sorvia goles de cerveja. Cheio de euforia, gritou pelo garçom: trouxesse copos para o casal amigo. Sandra reclamou: queria também um copo. Luzia abriu o embrulho, com pressa, sob as vistas dos irmãos e visitantes. Bateram palmas, deram vivas. A aniversariante arrastou a amiguinha pelo braço: iria mostrar-lhe todo o salão. Branca de Neve e os Sete Anões, desenhados e pintados em folhas de cartolina e isopor, anunciavam fantasias. O palco, a cortina, o pano de fundo. “Vai haver uma peça, sabia?”

Sandra anunciou a chegada de Elizabete, Jonas e a pequena Vanessa. E levantou-se para recebê-los. A menina correu na direção de Luzia, presente à mão. Mais abraços, beijos, parabéns. Morais gargalhava, enquanto Jonas se esforçava para mostrar a musculatura do braço. Sandra falava alto. Os garçons serviam bebidas e salgadinhos.

Adão surgiu de mansinho, a esbanjar fumaça pelas narinas. Os anfitriões se disseram surpreendidos. Não o esperavam para tão cedo. O convidado conduzia um objeto embrulhado em papel colorido. Perguntou pela aniversariante. Gritaram-lhe o nome. Luzia sorriu e correu. Apresentavam Adão aos casais convidados quando se anunciaram Onira, Getúlio e duas meninas. Elizabete cruzou as pernas. Onira ajeitou os óculos, enquanto acariciava a filha: “Continua dando aulas?”

Morais fumava, Sandra ria e gargalhava: “Continue filmando, rapaz.” Elizabete gritou por Vanessa. As meninas recém-chegadas se dirigiram a Luzia. Queriam entregar uma lembrança, apenas uma lembrancinha. Getúlio passava mão na testa, e parecia rir ou chorar. Osvaldo olhou para o relógio de pulso. Adão dava risada a gosto. Luzia controlava o sistema de som. As crianças iam e vinham pelo salão, olhos nas iguarias. Umas dançavam, outras conversavam. Sandra chamou a aniversariante. Hora de dar início à encenação. Rebuliço no salão. Mais convidados chegavam, carregados de mimos e sorrisos.

“Vamos iniciar o teatro. Apaguem as luzes e silêncio.” Bateram palmas. A anfitriã dava ordens ao cinegrafista: não deixasse escapar uma só ação da peça. No palco, acendem-se algumas luzes. Dois personagens se mostram em vestes reais. Mimam uma boneca: a filha há tempos esperada. O rei (Morais) se dirige à rainha (Sandra): A filha teria por nome Branca de Neve. A plateia bate palmas. Xênia ajeitava o cabelo, olhos fitos no palco. O narrador anuncia a morte da rainha. O rei se põe a chorar. Sandra retira-se do tablado e corre à mesa, a rir. Movimento inverso realiza Xênia.

O narrador anuncia: O rei terá nova esposa. Um padre passa a celebrar o casamento real. Getúlio mete mão no bolso. A meninada permanecia silenciosa. A nova rainha se mira frente ao espelho mágico: “Existe alguém mais linda do que eu?”  A garotada grita “existe, existe.” Jonas alisava o queixo. Sandra fumava. Luzia entra em cena: “Sou Branca de Neve.” A rainha se observa diante do espelho e pergunta quem é a mais bela do reino. Uma voz vinda dos fundos grita: “Há uma menina muito mais bela do que Vossa Majestade”. Morais se retira do palco e chama um garçom: “Mais cerveja, que o rei está morto”.

Risos e gargalhadas. Luzia pede silêncio, irritada. Sobe ao estrado Jonas. A rainha se dirige a ele e ordena: “Leve a menina ao bosque, mate-a, arranque o coração e o traga a mim”. Onira cochichava para Sandra. O caçador arrasta a princesa pelo braço. A menina grita e cai. Riem na plateia. Sandra brada: “Cuidado com minha filha.” Luzia se ajoelha e pede clemência: “Não me mate, por favor.” Jonas, o caçador, ergue a mão, olha para a menina e também se ajoelha: “Perdão, princesa. Vou enganar a rainha. Ela quer o seu coração, como prova de que a matei. Vou, pois, matar um cervo e arrancar-lhe o coração. Fuja para bem longe daqui”. Luzia corre para o fundo do palco e Jonas sai pela lateral. Reaparece no salão, a rir e ajeitar a camisa. Batem palmas.

Onira olha de viés. Xênia se ergue e se retira. Branca de Neve reaparece no palco; ao fundo o desenho de uma casinha. Deita-se numa caminha e adormece. Jonas esfrega as mãos e levanta os ombros. Entram no palco sete anões, representados por meninos e meninas. Onira cutuca um pé de Sandra. A princesa desperta. Os anões se põem a conversar com Branca de Neve.  Sandra quebra um copo. Alvoroço no salão. Morais fumava e batia pé no chão. Reaparecem a rainha e o espelho: “Quem é a mais bonita do reino?” Uma voz rouca ecoa no salão: “A mais bela de todas é Branca de Neve.” A rainha se desgrenha. Risos, vaias. Getúlio ajeita o cabelo com mão.

Uma bruxa (Sandra), disfarçada de velhinha, carrega maçãs numa cestinha e bate à porta da casinha dos anões. Jonas enche a boca de empadas. A bruxa oferece uma maçã à princesa. Gritos, conselhos: “Não aceita a maçã; é envenenada.” Luzia sorri, olha para a plateia: “Eu tenho que aceitar e comer. Faz parte da história.” Dá uma mordida na maçã e cai. Os anões gritam, choram. Os convidados batem palmas.  Xênia olhava para as pernas de Getúlio. Entra em cena o príncipe, representado por Saulo. Elizabete aproxima-se de uma das mesas, rebolando. A princesa ressuscita. Luzia se ergue e abraça o irmão. O narrador fala do casamento da princesa. E encerra, em voz pausada: “E viveram felizes para sempre.”

Mais palmas, assobios, aplausos. Xênia pinta-se diante de espelhinho, calada. As luzes se acendem. Palmas, gritinhos, ovações, agitação na plateia. As crianças se dispersam, correm. Sandra olhava para a barriga de Jonas. A aniversariante pergunta se está na hora dos parabéns. Sua mãe levanta-se, retira-se da mesa e grita: “Vamos cantar os parabéns.” A criançada se agita e corre em direção à mesa maior. Luzia se posta junto ao bolo. Todos cantam “Parabéns pra você”. O grande bolo com sete velinhas é cercado de adultos e crianças. Aparecem fotógrafos de todos os lados. Luzia sopra e apaga as velas do bolo. O primeiro pedaço entrega à mãe ou ao pai? Abraços, beijos, gritos, cantos. Inicia-se a distribuição do bolo em pratinhos. Osvaldo não para de falar: “Bebida é fundamental, tudo é droga.”

Getúlio ajeita a cabeleira e anuncia, baixinho, para Osvaldo: “Sonho que sou escravo.” “Escravo da mulher? Só se for da melhor.” “Com mulher de farda nem o Diabo pode.” Onira deixa a mesa, irritada. Sandra sai atrás dela. “Ele tem outra.” Getúlio olha para elas e se volta para Osvaldo: “Casamento não foi feito para mim.” Adão ajeita os óculos e discorre sobre sexo imaginário. Xênia alisava a face: “Amizade com mulher, até certo ponto.” Onira olhava para o busto de Xênia: “Sabia do nascimento do bebê de Oxesiscrana?” Adão ajeitou os óculos, cigarro nos dedos, e separou-se do grupo. Osvaldo chupou o copo: “Todo governante é ditador.” “Todo ditador é governante.” “Não, toda mulher quer governar homem.”

Morais olhava para Jonas: “Clube de futebol virou negócio.” “Tudo é negócio mesmo.” “Como é aquela frase? Tempo é dinheiro.” “Time is money.” Adão acendeu um cigarro: “Droga significa volta à inocência.” “Usar droga para não ser adulto?” “Ele quer dizer o seguinte: drogado parece criança.” “Não é bem isso.” Elizabete piscou para Sandra: “Homem tem de ser fogoso.” “Muito fogo para se queimar.” “Não vá me queimar com esse cigarro.” Sandra fumava e olhava para os quadris de Elizabete: “Homem só pensa em sexo na hora, pouco antes, muito antes, mas só por um minuto.” Sandra, Elizabete, Xênia e Onira se dão as mãos e se põem a dançar. “Na Idade Média o casamento...” “A idade média para o casamento deve ser aos vinte anos.” “Cadê os sete anões?” “Mais cerveja aqui, garçom.” “ E a aniversariante já fugiu com o príncipe?” “Quem quer bolo?” “O príncipe se escafedeu, se safou.” “Morais, ainda tem uísque?” Jonas mordeu orelha de Elizabete: “Adoro orelhas.” Ela se esquivou: “Adoro minhas crianças e odeio cigarro, bebida, conversa fiada.”        

Um casal com filhos se despedia dos anfitriões e da aniversariante. Derrama-se cerveja numa mesa. Crianças pulavam, corriam, se esgoelavam. Onira chamou o marido. Adão tentava conversar com Getúlio: Sabia o significado dos anões?  “Uma louca!” Sabia? “São os sete pecados capitais?” Mais convidados se retiravam. “Por que já vão?” Espoucavam balões. “Mais cerveja?” Sandra se pôs a cantar como os anões. Palmas, assobios. Um dos anões chorava, aos berros. Outros se iam, atrás dos pais. Os anfitriões agradeciam os presentes e as presenças dos convidados. Os garçons cambaleavam. O cinegrafista ria. Pedaços de bolo e salgadinhos espalhados no chão. Cerveja e refrigerante derramados. Gritavam, vociferavam, gargalhavam, dançavam, corriam, caíam, choravam, reclamavam.

Súbito as luzes se apagaram. “É o fim do mundo.” “Passam anos e vêm anos e é essa mesma coisa.” “É o caos, meu amigo.” “Mãe, cadê você?” O vulto de uma bruxa passeava pelo salão. Uma voz sibilava: “A morte vem vindo.” Havia medo nos olhos das crianças e angústia em cada adulto. Meia-noite.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

Marcelo Spalding (Dicas de Escrita) O vocativo e sua importância para organizar diálogos

 
Uma das vírgulas mais esquecidas é a vírgula que isola o vocativo. E olha que essa é uma daquelas regras sem exceção, fáceis de lembrar e que são obrigatórias. O motivo talvez você não lembre bem o que é o tal vocativo. Pois vejamos:

Vocativo é a forma linguística usada para chamamento ou interpelação no discurso direto. Por exemplo:

> Maria, venha cá!

> E agora, José?

> Não acredito, Joana, que você fez isso.

> Ave Maria, cheia de graça.

Muitos confundem o vocativo com o sujeito, e por isso mesmo o vocativo é isolado por vírgulas, observe a diferença das frases:

> Esse juiz é corrupto.

> Esse, juiz, é corrupto.

Outra confusão habitual é do vocativo com o aposto. Mas lembre-se, no vocativo você está falando com alguém, e no aposto em geral está se falando sobre alguém.

> Ronaldo, ontem sua equipe trabalhou muito bem.

> O diretor da equipe de vendas, Ronaldo, ontem trabalhou muito bem.

Na segunda frase, não se está falando com o Ronaldo, e sim sobre o Ronaldo, diretor da equipe de vendas.

O USO NOS DIÁLOGOS

Em diálogos literários, o vocativo é muito útil porque ele é uma das três formas de se mostrar ao leitor quem está falando (as outras são as intervenções do narrador e a personalidade linguística).

Usar intervenções do narrador ("disse João", "respondeu Maria") é a forma mais comum mas também mais simples, além de interromper a fluidez do diálogo com essas intervenções. Já usando o vocativo, você consegue ir organizando a conversa sem precisar recorrer às marcações.

Vejamos um exemplo, do texto do colega Rhaniel Farias:

- Não dava para esperar mais um pouco, Eduardo?

- Você sabe que não. A dor só piora.

- Tem ideia do que está fazendo, do que isso vai provocar nas pessoas que te amam?

- Já conversamos sobre isso, Sofia. Preciso fazer, não vou voltar atrás.

Note que pelas quatro falas iniciais do diálogo já sabemos que quem está conversando é Eduardo e Sofia. A primeira fala, como usa o Eduardo como vocativo, é da Sofia, que está falando COM o Eduardo. Então as falas ímpares (1, 3, 5) serão da Sofia.

Já na fala 4 é o vocativo é a Sofia, ou seja, alguém (no caso Eduardo) está falando COM A Sofia. Então as falas pares (2, 4, 6) serão da Sofia.

Criada essa lógica, o autor pode ir até o fim do diálogo sem usar os vocativos novamente nem precisar de intervenção do narrador. Caso o diálogo fique longo, os vocativos podem voltar eventualmente, para irem lembrando o leitor de quem está falando com quem.

Cuide, também, diálogos com mais de duas pessoas. Aí talvez seja inevitável usar a interferência do narrador, mesmo que alternando com o uso do vocativo.

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Jaqueline Machado (Aruanda entre nós) 6 – Oxum


Oxum faz o amor brotar
em todas as estações ...
E a água doce cantar
as mais singelas canções ...


Há uma cantiga de outrora que diz assim: "Oxum é uma criança que esqueceu de envelhecer, mas quando ela dança, seus filhos param de sofrer. Verde é a cor de Oxossi, branco de Nanã Buruquê, Oxum bordou sua saia com a flor do amanhecer".  

Oxum é a deusa das águas doces, dona do ouro. Ela também representa a sabedoria e o poder feminino, sem deixar de ser esposa de Xangô, rei justiceiro. Oxum é a protetora da família. Diante do espelho, reflete muitas personalidades, pois mulher, em sua essência, é aquela que abriga em suas entranhas múltiplas faces da vida. Sua representatividade reina na África, na Ásia, no Brasil e em Aruanda, onde nasceu para ramificar entre os seres todas as bênçãos de amor.

Numa bela tarde de verão, enquanto se refrescava  à  beira do rio, alguns de seus filhos foram ao seu encontro. Logo começaram a brincar ao seu redor, não resistindo ao doce encanto dos erês, mãe Oxum, logo vai participar das cirandas.

Era uma tarde serena de céu azul, sol fulgurante e cheiro de jasmim. Nessa ocasião, seu esposo Xangô, que é um juiz exemplar, viajava, fazendo a propagação da lei.  O cenário era perfeito. Até que a triste imagem de uma jovem a chorar, rouba a cena.

Oxum pede às crianças que se retirem e pergunta:

- Moça, você precisa de ajuda?  

A jovem chorava sem parar estava com uma péssima aparência. Cabelo desarrumado, olhos borrados de maquiagem.

- Sente–se à beira da água comigo. – disse a deusa dos rios.

- Me disseram que você aconselha pessoas perdidas.

- Aconselho todos os tipos de pessoas, mas se encontra perdida de quem, de você ou de algum familiar?

  - Sinto–me perdida em todos os sentidos. Não sei quem sou. Ajude-me! – pediu a soluçar.

- Ajudo com prazer, mas antes, feche os olhos, relaxe o corpo e respire. Nesse instante, borboletas coloridas começaram a sobrevoar sobre a cabeça da moça. Oxum agradece a mensagem enviada pela natureza. E minutos depois elas começam a dialogar.

- O que aconteceu com você, meu anjo?

 - Anjo, eu? Só se for um anjo decaído. – diz ela menosprezando a si própria.

- A mim pouco importa que tipo de anjo é você. Estou aqui para ouvi-la. Conte – me o seu problema.

- Eu era de uma família boa. Fui bem educada e recebi muito amor dos meus pais, mas com a chegada da adolescência, comecei a me deixar influenciar pelas más companhias, passei a desobedecer meus entes e só fazia o que me dava na cabeça, sem pensar nas consequências. Com isso, fiquei com muitos homens, mesmo sem sentir amor por nenhum deles. Até com drogas me envolvi. Achava tudo bonito, da moda. Como já era esperado, meus pais não aceitaram a realidade que escolhi viver. Então fugi de casa. Hoje sou assim, uma mendiga.

- Você se arrepende das escolhas que fez?   

- Sim. Estou muito arrependida.

- Vou explicar uma coisa: nos tempos atuais, tudo parece ser permitido, mas na real, isso é um grande engano. Liberdade é uma coisa, libertinagem é outra coisa tão desigual, que sinceramente, não sei como tantas pessoas podem confundir.

"Na verdade, sei sim, apenas tenho dificuldade em aceitar. Existe um plano do qual não posso mencionar quem são os organizadores, que tem a intenção de destruir tudo o que é belo: honestidade, amizade, família. Eles manipulam as mentes das pessoas de todas as idades, principalmente dos jovens, na tentativa de convencê-los a errar sem perceber que estão caindo numa cilada. Por exemplo, os jovens não sonham mais poder encontrar um amor. Com isso, toda vez que seus corpos sentem sede de carinho, deitam-se com um novo parceiro. Muitas meninas, da adolescência até a fase adulta, já terão levado mais homens pra cama do que a maioria das prostitutas de tempos antigos levaram em seus tempos de juventude. E os meninos já terão beijado mais garotas do que Dom Juan beijou no decorrer de sua vida inteira. Aliás, Dom Juan, em comparação ao que os meninos de hoje têm aprontado pode ser comparado a um frade.

"É normal se relacionar, viver, ser feliz. O único problema em questão é a libertinagem. Isso é uma das razões da decorrente depressão entre os jovens. Seus anjos da guarda batem à porta de suas consciências, a fim de alertá-los, mas poucos ouvem."

- Quero me redimir. – disse a moça, ao ouvir a voz serena de Oxum exalando bálsamos de sabedoria.

- Procure seus pais. Recomece sua vida. Jogue rosas no rio e peça em oração ou cânticos, o amor que sua alma realmente necessita. E seja feliz. Muito feliz!

A menina se afasta. Oxum se pôs a rezar por ela. E depois volta a brincar com as crianças.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

Martins Pena (Duguay-Trouin*)

A VINGANÇA


Na manhã do dia 11 de setembro de 1711, os sinos da Igreja da Sé, situada no morro do Castelo, e os tambores dos regimentos de milícias tocaram a rebate. O povo corria atemorizado pelas ruas da cidade; uns dirigiam-se para o Castelo e outras eminências da cidade, e os mais timoratos corriam para as suas casas. Os soldados de milícias, saindo fardados e armados de suas habitações, dirigiam-se com a pressa que lhes permitia o seu armamento, para se reunirem aos seus respectivos corpos. A guarnição portuguesa, desde o dia 10 já estava sobre pé, e se tinha postado no prolongamento da costa, compreendida entre o Forte do Calabouço e o Saco do Alferes. O ruído das armas, os pesados passos dos soldados, o surdo rodar das carretas das peças de artilharia, o som do clarim, tudo enfim atemorizava as almas fracas, ao mesmo tempo que incutia valor nos peitos valentes e destemidos.

O povo, que coroava o morro do Castelo, podia distinguir com facilidade uma esquadra que bordejava fora da barra: era ela a causa do terror espalhado entre os habitantes de São Sebastião. No dia 10, depois do meio-dia, viu-se algumas velas que se dirigiam para a entrada do porto; em pouco tempo pôde-se distinguir a sua nacionalidade. Todos os navios traziam o pavilhão francês.

O governador D. Francisco de Castro, não esperando da parte dos franceses senão hostilidades, já por cobiçarem as inumeráveis riquezas minerais, descobertas nas províncias de São Paulo e Minas Gerais, já pelo assassinato cometido na pessoa do Almirante Du Clerc, deu ordens para que as fortalezas do porto e a guarnição fizessem todo o possível para impedir a entrada da esquadra inimiga.

Toda a tarde do dia 10, e parte da manhã do dia 11, os franceses bordejaram fora da barra e do alcance da artilharia dos fortes. O seu prudente chefe, o Almirante Duguay-Trouin, não queria aventurar a sorte da esquadra debaixo de seu comando, em um ataque mal dirigido, e onde não visse um feliz êxito; assim esperava ele um vento favorável para poder entrar com vantagem no porto. Às 8 horas da manhã principiou a soprar da parte do sul um vento rijo e forte. Duguay-Trouin faz sinal a toda a sua esquadra para que o siga, e ele, pondo-se à sua frente, dirige a proa de seu navio para a entrada da barra.

As pessoas que viam das iminências e arredores da baía o aspecto hostil que tomava a esquadra inimiga, esperavam com ansiedade o êxito do combate.

As fortalezas e fortes abriram o fogo, porém a esquadra continuava a sua marcha. A capitania foi a primeira que sofreu o fogo dos fortes; uma chuva de balas caía ao redor dela e fazia ferver o mar; os artilheiros franceses, como morrões acesos, esperavam com impaciência o momento do combate. Duguay-Trouin, depois de estudar a posição de toda a sua esquadra, manda fazer sinal para que ela abra o seu fogo, e embocando a sua buzina de comandante, solta estas palavras há muito esperadas: – Fogo! fogo de bombordo e estibordo!!

Uma detonação terrível se ajuntou ao concerto infernal. Toda a esquadra seguiu o exemplo.

– Assim! assim! meu bravos!.. sustentem o fogo; que um turbilhão de fumaça nos oculte à artilharia dos fortes!

Uma fumaça densa e branca ocultou aos olhos dos espectadores a cena do combate; porém eles ainda podiam conhecer que a esquadra continuava a avançar.

Um mancebo de alta estatura, que comandava uma das companhias postadas no Forte do Calabouço, via com impaciência que a esquadra francesa penetrava no porto, e que os navios de guerra portugueses estavam estacionários.

– Ah! que não esteja eu dentro de uma daquelas Naus! Então; enquanto uma só tábua estivesse unida a outra, eu defenderia a entrada do porto!... Agora é que eles principiam a suspender ferro!... mas já é tarde!!... Oh! e eu nada posso!!...

Henrique tinha razão. A esquadra portuguesa foi lenta em seu movimento; e quando ela quis impedir a marcha vitoriosa da esquadra francesa, foi tarde.

Duguay-Trouin atravessou toda a baía, fazendo continuadamente fogo, e com pouco custo apoderou-se da Ilha das Cobras, aonde desembarcou.

Henrique, temendo o bombardeamento da cidade pela esquadra francesa e Fortaleza da Ilha das Cobras, pede licença ao comandante de seu batalhão, por um instante, para ir pôr em segurança a sua querida irmã Henriqueta.

Henriqueta e Henrique moravam em uma casa com frente para o mar e, por conseguinte, exposta ao fogo inimigo. Henrique sobe apressadamente as escadas de sua casa e encontra a sua cara irmã muito assustada. Ela lança-se nos braços de seu irmão e oculta as suas belas faces no peito deste.

Ambos amantes, ambos órfãos, viviam estes dois irmãos. Henrique tinha 16 anos e Henriqueta 10 quando perderam seu pai; a vinda de Henriqueta ao mundo tinha custado a vida à sua mãe... Infelizes!...

Henrique sentia por esta única pessoa de sua família o amor sagrado e puro de um irmão; amor sem tempestade e egoísmo.

– Henrique, diz Henriqueta, eu tenho medo destes tiros!...

– Não tenhas medo.

– Tu queres que eu não tenha medo?! ah! mas eu não posso, eu tremo!

– Sossega, minha cara irmã; vai ajuntar alguma roupa tua para sairmos desta casa.

– Sim, sim eu vou... Vê, vê Henrique, aquele navio que ainda vem fazendo fogo!? – e ela apontava para um dos navios franceses que cobriam a retaguarda da esquadra, e que ainda não tinha lançado ferro.

– Ele se há de cansar. Vai aprontar a tua roupa.

Henriqueta caminhava para seu quarto, quando uma bala, atravessando a parede, passa assobiando por diante dela.

– Ah! Henrique!!...

Ambos ficaram pálidos como a morte. Henrique sustém sua irmã meio desfalecida, e a conduz para uma cadeira.

– Minha irmã, cobra alento, não te assustes.

– Henrique, eu tenho medo!!...

Uma pancada forte e seca fez este voltar a cabeça, e ver ao mesmo tempo uma das janelas, que estavam bem fechadas, fazer-se em mil pedaços, e uma bala, batendo em sua irmã, atirá-la no chão toda ensanguentada!

– Henrique, adeus!... (foram as últimas palavras que proferiu esta desgraçada.) E Henrique?

Oh! eu não posso pintar o seu desespero. Ele levantava a sua irmã em seus braços,

beijava as suas faces já frias, procurava reanimá-las; dirigia preces ao céu, para que lha restituísse; levantava os braços para a esquadra francesa em sinal de maldição... Oh! como não devia ele sofrer!...

– Infames assassinos! dizia ele, infames! ah eu juro pelo frio corpo de minha irmã, de vingar-me! ah! sim, tremei!...

Henrique não pôde por muito tempo resistir ao terrível choque, que feriu repentinamente a mais cara afeição de sua alma, ele caiu desmaiado junto de Henriqueta.

Alguns de seus amigos, procurando-o, acharam-no neste estado e com muito custo conseguiram que ele recuperasse os sentidos. Henrique não deu mais uma só palavra, porém via-se no seu olhar frio e brilhante que uma só ideia o preocupava.

Quando ele acompanhou o corpo de sua irmã para a sua última morada, antes que o túmulo os separasse para sempre, chegou-se para ela, e dando-lhe um beijo, disse-lhe com voz trêmula:

– Henriqueta, tu serás vingada!...

D. Francisco de Castro vendo os franceses senhores da Fortaleza da Ilha das Cobras, retirou-se para Mata-Porcos, e de lá expedia as ordens para a defesa da cidade.

Duguay-Trouin lhe enviou uma nota, pedindo satisfação pela morte de Du Clerc e a entrega de seus assassinos. D. Francisco de Castro recusou ambas as coisas, e então começaram de novo as hostilidades.

A noite de 21 a 22 de setembro foi uma noite de horror. Nuvens de uma cor medonha se estendiam como um manto por todo o firmamento, e de entre as vagas do mar se ouvia um mugido triste e sinistro. Os gritos de – alerta! bom quarto! – que os sentinelas e marinheiros enviavam uns aos outros só interrompiam este lúgubre silêncio.

meia noite, o almirante francês, seguido de grande número dos seus, desce com precaução para uma das praias que cercam a fortaleza, onde já estavam prontos alguns lanchões, e manda embarcar a sua gente, e lhes ordena que tomem por abordagem a esquadra portuguesa.

– A noite está escura, diz o almirante, ela nos favorece. Marinheiros franceses, fazei o vosso dever!

Os lanchões partem; o almirante sobe para a fortaleza e manda apontar toda a sua bateria para a cidade.

As sentinelas postadas nas praias da cidade viam ao longe um rastilho luminoso, causado pela ardentia do mar, e uma sombra negra, que os precedia; porém não ouvindo bulha de remos, não desconfiaram ser surpresa alguma da parte dos inimigos.

Os franceses para melhor ocultarem a sua empresa tinham envolto os remos com pano, e assim caminhavam silenciosamente.

A fortuna teria coroado a sua tentativa, se um forte relâmpago não viesse mostrar aos portugueses o perigo que os ameaçava. Os soldados gritam às armas, e uma descarga de mosquetaria de uma das naus faz retroceder os lanchões franceses. Foi este o sinal do combate.

As baterias da Ilha das Cobras principiaram a fazer fogo sobre a cidade, a esquadra seguiu o exemplo: os navios portugueses atiraram sobre os franceses, porém sem se aproximarem, por estarem estes cobertos com a artilharia da fortaleza. O estampido do trovão, então em todo o seu furor, a luz dos relâmpagos, os tiros de uma numerosa artilharia e os gritos das pessoas, que fugiam espavoridas de suas habitações, faziam um todo horrível.

Todo o povo fugia atropeladamente para fora da cidade; a mesma guarnição abandonou os seus postos: a noite ocultou aos franceses o abandono da cidade.

Uma só pessoa não fugia com os outros: via-se que com infatigável vigor carregava barris do Forte do Calabouço para sua casa: esta pessoa era Henrique.

– Aonde vais, Henrique, gritaram os seus companheiros, que já tinham abandonado as armas para correrem com maior presteza; aonde vais? Vem conosco; daqui a pouco tudo estará reduzido a ruínas e cinzas; vem.

– Não! respondeu Henrique; ainda não vinguei Henriqueta: e ele continuava no seu porfiado trabalho.

* * * * * * * * * * * * * * *

Depois de quatro horas de um continuado fogo, Duguay-Trouin à frente dos seus desembarca na cidade. Um silêncio de morte reinava por toda a parte! As ruas estavam em algumas partes impraticáveis pela queda de edifícios abatidos pelas balas. Aqui e ali viam-se cadáveres de diversas pessoas que a morte tinha surpreendido na sua fuga.

– Saque! Saque!! gritavam os soldados franceses.

Todo o cuidado do almirante foi infrutífero para impedir o saque. Os soldados corriam desenfreados pelas ruas. Um grupo deles tendo no meio Henrique aproxima-se a Duguay-Trouin, e lhe entregam o que eles dizem prisioneiro.

– Como te chamas? pergunta o Almirante.

– Henrique.

– Por que não fugiste com os teus compatriotas?

– Porque amo os franceses; e porque sem mim eles não encontrariam um imenso tesouro.

– Um imenso tesouro! E onde está ele?

– Se vós me prometeis metade, a outra é vossa; e eu também exijo que me leveis para França.

Um sorriso imperceptível correu pelos seus lábios.

– Eu exijo que me acompanhe uma força de pelo menos 50 homens, pois desconfio que haja oposição.

Duguay-Trouin dá ordem a uma companhia que acompanhe Henrique, e recomenda todo o cuidado ao chefe que a comanda, porém ele deixa-se ficar.

– Não vindes, senhor? lhe diz Henrique.

– Não, o capitão que comanda os meus é mais que suficiente para esta expedição. Henrique viu a sua principal vítima escapar-se; mas ele levava 50 atrás de si. Acompanhado dos soldados encaminha-se para a sua casa, depois de ter penetrado no interior, volta-se para o capitão e diz:

– Senhor, mandai que dois soldados guardem a porta, e que todos os outros nos acompanhem.

– Até aqui, replica o capitão, eu vos tenho seguido sem hesitar, porém permiti que eu agora tome algumas precauções. Camarada, continua o capitão voltando-se para um soldado; ficareis ao lado deste homem, e ao menor sinal de traição cravai a vossa espada no seu coração. Agora podeis conduzir-nos.

Henrique, tendo de um lado o capitão e do outro o soldado com a espada desembainhada, e abrindo a porta faz ver uma grande quantidade de barris.

– Eis aqui o tesouro! diz ele.

O capitão desce, e vê com espanto que todos os barris estavam cheios de pólvora.

– Traição! Traição! gritam todos.

O soldado que estava junto de Henrique quer atravessá-lo com a espada; porém este saltando para cima de um barril e puxando por uma pistola diz:

– Henriqueta eu te vingo!! e disparando a pistola para dentro de um dos barris, comunica o fogo a esta quantidade enorme de pólvora!!

Uma forte explosão se ouviu, e uma coluna imensa de fogo, paus e corpos humanos, subiu até às nuvens!!! Toda a cidade tremeu.

Henrique e os 50 homens que o acompanharam todos morreram!

Um mês depois Duguay-Trouin partiu para França levando consigo 4 naus, 6 fragatas, 60 navios do comércio português e 600 mil cruzados; porém não gozou de todas estas presas feitas no Brasil. Uma grande tempestade destroçou, antes de chegar à França, grande parte da sua esquadra.

A Providência castigou a França por ter querido invadir a América...
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* René Trouin, melhor conhecido como René Duguay-Trouin mas também grafado como Du Guay-Trouin (Saint-Malo, 10 de junho de 1673 — Paris, 27 de setembro de 1736), foi um corsário francês. Alcançou o posto de almirante e de comandante na Ordem de São Luís.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Adega de Versos 65: Carolina Ramos

 

Raul Pompéia (Maladetto Francesco!)

Houvera dois dias de chuvarada. As ruas tinham o calçamento lavado. Pelas sarjetas inundadas corria um burburinho d'água em direção aos esgotos. Os lampiões estendiam pela. calçada panos de fogo, enquanto as chamas de gás, engaioladas em suas caixas de vidro, debatiam-se doidamente a cada rajada... E o vento passava violento, furtando ao céu turbilhões de nevoeiro e guarda-chuvas aos transeuntes...

Francesco, que andava adoentado, havia dias, foi para a casa nessa noite muito mais cedo que de costume.

Para a casa... expliquemos.

Na rua... há uma portinha.

Isto é a boca de um corredor apertado entre altos muros, pelos quais escorre o sol branco e ardente do verão, ou, conforme o tempo, a chuva das invernadas, que os borra de luxuriantes paisagens feitas a capricho pela vegetação da umidade.

Passam por aí a viração encanada e uma multidão de sujeitos maltrapilhos, que chegam geralmente à tardinha, para saírem, no dia seguinte, à hora em que vêm os lábios rosados da. manhã osculando os cirros fugitivos do arrebol.

Estes indivíduos, com mais algumas mulheres que vivem a lavar roupas no pátio em que termina o corredor, são os inquilinos de umas coisas chamadas quartos, feitos de tabuado, onde o zum-zum das intriguinhas miseráveis e a algazarra das disputas dos moradores justificam o nome de cortiço que se dá às habitações da espécie. O cortiço está à esquerda do pátio das lavadeiras, no fim do corredor.

Nesta passagem entrou Francesco.

Havia uma lâmpada de querosene fixada na parede, à entrada do pátio. Apesar dos esforços dessa pobre lâmpada, cuja luz não conseguia varar a opacidade das suas três faces de vidro, não estava claro o lugar, Francesco lá foi, vacilante e cambaleando de tonteira.

Em um dos quartos do cortiço desapareceu.

Francesco Picolo era um pobre napolitano que nunca conhecera os pais e que viera para ao Brasil de envolta com um aluvião de colonos italianos importados para o Rio. Tinha seis ou sete anos; era louro como uma dessas figurinhas de Murilo que há espalhadas pela tela da Conceição e notavam-se-lhe abaixo dos olhos grandes e alegres, duas manchas róseas, destacadas na alvura pálida e quase sempre suja do semblante. Era miúdo e vivo, de uma vivacidade risonha e galhofeira.

Havia um ano que Francesco residia no Brasil, vivendo na companhia de Giuseppe de tal, um italiano maduro, focinho de calabrês, que viera de Nápoles com ele e se arvorara em seu protetor. Este protetor esperava os pequeninos lucros que o menino auferia de sua atividade e dava-lhe em paga maus-tratos.

Francesco vendia gazetas; e anunciava com tal graça a sua mercadoria, que era um gosto vê-lo na rua apregoando:

— A gazeta! a gazeta!... com a folha erguida na mão direita em gesto de Pedro I do Rocio. Quem o via, tão criança, tão gracioso e tão miserável, não resistia e... lia a Gazeta da Tarde ou a de Notícias do dia. Quando, à noite, esgotava-se a sacola de couro preto dos jornais, entornava ele a sua bolsinha num canto retirado do passeio, ou em alguma soleira, onde desse luz, e punha-se a fazer suas contas. Separava o cobre, com que devia comprar a 30rs. as folhas do dia seguinte; contava os lucros da venda, e exultava, se o ganho subia a 400rs; porque então podia esconder à ganância de Giuseppe dois ou três vinténs.

Estes vinténs furtados Francesco os arriscava na vermeIhinha, apostando sempre pela coroa das moedas atiradas ao ar. Seguia uma sua máxima: quase sempre ganha quem aposta pelas coroas. E ele ganhava frequentemente. Esta fortuna fazia raiva aos garotinhos seus parceiros, de sorte que quase nunca o jogo acabava, senão pela fuga de Francesco Picolo, adiante da perseguição dos outros, que queriam tomar-lhe os ganhos, abusando de sua superioridade do tamanho e de força. Mas Francesco era ligeiro e sempre escapava.

Não era a vermelhinha a única distração do nosso birichino*; o pequeno Picolo tinha outros costumes da rua. Pendurava-se à traseira dos bondes, para enfurecer os condutores, vaiava a polícia; protestava contra as prisões gritando à barba dos urbanos: não pode! Assíduo como um repórter a todos esses grandes acontecimentos que enchem diariamente o noticiário dos jornais, não havia suicídio ou assassinato em cujo teatro não fosse vista a sua carinha loura, fitando os circunstantes ou a vítima, com o seu olhar azul, largo e compassivo. Não perdia incêndios. Era o primeiro a comparecer. Aproveitava a ocasião para brincar um pouco com a morte, mostrando-lhe de perto a sua vidinha alegre e miserável; arriscava-se dando risadas; expunha-se por pândega. E fazia tudo e tudo passava desapercebido. Pequeno demais para ser visto não encontrava embargos; barafustava por qualquer orifício e saltava em pleno perigo. A morte era o seu Polichinelo; Francesco brincava sem tropeços.

Muita vez prestou ele um bom serviço; em compensação, não lhe era raro levar do incêndio uma escoriação no braço, na cabeça, na perna, ou uma queimadura no pé. Sabem o que fazia? Ia fazer letras como as dos jornais ou riscar caricaturas pelas paredes caiadas de fresco, com o sangue das arranhaduras. O resto ficava por conta do seu médico: o tempo.

Tinha ainda o pequeno napolitano o costume de aproveitar os tumultos das festas populares, para furtar lenços e o mais que fosse possível. Uma vez furtou um grande guarda-chuva de alpaca burguesa, que o fez rir a perder. Este furto, mais incômodo que a famosa raposa do espartano, mereceu-lhe um puxão de orelhas do primeiro guarda urbano que o viu. O respeitável zelador da ordem pública deu ao menino o castigo e ficou-se com o guarda-chuva.

— Eu o deixo pra você, gritou-lhe Francesco à distância, porque é muito grande para mim.

E o urbano guardou conscienciosamente o objeto para si. Furtava o ladrão...

Não eram as façanhas dos incêndios, como não eram as escamoteações de prestidigitador da escola de Licurgo, o cúmulo do arrojo do menino.

Ia muito além. Ninguém imagina até onde. Pensam que se trata de pedras arremessadas à vidraças do chefe de policia ou outra coisa, como trepar no eixo de um carro de Nosso-Pai para bulir com o vigário pela abertura posterior do coupê?...

Nada, nada... O arrojo ia adiante. Assim que Francesco Picolo, do meio da rua do Ouvidor, ouvia, lá para as bandas da rua Direita, certo tropear de cavalaria, com a nota de um clarim, destacando-se por cima, quando lhe passavam por diante dois redondos ginetes de dorso em arco sob o peso de lustrosos e ofegantes caboclos, encasquetados em luzidas barretínas, espadas nuas à destra...

Ele já sabia. Aí vinha o seu homem.

Francesca abria as magras perninhas, firmava-se nelas como um Rodes em miniatura e esperava de olho vivo e gazetas ao sovaco.

Em pouco, chegava um grande carro a trote largo. No carro vinha um senhor de cabelos brancos e branquíssimas barbas, enfeixadas numas bochechas amplas e tintas de rosa. Toda a gente dobrava-se em zumbaias para aquele velho, a quem devia doer a espinha, tantos eram os cumprimentos que fazia para a rua... Pois ele não; Francesco Picolo era rebelde. Quando o velho do carro passava por ele e cabeceava-lhe um dos tais cumprimentos... Era tempo. Francesco, com o seu gorro no alto da cabeça, arregaçava as ventas para o velho e mostrava-lhe a língua insolentemente. Depois da careta, dava uma risada e saía a gritar:

— A gazeta! a gazeta! 40 réis!

Esta sua originalidade não degenerou, até que uma vez... Não vinha só, o velho de barbas brancas. Ao lado dele sentava-se uma velhinha de vestido roxo, os cabelos empastados à testa. Tinha um sorriso bom aquela velhinha.

Quando o carro passou por Francesco, o birrichino fez a costumada careta. A velha sorriu docemente para ele e demorou o olhar, até que o permitiu a janela do carro.

Francesco ficou gostando daquela pobre velha... Olhou para ele com tanta suavidade!... Houve uma revolução naquele pequenino cérebro. O revolucionário foi o coração.

Francesco tomou uma resolução: quando de então em diante passasse por ele o homem de barbas brancas, ele tiraria o seu gorro de veludo sovado ao marido daquela boa velha que sorrira para ele...

Apesar de seus costumes da praça pública, Francesco Picolo não era ainda um menino pervertido, mas o que nele predominava mais do que qualquer traço fisionômico do caráter era a bondade do coração.

A prova disso tinha-se, eloquente, indiscutível, em uma tristeza profunda, que de tempos a tempos se apoderava do espírito do pobre menino.

Aquela almazinha, feita de garotagem inocente e risonha, tinha momentos de melancolia contraditórios com ela. Faziam-lhe o efeito de falenas voando ao meio-dia.

Essa tristeza, que podia parecer a abstração idiota das crianças enfermas, tinha uma explicação.

Explicava-se por uma história contada por Francesco a uma boa mulher que lhe dera remédios num hospital, onde ele estivera, havia meses. Era uma história pequenina, delicada e triste, uma nênia escrita numa pétala de rosa. Ei-la:

Ainda na Itália, Francesco Picolo tivera uma irmãzinha. Em Nápoles. Antonieta era mais criança do que ele... e tão bonitinha!... Como ele se lembra!... E como se lembra daquela noite de frio!... De frio e de morte; tudo o mesmo...

Ele e Antonieta vagueavam a esmolar longe, muito longe da mansarda onde os recebiam caridosamente para dormir, aos pobrezinhos que não tinham pais... Era tarde e caía muita neve. Umas toalhas brancas assustadoras estendiam-se pelas cumeeiras dos edifícios e pelas ruas.

Ia a noite se adiantando; urgia escolher um abrigo para a noitada, um canto aonde não chegasse a luz nem o olho da polícia.

Os meninos não gastaram muito tempo a procurar; que mesmo não o permitia o cansaço. Sentaram-se a uma soleira, num ângulo sombrio. Abraçaram-se as pobres crianças, apertaram-se, para que cada um aquecesse ao outro com a temperatura do próprio sangue e fecharam as pálpebras enregeladas e sonolentas.

— Que frio! murmurava Antonieta, tiritando.

Quando o dia seguinte se difundiu cor de leite por cima da espessura das neblinas do inverno, Francesco foi despertado pelo dono da loja a cuja porta dormira com a irmã. Reconheceu então, o desgraçado, que cingia nos braços um corpozinho branco, hirto e gelado.

Esse corpozinho foi-lhe arrancado pela polícia e...

Francesco não tinha mais irmã. O dono da loja, compadecido dos soluços que sufocavam o pequeno mendigo, acolheu-o dentro da casa.

Passados três dias, fê-lo embarcar-se com os colonos que iam partir para o Brasil.

— Além do Atlântico, não há inverno. No Brasil o frio não assassina e o pão não falta. Vai criança, e os olhos de Deus não te percam.

Trazido pelas auras desta bênção, chegou Francesco Picolo à América.

Nessa partida estava o segredo da sua tristeza.

Fora disso era um refinado traquinas e o mais ativo vendedor de folhas que se conhecia na rua do Ouvidor.

Giuseppe, o generoso protetor de Francesco, dormia cedo. Quando não passava misteriosamente a noite fora de casa, às oito horas, quem lhe entrasse no quarto vê-lo-ia preguiçosamente estendido numa maca improvisada sobre duas caixas.

Na noite em que Francesco voltou mais cedo, já o malandro roncava na maca. A entrada do menino fez rumor.

— Quem entra? perguntou Giuseppe com uma voz de ébrio, e remexendo-se todo na cama.

— Sou eu, disse o menino.

— Vamos fazer nossas contas. Chegue-se! convidou o dorminhoco erguendo-se a meio, com a mão a esfregar os olhos.

Francesco aproximou-se, com uns passos pequenos, vacilantes. O coração batia-lhe forte e ele sentia na fronte o calor de um diadema de fogo.

A luz do corredor vinha enviesada pelo quarto dentro. Giuseppe notou a dificuldade dos passos do pequeno.

— Então vens bêbado, Francesco? exclamou ele.

O menino não deu resposta.

— Aposto que não trazes hoje nem um vintém...

Francesco sem dizer palavra, tirou a bolsa de couro que trazia pendente do ombro e colocou-a sobre a cama do protetor.

Imediatamente em seguida, foi estender-se sobre um montão de roupas usadas, que jaziam ali para um canto.

Depois de recolher-se um outro italiano da laia do protetor de Francesco e que o auxiliava no pagamento dos poucos mil-réis do aluguel do cômodo, trancou-se a porta deste. A luz do corredor ficou lá fora e o quarto entregue às exalações da imundície que nele reinava e às trevas.

Começou-se então a ouvir uns gemidos apertados, uns arquejos contidos.

Passado algum tempo, bradou uma voz sonora:

— Até que horas teremos essa música?

A música durou pouco.

Minutos mais tarde o gemido calou-se; o arquejo foi substituído por um respirar violento, opresso, sibilante, até que mesmo estes últimos acordes da música se abafaram.

No dia seguinte, abriu-se a porta e a manhã entrou.

Um dos italianos foi para a rua e o outro, o protetor de Francesco, tendo se acordado também, viu o menino ainda a dormir e pulou da maca para despertá-lo. Giuseppe estava furioso. Pois aquele tratante ainda rolava na cama!...

Às cinco horas estavam já longe, as folhas estavam na rua a vender-se e o preguiçoso do Francesco dormia ainda!...

— Ó Francesco! Francesco!

O patife nem se movia.

Giuseppe atirou-lhe um valente pontapé.

— O Francesco!...

O menino, que se acomodara no alto do montão, rodou até aos pés de Giuseppe.

— Estará morto, este diabo? gritava ele com espanto.

Estava morto, sim...

Francesco Picolo morrera durante a noite.

Isto era um transtorno para os negócios de Giuseppe.

Nada menos que um desfalque de quatrocentos réis diários.

— Maladetto Francesco! exclamou ele lançando ao pequeno morto um olhar raivoso, maladetto Francesco!

Não passou disto a oração fúnebre do pobre birichino. Mais compassivo esteve o sol que penetrou no quarto e amortalhar aquele cadáver num raio generoso, vivificante.

Nessa hora, uns sinos ao longe rebentavam em alegres tintilações.

E havia no espaço uma dessas manhãs de cidade, luminosas, festivas que o beatério enche de badaladas e o sol inunda de claridade e de azul.
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* Birichino = rapaz vivaz e atrevido (geralmente dito com indisfarçável complacência).
Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXV


É UM CAMPO VERDE E VASTO
 
É um campo verde e vasto,
        Sozinho sem saber,
De vagos gados pasto,
         Sem águas a correr.

Só campo, só sossego,
        Só solidão calada.
Olho-o, e nada nego
        E não afirmo nada.

Aqui em mim me exalço
        No meu fiel torpor.
O bem é pouco e falso,
        O mal é erro e dor.

Agir é não ter casa,
        Pensar é nada Ter.
Aqui nem luzes ou asa
         Nem razão para a haver.

E um vago sono desce
        Só por não ter razão,
E o mundo alheio esquece
         À vista e ao coração.

Torpor que alastra e excede
        O campo e o gado e os ver.
A alma nada pede
         E o corpo nada quer.

Feliz sabor de nada,
         Inconsciência do mundo,
Aqui sem porto ou estrada,
         Nem horizonte no fundo.
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EU ME RESIGNO
 
Eu me resigno.
Há no alto da montanha
Um penhasco saído,
Que, visto de onde toda coisa é estranha,
Deste vale escondido,
Parece posto ali para o não termos,
Para que,  vendo-o ali,
Nos contentemos só com o aí vermos
No nosso eterno aqui...

Eu me resigno.
Esse penhasco agudo
Talvez alcançarão
Os que na força de irem põe m tudo.
De teu próprio silêncio nulo e mudo,
Não vás, meu coração.
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EU TENHO IDEIAS E RAZÕES
 
Eu tenho ideias e razões,
Conheço a cor dos argumentos
E nunca chego aos corações.
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EXÍGUA LÂMPADA TRANQUILA
 
Exígua lâmpada tranquila,
Quem te alumia e me dá luz,
Entre quem és e eu sou oscila.
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FALHEI. OS ASTROS SEGUEM SEU CAMINHO
 
Falhei. Os astros seguem seu caminho.
Minha alma, outrora um universo meu,
É hoje, sei, um lúgubre escaninho
De consciência sob a morte e o céu.
Falhei. Quem sou vivi só de supô-lo.
O que tive por meu ou por haver
Fica sempre entre um polo e o outro polo
Do que nunca há de pertencer.

Falhei. Enfim! Consegui ser quem sou,
O que é já nada, com a lenha velha
Onde, pois valho só quando me dou,
Pegarei facilmente uma centelha.
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FLOR QUE NÃO DURA
 
Flor que não dura
Mais do que a sombra dum momento
Tua frescura
Persiste no meu pensamento.

Não te perdi
No que sou eu,
Só nunca mais, ó flor, te vi
Onde não sou senão a terra e o céu.

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FLUI, INDECISO NA BRUMA
 
Flui, indeciso na bruma,
Mais do que a bruma indeciso,
Um ser que é coisa a achar
E a quem nada é preciso.

Quer somente consistir
No nada que o cerca ao ser,
Um começo de existir
Que acabou antes de o Ter.

É o sentido que existe
Na aragem que mal se sente
E cuja essência consiste
Em passar incertamente.
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GLOSAS
 
Toda a obra é vã, e vã a obra toda.
O vento vão, que as folhas vãs enroda,
Figura nosso esforço e nosso estado.
O dado e o feito, ambos os dá o Fado.

Sereno, acima de ti mesmo, fita
A possibilidade erma e infinita
De onde o real emerge inutilmente,
E cala, e só para pensares sente.

Nem o bem nem o mal define o mundo.
Alheio ao bem e ao mal, do céu profundo
Suposto, o Fado que chamamos Deus
Rege nem bem nem mal a terra e os céus.

Rimos, choramos através da vida.
Uma coisa é uma cara contraída
E a outra uma água com um leve sal,
E o Fado fada alheio ao bem e ao mal.

Doze signos do céu o Sol percorre,
E, renovando o curso,  nasce e morre
Nos horizontes do que contemplamos.
Tudo em nós é o ponto de onde estamos.

Ficções da nossa mesma consciência,
Jazemos o instinto e a ciência.
E o sol parado nunca percorreu
Os doze signos que não há no céu.