sábado, 23 de janeiro de 2010

Walcyr Carrasco (Pinga-pinga de pinguço)


Um passeio nas vans que circulam de bar em bar

Bares do Itaim, Jardins e Pinheiros andam oferecendo um serviço exclusivo para bebuns. É uma van que os leva até em casa. Trata-se, com o perdão de um trocadilho, de um pinga-pinga de pinguços. As vans circulam de bar em bar. arrebanhando os etílicos, durante a madrugada.

Desde que o novo Código de Trânsito entrou em vigor, a polícia anda rondando perto dos bares, bafômetro a postos, em busca de motoristas infratores. Com as vans, os bares garantem faturamento. Os clientes podem mergulhar nos copos, sem depois arriscar a pele no asfalto. Serviços semelhantes já existem na Europa, nos Estados Unidos e no Japão. Raramente tomo umas e outras. Soube, entretanto. que o clima nas vans é animadérrimo. Imaginem seis bêbados indo para casa. A van estaciona para pegar o sétimo, em novo bar. Descem os seis primeiros.

E aí, que tal a saideira?

Dá-lhe! O inocente que saiu para tomar um ou dois uísques entra na animação. Acorda embaixo do balcão de uma padaria. Também são freqüentes os tipos belicosos e as discussões capazes de resolver o problema do futebol brasileiro.

Eu já disse que o Ronaldinho...

Ah, nego vem falar do Ronaldinho! Não vem! Nãããão veeeeem!

O Ronaldinho? O Ronaldínho?

Sóbrio por necessidade profissional. o motorista tenta aplacar os animos.

-Ô, pessoal, o Ronaldinho joga um bolão.

Os seis se unem.

- Cala a boca!

O coitado silencia. Abre a janela. É obrigado a dirigir a madrugada toda de vidro abaixado. Até o ar está impregnado. Se respirar mais fundo, fica de fogo.

Mais uma parada, entra um rapaz. Tomou só um ou dois goles.

- Eu sozinho. Lembrei da van. Que negócio é esse de ir para casa tão cedo?

Novo tropel. No veículo. fica só um, desmaiado, lá no fundo. Os outros descem, atrás de nova rodada. A van é ideal para fazer amizades. Há quem chegue até mais longe.

A senhora não está bêbada! - desconfia o motorista.

Ela afina a voz, bambeia as pernas.

- Estou bebinha, sim!

Consegue entrar. Aperta-se entre todos. Examina um por um, com o olhar esperto. Um está bêbado demais. Outro, passado da idade. O terceiro, sim, serve! Tem perfil de executivo. Ela afia as garras. Ele nem desconfia., quando descem no mesmo prédio. Sobem juntos no elevador, aterrissam no mesmo andar. Começa a ficar cabreiro quando, após várias tentativas, consegue botar a chave na porta e percebe que ela o espera. Não há tempo para perguntas. Ela entra depressa, vai até o bar e prepara dois uísques. Ele cai duro no sofá. Consegue erguer uma das pestanas meia hora depois.

Quem é você? - pergunta, trêmulo.

Você me convidou para um uísque! - ela retruca, revoltada.

O executivo vasculha o cérebro. Não consegue lembrar. Mas deve ter convidado. Senão, por que ela estaria em sua sala? Bebe mais uma dose para acordar e desmaia. Na semana seguinte, ela já está falando em casamento. Ele continua não se lembrando de nada.

Também existem alpinistas sociais. Como o sujeito que mora na periferia. Quer chegar em casa de carro. A maior parte dos bares adota limites mínimos de consumo, para dar direito a carona. Ele bebe o mínimo. Depois, exige que o levem para a casa. O motorista quase cai nas barrancas do Tietê para chegar até lá. O falso bebum desce alegremente. Os amigos, admirados.

-Tu tá por cima. hein, malandro? Chegando em casa de chofer!

Sorri, vitorioso. Sai mais barato do que táxi. O bêbado desmemoriado é uma tragédia.

O senhor não se lembra do endereço?

Eu aaaaaaaaaacho que é virando aquela rua...

Toca a vasculhar quarteirões.

Certo tipo de bebum não vai de van. É o imprevidente, que saiu de casa em seu próprio carro. O bar oferece o motorista. que dirige para o cliente. Mas bêbado detesta terminar a noite sozinho.
Soooobe aí. Veeeem tomar uma comigo.

Sinto muito. A van do bar vem me pegar em meia hora, esquiva-se o motorista.

Soooobe só meia hooora.

O chofer acaba mais bêbado do que o cliente. Quando a van chega, está cantando na sarjeta. Há quem possa se espantar com a idéia. É uma medida civilizada. Com este calor, poucos resistem a um chope, ou a dois, a três, quatro... Ficam a salvo pedestres e postes!


Fonte:
Revista VEJA. São Paulo. 11 de março 1998.

Izabel Leão (O Galo Chico)



Recolhendo fragmentos no baú de minhas memórias fui trazendo lembranças a tanto esquecidas que foram narradas por meu pai, ainda vivo, e que tem muita coisa pra contar.

Sempre que o visito em Bauru, cidade onde nasci e por lá fiquei até meus trinta e pouco anos, ele passa a rememorar seus arquivos antigos e me brindar com histórias que só quem viveu é capaz de contar.

A que mais me recordo é sobre um tal galo de estimação, que tanto ele gostava e que para sua tristeza era manco com defeito em uma das pernas.

Foi em São Manoel, cidade próxima a Bauru, que papai nasceu e lá viveu sua infância simples e humilde. Ele conta que sempre que voltava da escola correndo e esbaforido gritava já da calçada: Chico, cadê você? Vem cá Chico!!!!! Chico! Chico! E lá vinha o Chico correndo e mancando pelo quintal atrás daquele que o chamava e ele nem sabia o porquê.

Papai tinha certeza que ele era o único na família que prezava tanto o Chico. “Eu tinha dó do pobre galo. Peguei carinho por ele”, diz condoído.

Como nada na vida que a gente ama dura pra sempre, assim também foi com o querido galo Chico.

Um dia papai chega da escola e grita: Chico! Vem cá. Grita mais uma vez: Chico! vem cá. Cadê você!!! E grita mais uma centena de vezes e nada do Chico aparecer. Ele achou estranho, e preferiu pensar que o galo estivesse em algum momento melancólico e não quisesse brincar. Exclamou: “Deixa pra lá!”

Na hora do jantar, o cheiro apetitoso da comida da vovó Izabel, do qual o meu nome originou-se, faz meu pai sair correndo para a mesa garantir um naco daquilo que parecia estar muito gostoso. Eis que para a sua surpresa era um ensopado de frango.

Desconfiado lhe vem a mente, mais que de repente, a lembrança do galo Chico, correndo pelo quintal e atendendo ao seu chamado.

Naquela noite papai não quis comer o ensopado. Perdeu a fome. Nem quis perguntar pra vovó de onde vinha aquele frango. Ele conta que ela era brava demais e com certeza ia lhe dar uma bronca. Só sabe que o galo Chico nunca mais apareceu. E ele não quis nem ouvir o lhe era difícil e dolorido de aceitar.
––––––––––––––––-
(*) Izabel Leão é jornalista em São Paulo, SP.

Fontes:
Jornal Guata. Foz do Iguaçu.
Imagem =
http://sotaodaines.chrome.pt

Palavras e Expressões mais Usuais do Latim e de de outras linguas) Letra U-V


ubi bene, ibi patria
Latim = Onde se (vive) bem, aí (está) a pátria. Conceito materialista dos cosmopolitas.

ubi eadem ratio ibi eadem legis dispositio
Latim Direito = Onde existe a mesma razão, aí se aplica o mesmo dispositivo legal.

ubicumque sit res, pro domino suo clamat
Latim = Onde quer que esteja a coisa clama pelo seu dono. Princípio jurídico que resume o direito de propriedade, também citado assim em moral: res clamat domino, a coisa clama por seu dono.

ubi non est justitia, ibi non potest esse jus
Latim = Onde não existe justiça não pode haver direito. A justiça é que sustenta as diversas formas de direito.

ubi Petrus, ibi Ecclesia
Latim = Onde (está) Pedro aí (está) a Igreja. Provérbio muito citado pelos apologistas católicos que só consideravam verdadeira a igreja que estivesse em comunhão com o pontífice romano.

ubi societas, ibi jus
Latim Direito = Onde (está) a sociedade aí (está) o direito. De modo geral, as causas correm no foro da comarca onde a sociedade foi estabelecida.

ubi solitudinem faciunt, pacem appelant
Latim = Onde estabelecem a solidão, atraem a paz. Frase que Tácito atribui a um herói, vítima da rapinagem dos soldados romanos.

ultima ratio
Latim = Última razão. Argumento decisivo e terminante.

ultima ratio regum
Latim = Último argumento dos reis. Legenda gravada nos canhões de Luís XIV.

ultra petita
Latim Direito = Além do pedido. Diz-se da demanda julgada além do que pediu o autor.

una salus victis, nullam sperare salutem
Latim = A única salvação para os vencidos é não esperar salvação. Frase com que Enéias procura arrancar do desânimo os companheiros vencidos em Tróia.

una voce
Latim = De comum acordo; em coro; unanimemente.

unguibus et rostro
Latim = Com as garras e com o bico; com unhas e dentes.

urbi et orbi
Latim = Para a cidade (de Roma) e para o universo. Diz-se das bênçãos dadas pelo papa, em circunstâncias especiais, quando as estende ao mundo inteiro.

uti, non abuti
Latim = Usar, não abusar.

uti possidetis
Latim Direito = Como possuís. 1 Fórmula diplomática que estabelece o direito de um país a um território, baseada na ocupação pacifica dele. 2 Princípio que faz prevalecer a melhor posse provada da coisa imóvel, no caso de confusão de limites com outra contígua.

utile dulci
Latim = O útil ao agradável.

vade in pace
Latim = Vai em paz. Palavras com que o confessor despede o penitente, depois de absolvê-lo.

vade mecum
Latim = Vai comigo. Diz-se dos livros de conteúdo prático e útil, e formato pequeno.

vade retro, Satana!
Latim = Vai para trás, Satanás! Expressão usada duas vezes por Jesus: (Mt. IV, 10) a fim de repelir o demônio que o tentava de idolatria e (Marcos, VIII, 33) para repreender o apóstolo Pedro, que desejava dissuadi-lo de aceitar a morte e a paixão.

vae soli!
Latim = Ai do solitário! Expressão com que o Eclesiastes (IV, 10) lamenta a fraqueza do homem abandonado à própria sorte.

vae victis!
Latim = Ai dos vencidos! Exclamação atribuída a Breno, célebre caudilho gaulês que derrotou e saqueou Roma no ano de 390 a. C.

vanitas vanitatum et omnia vanitas
Latim = Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade. Conclusão melancólica do Eclesiastes (XII, 8), sobre a pequenez das coisas deste mundo.

varietas delectat
Latim = A variedade agrada.

varium et mutabile semper femina
Latim = A mulher é algo mutável e inconstante. Expressão de Virgílio (Eneida, IV, 569-570).

velut aegri somnia
Latim = Como os sonhos de doente. É como Horácio (Arte Poética, 7) compara as obras literárias, sem entrosamento nas idéias; são sonhos disparatados de um enfermo.

veniam petimus damusque vicissim
Latim = Pedimos licença e a damos também. Horácio (Arte Poética, 2) aconselha a tolerância nas relações.

Veni Creator Spiritus
Latim = Vinde Espírito Criador. Primeiro verso do hino litúrgico da festa do Espírito Santo.

venite, exultemus Domino
Latim = Vinde, exultemos no Senhor. Palavras do breviário no invitatório de matinas, recitado diariamente pelos ministros sagrados.

veni, vidi, vici
Latim =Vim, vi, venci. Palavras com que César anunciou, ao Senado Romano, sua vitória sobre Farnaces, rei do Ponto, no ano 47 a. C. São citadas como alusão a um êxito seguro e rápido em qualquer empreendimento.

ventus popularis
Latim = Aura popular; popularidade.

vera incessu patuit dea
Latim = Manifestou-se verdadeira deusa pelo andar. Modo como Virgílio se refere a Vênus (Eneida, 1, 405).

verba et voces, praetereaque nihil
Latim = Palavras e vozes e nada mais. Verso de Ovídio em que o poeta verbera alguns discursos do seu tempo.

verba volant, scripta manent
Latim = As palavras voam, os escritos permanecem. Provérbio de grande atualidade que aconselha prudência em pronunciamentos comprometedores e na assinatura de contratos bilaterais.

verbum pro verbo
Latim = Palavra por palavra; ao pé da letra. Diz-se das traduções e interpretações fiéis.

vergiss mein nicht
Alemão = Não me olvides; miosótis.

veritas odium parit
Latim = A verdade gera o ódio. Conceito emitido por Terêncio, cujo pensamento é o seguinte: a complacência produz amigos e a franqueza, o ódio.

vesica piscis
Latim = Bexiga de peixe. Grande nimbo em forma de amêndoa.

victis honos
Latim = Honra aos vencidos. Empregada nas competições esportivas como sinal de confraternização.

victrix causa diis placuit, sed victa Catoni
Latim = A causa vencedora agradou aos deuses, mas a vencida a Catão. Lucano, em Farsália, I, 128, alude à fidelidade de Catão a Pompeu, quando este foi derrotado por César. Emprega-se para expressar apoio a uma causa, embora vencida.

video meliora, proboque, deteriora sequor
Latim = Vejo as coisas melhores e as aprovo, mas sigo as piores. Imagem do homem fraco, traçada por Ovídio (Metamorfoses, VII, 20). Vê o bem e o aprova, mas é arrastado pelas paixões.

vient de paraître
Francês = Acaba de surgir. Usada no mercado de livros para anunciar as novidades literárias.

vincit omnia veritas
Latim =A verdade vence todas as coisas.

vir bonus dicendi peritus
Latim = Homem de bem, perito em falar. O perfeito orador, segundo Quintiliano, deve aliar a honestidade de vida à perfeição oratória.

vis-à-vis
Frances = Frente a frente. Empregada quando alguém se encontra em frente a outra pessoa numa mesa, bailado etc.

vitam impendere vero
Latim = Consagrar a vida à verdade.

vivas in Deo
Latim = Que tu vivas em Deus. Frase com que os primeiros cristãos se despediam daqueles que morriam, desejando-lhes a felicidade eterna.

vivere parco
Latim = Viver com pouco.

vivit sub pectore vulnus
Latim = A ferida ainda vive no coração. O poeta Virgílio refere-se à paixão nascente de Dido.

volenti nihil difficile
Latim = Nada é difícil a quem quer; querer é poder.

volenti non fit injuria
Latim = Não se faz injúria àquele que consente. Axioma jurídico segundo o qual a vítima não se deve queixar em juízo de uma ofensa por ela consentida.

volti subito

Italiano = Volte rapidamente. Música = Expressão empregada nas partituras.

vox clamantis in deserto
Latim = A voz do que clama no deserto. Palavras de São João Batista, referindo-se a si próprio (Mt. II, 3), quando pregava às multidões no deserto. A expressão passou a ser empregada para designar aquele cujas admoestações não são atendidas.

vox faucibus haesit
Latim = A voz ficou presa na garganta. Expressão virgiliana para indicar uma forte emoção.

vox populi, vox Dei
Latim = Voz do povo, voz de Deus. O assentimento de um povo pode ser o critério de verdade.

vulnerant omnes, ultima necat
Latim = Todas ferem, a última mata. Inscrição filosófica em mostradores de relógios. Cada hora fere a nossa vida até que a derradeira a roube.
=====================
LETRA A http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/palavras-e-expresses-mais-usuais-do.html
LETRA B http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/palavras-e-expresses-mais-usuais-do_07.html
LETRA C http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/palavras-e-expresses-mais-usuais-do_21.html
LETRA D http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/11/palavras-e-expresses-mais-usuais-do.html
LETRA E http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/11/palavras-e-expresses-mais-usuais-do_28.html
LETRA F http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/01/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do.html
LETRA G-H http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/05/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do.html
LETRA I http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/06/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do.html
LETRA J-L http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/06/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do_21.html
LETRA M http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/07/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do.html
LETRA N http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/07/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do_11.html
LETRA O http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/09/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do.html
LETRA P http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/10/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do.html
LETRA Q http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/10/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do_17.html
LETRA R http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/11/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do.html
LETRA S http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/11/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do_21.html
LETRA T http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/12/02/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do-latim-e-de-outras-linguas-letra-t/

Fonte:
Helio Consolaro. In Por Tras das Letras

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Trova 111 - Pedro Ornellas (São Paulo/SP)

Alex Giostri (O Homem Atrás do Escritor. O Escritor Atrás do Homem)



Dando prosseguimento à série de entrevistas O homem atrás do escritor, o escritor atrás do homem. A mulher atrás da escritora, a escritora atrás da mulher, nesta segunda entrevista o Singrando Horizontes conversou com o escritor, editor, roteirista, dramaturgo Alex Giostri

Alex é paranaense, mudou-se muito cedo para São Paulo, viveu por doze anos no Rio de Janeiro (1996-2008) e voltou à São Paulo, onde vive até hoje. Formou-se em Cinema, algumas pós-graduações, inúmeros cursos profissionalizantes e ingressou profissionalmente na literatura. Colaborador de jornais como Jornal do Brasil e Tribuna da Imprensa, trabalhou como diretor de filmes publicitários. Idealizou e coordenou o Projeto Novo Autor (2004). Criou seu próprio selo editorial Giostri Editor. Com o início do marca, logo ampliou os trabalhos e apresentou ao mercado o RAG Editor e o selo infantil Giostrinho, os três selos da Giostri Editora Ltda. Tem 5 livros publicados, obras teatrais, roteirista de cinema. Mais detalhes de sua biografia podem ser encontrados em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/12/alex-giostri.html

INFANCIA E PRIMEIROS LIVROS

Conte um pouco de sua trajetória de vida, onde nasceu, onde cresceu, o que estudou.

Nasci em Umuarama, Paraná. Cresci em São Paulo e fui ao Rio de Janeiro aos 22 anos. Estudei Cinema na graduação e fiz algumas pós-graduações, uma de roteiro de cinema e dramaturgia. Também pesquisei sobre psicanálise e até hoje fuço sobre os mais inusitados assuntos. Minha trajetória foi um tanto confusa. Tive muitos problemas de ordem pessoal, passei pela coisa da droga, da criminalidade, da prisão. Isso no final da adolescência, começo da vida adulta.

Como era a formação de um jovem naquele tempo? E a disciplina, como era?

Peguei os anos 90, final dos anos 80. Uma geração rock/punk. Vim de família tradicional, com os problemas também tradicionais. Pai alcoólatra, mãe ressentida. Fui criado nas regras e nos limites. O prato cheio para quem quer ousar. Quebrei todos os limites e infringi todas as regras. Mas olhando hoje, noto que nada é à toa nessa vida. Tanto, que eu ter passado por tudo que passei foi imprescindível. Mexendo no baú da memória percebo que se eu não tivesse sido o que fui não seria quem sou hoje e não teria essa bagagem humana que carrego por conta das tantas pauladas que levei dessa vida.

Recebeu estímulo na casa da sua infância?

Sim. Tive uma mãe que desde pequeno me deu livros. Na época lia por ler. Não sabia que preferia o universo da ficção à realidade. Lia porque lia. Só descobri a importância dos livros da infância aos 22 anos. Entre 14 anos e 21 anos e não li quase nada. Vivi a vida da melhor e da pior maneira. Depois voltei à leitura e ao silêncio.
E não foi apenas esse estímulo. Foram muitos outros. Fui muito amado. Ainda sou. Só não sei afirmar se o amor ofertado a mim foi o que deveria ser - da maneira que deveria ser - como deve ser, mas foi amor.

Quais livros foram marcantes antes de começar a escrever.

Li muito. Comecei a escrever por necessidade. Por desilusão. Descobri um mundo mais sadio nos livros, um mundo mais interessante. Dos que me lembro, os romances de Dostoievski me fizeram muito bem. Os clássicos em geral me deram muito de beber. Sou um escritor que é fruto do que leu. Não escrevo porque escrevo. Escrevo porque li, porque leio, porque adoro criar universos a partir do que vejo ou sinto.

ALEX GIOSTRI, O ESCRITOR

Fale um pouco sobre sua trajetória literária. Como começou a vida de escritor?

Vim da leitura. Depois vim da desilusão. Passei a escrever versos para me salvar da dor, da angústia do dia a dia. Escrevia porque amava e não sabia amar. Dos versos passei à prosa, da prosa passei às crônicas e das crônicas passei às críticas em jornal, depois aos roteiros de cinema, de TV, depois passei aos textos de teatro e no meio disso tudo, passei a escrever livros. Sou um autor que acredita na palavra, no universo da ficção. Estudei e estudo as linguagens, as maneiras de dizer o que quero dizer e também as possibilidades de dizer o que quero dizer nesse ou naquele veículo. Mudam-se as formas, mas o conteúdo é o mesmo. O que importa é aquilo que eu quero dizer e a maneira que eu quero dizer. Se for para o teatro, eu adapto no cenário, na boca do ator, no gestual, na luz. Se for cinema, eu passo às imagens e aos jogos de cena. Se for TV, eu priorizo os núcleos, novamente os atores, mas desta vez a fala por si só. E se for livro, que é a que eu mais gosto, eu buscarei a voz do narrador. Hoje tenho 36 anos. Portanto, um autor jovem. Tenho muito a aprender da vida e de mim. Tenho muito a ler. Ainda não escrevi um livro que eu possa dizer: maravilha!

Como foi dar esse salto de leitor pra escritor?

Um acaso que estava escrito e eu não sabia. Olho para trás e analiso quem sou eu e não me vejo fazendo outra coisa, sendo um outro tipo de homem. Sou do universo da ficção, tenho uma pré-disposição a essa “vida dupla”, ser eu e não ser eu. Quando vi, eu estava escrevendo, quando notei um pouco mais, eu estava debruçado na teoria, quando me olhei mais a fundo haviam passado doze anos e eu estava vivendo do meu trabalho e fazendo a mesma coisa, com a mesma rotina, sem mudar nada. E, para minha surpresa, gostando e feliz.

Teve a influência de alguém para começar a escrever?

Que eu me lembre não. Tive dos autores que li. Talvez da vida e do meu inconformismo em relação a ela. Talvez da minha inabilidade em viver em sociedade e fazer parte de coisas que eu não acredito e não acreditarei nunca, pelo visto. Escrever para mim é como me salvar de algo que não me interessa. Não gosto mesmo da vida do dia a dia. Gosto da rotina, da minha rotina. E não é um paradoxo ou uma contradição, é o que é. O dia a dia inclui gente, gente e gente. A minha rotina inclui eu, o silêncio, o computador e a música. Muito mais divertido.

Tem Home Page própria (não são consideradas outras que simplesmente tenham trabalhos seus)?

Tenho. Optei por ter após ter a minha vida fuçada por leitores e jornalistas. Tudo sobre minha vida está no site. Não tenho nada escondido por aí. www.alexgiostri.com.br

Você encontra muitas dificuldades em viver de literatura em um país que está bem longe de ser um apreciador de livros?

Não encontro, mas não posso esbanjar. Vendo os meus textos, os meus roteiros, as minhas críticas. Dou aula, sou sócio de uma editora de livros. Editora que só existe porque eu quis publicar as minhas obras por mim mesmo. Sou o tipo de homem que arregaça a manga e vai trabalhar. Faço livros e vendo custe o que custar. Não tem jogo ruim comigo. Distribuo em todas as livrarias do país, cobro, vendo pra vizinha da esquina, troco nisso, naquilo, faço o que aparecer. Livro e texto são a minha maneira de ganhar a vida.

Como foi que você chegou à poesia?

Não sou um poeta. Embora eu tenha poemas escritos. Acredito no poeta de alma. Aí talvez até possa me colocar lá no final da fila, sem demagogia. Mas o poema pra mim é o desabafo. Não escrevo profissionalmente poesia. É a hora do lanche, digamos assim. E muito lento. Em 2009 eu fiz uma apenas. Sou um homem da prosa, eu acho. Risos.

SEUS LIVROS E PREMIOS

Como começou a tomar gosto pela escrita?

Escrevo para me salvar do mundo e das pessoas. Escrever livros me toma tempo, estudo, pesquisa. E isso me tira da circulação. E eu adoro e sou um adepto da reclusão, ainda que ultimamente esteja vivendo em São Paulo e adoecido de corpo e alma pelo tumulto dia e noite.

Em que se inspirou em seus livros?

Tenho cinco livros publicados. Dois voltados para autores, sob a ótica da filosofia e da psicanálise, um voltado para atores, sob a ótica da identidade e da sua construção, um de contos, que é gênero fantástico, surreal, onde trato muito do universo da perversão e um sobre relação, sob a ótica da psicanálise também, esse com uma estrutura dramatúrgica entrelaçando a obra em prosa.

Como definiria seu estilo literário?

Ainda o procuro. Mas espero que eu vá para o campo da ficção, da novela, da estrutura formal clássica e talvez com um pouco dessa modernidade dita contemporânea. Acredito nos diálogos, creio que facilita a vida do leitor. Mas não acredito no leitor burro, acredito no leitor despreparado. Mas quem é despreparado pode se preparar, se quiser, ou for bem orientado.

Quais foram os livros que escreveu?

Componentes fundamentais para um texto ficcional.
Do pensamento para o papel
A/C do Ator – tratado sobre a profissão
Meninos
Afeto Amor e Fantasia

Dentre os seus livros escritos, qual te chamou mais atenção? E por quê?

Cada livro tem a sua história. O meu gozo é momentâneo. Gosto do livro que escrevo no ato da escrita e no processo de revisão. Ao publicá-lo, ele se transforma num produto de compra e venda e passa a ser de interesse público, ou não. O que eu não gosto mais é o do Ator. Preciso revê-lo urgentemente. Mas dos outros, gosto de todos.

Que acha de sua obra?

Acho-a respeitável. Aceitável.

Qual a sua opinião a respeito da Internet? A seu ver, ela tem contribuído para a difusão do seu trabalho?

Creio que sim. A internet facilita tudo.
Tem prêmios literários?

Tenho um de dramaturgia no ano de 2005. Um texto teatral chamado QUASE. Num concurso nacional.

CRIAÇÃO LITERÁRIA

Você precisa ter uma situação psicologicamente muito definida ou já chegou num ponto em que é só fazer um "clic" e a musa pinta de lá de dentro? Para se inspirar literariamente, precisa de algum ambiente especial ?

Preciso da melancolia para criar. Preciso do silêncio, da solidão. Tenho uma necessidade de me sentir esquecido, abandonado. Talvez algum conflito mal resolvido. Mas essa solidão, esse esquecimento me fazem muito bem, me deixam à mercê da vida e assim eu parto pra um novo universo no papel. Escrevo por encomenda também. E não sinto a menor dificuldade. O que digo é o ideal, mas nem sempre podemos ter o ideal.

Você projeta os seus livros? Ou seja, você projeta a ação, você projeta o esquema narrativo antes? Como é que você concebe os livros?

Nunca escrevi um romance, nem mesmo uma novela literária. Do livro de contos, todos partiram de uma situação, de um telefonema, de alguém que eu vi na rua. Eu pego a situação e imediatamente a transformo e a escrevo dentro de mim, depois vomito no papel e passo à construção. Os textos teatrais são mais pensados. Penso o que eu quero falar e como quero apresentar isso ao espectador. Feito isso, defino o tempo que quero contar a trama, tempo cronológico e desenho a estrutura no papel e na cabeça.

Você acredita que para ser escritor basta somente exercitar a escrita ou vocação é essencial?

Há de se ter uma pré-disposição à coisa. O exercício é fundamental. Mas penso que não é tão simples assim. Penso que se tudo vai bem, que se a vida é linda e maravilhosa, se tudo que eu quero está ali, aos meus pés, se o meu mundo é idêntico ao mundo da novela das 21h, não há porque eu escrever nada. O autor, geralmente, tem essa inconformidade em alguma parte. E é dela que partem as ideias e as histórias. O autor nasce do leitor, do bom leitor, do leitor esfomeado não pela história, mas pelas palavras da história, pelas frases da história, pelos parágrafos da história, pelos capítulos.

Como surge o momento de escrever um livro?

Eu venho desenhando sempre novas ideias, mas não tenho conseguido levá-las adiante por conta da editora. Mas o momento ideal é aquele que você para tudo e se dedica à obra. Meu desejo é escrever uma obra anualmente. Em 2009 eu não consegui. Vamos ver esse ano.

Quanto tempo você leva escrevendo um livro?

Em 2008 eu escrevi AFETO AMOR E FANTASIA. Desenhei os capítulos e os tópicos de cada capítulo em março e passei às pesquisas. Em setembro, com tudo pronto, iniciei a obra com cronograma. Só trabalho com cronograma. Tantas páginas por dia. Nem mais nem menos. Em 28 dias o livro estava pronto para revisão. Depois mais vinte dias ele estava revisado e aprovado. Depois mais 20 dias ele estava diagramado e em seguida publicado.

Como foi o processo de pesquisa para a escrita de seus livros?

A cada tema eu tenho um processo de pesquisa. Mas sou um autor que acredita na pesquisa. Não acredito no genial. Creio no trabalho de pesquisa de campo mesmo. Existe o tempo da definição do tema, o tempo da pesquisa e o tempo da escrita.

No processo de formação do escritor é preciso que ele leia porcaria?

Fundamental que leiam textos ruins. Para minha formação de dramaturgo, eu idealizei um projeto no Rio de Janeiro em 2003 onde recebia textos teatrais de autores para leituras públicas. Recebi pra lá de 300 textos. E resenhei todos. Muitos bons, mas muita porcaria. O meu tradicional é ler duas ou três bombas e uma obra genuína. Com isso vou aprimorando o olho para as ciladas. Na editora leio muita bomba, mas recebo muitas obras interessantes. E, quando quero lavar a alma e os olhos, vou à livraria e compro uma obra genuína, um clássico, um autor brasileiro que admiro, alguma obra que eu possa ler e dizer: nossa, mas que maravilha!

ESCRITORES E LITERATURA

Mas existe uma constelação de escritores que nos é desconhecida. Para nós, a quem chega apenas o que a mídia divulga, que autores são importantes descobrir?

Por trabalhar diretamente com autores há muitos anos, conheço os nomes que nunca foram publicados. É uma resposta dolorosa, mas falta que esses autores acreditem em si e ponham a mão na massa. Ora, se é uma necessidade, um sonho, se é muito importante para o autor e ele acredita em si próprio é fundamental que ele não espere de ninguém, que ele encare isso como um desafio mesmo. E dizer que é difícil. Pergunto: o que é fácil? Nada. E fracassar é melhor do que não tentar. Digo por mim. Ninguém me deu nada. Não sou tão bom assim. Sou apenas um cara que correu e corre atrás do que quer. Não meço esforços. E, ainda não estou lá onde quero estar: num sítio sossegado escrevendo um livro por ano. Trabalho e luto hoje para isso. Apenas para isso. Preciso se segurança e tranquilidade financeira. Por este motivo estou na luta do pão nosso de cada dia.

Na sua opinião, livro ou livros da literatura da língua portuguesa deveriam ser leitura obrigatória?

Ler não deve ser obrigatório. Ler é prazer. E o grande mal da educação é acreditar que obrigar a ler fará do pequeno cidadão um leitor. Pergunta a todos: por que um jovem deve ler em casa se ao chegar lá a mãe não lê e o pai também não? Por que ele deve ler se o professor que o obriga a ler o livro também não leu?

Qual o papel do escritor na sociedade?

O papel utópico do escritor na sociedade é tentar melhorá-la, transformá-la. Mas o papel real do escritor na vida de hoje é tentar com as suas crenças e com a sua literatura apresentar uma nova maneira de viver ou vir a vida. Está na hora de alguns escritores descerem do salto alto e compreenderem quem são os leitores, quem deve ler e para quem de fato se deve escrever. O que adianta frufruzar nas palavras, nas organizações das frases, na sintaxe do todo? As pessoas não leem, não podem comprar livros, não são educadas a lerem; ao pegarem uma obra de um autor desses, não entenderá nada e dirá: não gostei. Ninguém diz: não entendi. Vai logo para o não gostei.
O papel do escritor, portanto, é resgatar o leitor a qualquer custo. É deixar de fazer caras e bocas. O escritor é um homem como outro qualquer. É um funcionário da sociedade e de si mesmo.

Há lugar para a poesia em nossos tempos?

Há lugar para tudo e todos. Mas quero saber onde estão os verdadeiros poetas. Os poetas de alma, aqueles que se importam com as palavras e nada mais.

O ESCRITOR, PESSOA HUMANA

O que te choca hoje em dia?

O mundo me choca. As pessoas me chocam.

O que você lê hoje?

Leio textos de autores a serem publicados diariamente. Leio obras que me interessam na medida em que consigo um tempo. Ouço notícias. E não leio mais jornal impresso. Não me interesso mais pelas notícias ruins.

Você possui algum projeto que pretende ainda desenvolver?

Sim, muitos.

De que forma você vê a cultura popular nos tempos atuais de globalização?

Somos ferramentas da sociedade. Cada um na sua, fazendo a sua parte. Atingimos a minoria, mas estamos aqui e não iremos parar de fazer o que gostamos - pelo menos eu.

CONSELHOS AO NOVO ESCRITOR

Que conselho daria a uma pessoa que começasse agora a escrever ?

Leia. Mas leia mesmo. Esqueça o computador. Vá ler livro. Não tem dinheiro para comprar livros? Vá às bibliotecas. Assista aos filmes clássicos, veja peças de teatro. Estude a sua língua, a língua portuguesa. Compreenda o significado das palavras. E, sobretudo, se interesse mais pelo outro, pelo seu vizinho, pelo seu amigo, saiba mais um pouco da visão de mundo das pessoas que te rodeiam.

E para encerrar a entrevista

Se Deus parasse na tua frente e lhe concedesse três desejos, quais seriam?

Se parasse aqui, agora, nesse instante, terça-feira, dia 19 de janeiro de 2010, eu pediria que me desse uma paz interior eterna, que retirasse definitivamente alguns defeitos de estimação que me incomodam e que não consigo me livrar e por fim que me deixasse ganhar numa dessas mega-sena acumuladas para eu ir para o fim do mundo me dedicar apenas ao silêncio e às palavras novamente.

Fonte:
Entrevista virtual realizada por José Feldman para o Singrando Horizontes.

Delasnieve Daspet (Caderno de Poesias I)


Frente a Frente

Eis-nos. Frente a frente.
O mundo é redondo.
Um dia poderia acontecer.

Te fitei de longe.
Ao teu lado, em teus braços,
outros braços, não os meus;
Outro corpo, não eu!

Até este momento não tinha me dado conta
de como é desconcertante olhar alguém
que já havia sido paixão.

Estavas bem à minha frente
- alheio a minha pessoa -
sem perceber minha emoção.

E eu te adivinhava.
Teus pensamentos. Teus gostos.
Teu cheiro. Teu hálito.
Tiques.... sabia tudo de ti!

Eis-nos!
Tu, eu e ela.
A uma curta distância,
tão longe e tão perto.
Tudo em ti ocupado:
o coração e o lugar ao lado!

Sempre pressenti que nada havia
mas pensei que poderia mudar
o curso da história.

Continuei fitando sem ver...
Buscava respostas que não existiam:
Porque não tinha dado certo?
Porque - nuvens negras?
Porque - o impedimento?
Porque - a indiferença?

Te encontrar fez-me recordar
das saudades e do querer - outra vez....
Vi que os fantasmas ainda estão insepultos!
...Talvez não tenha havido um grande amor....

28-07-03 - Campo Grande MS

Ondas no Tempo.

Como uma pedra
Que se joga no rio
Venho formando ondas no tempo.

Nada importa.
Onde eu vá
Sempre estarei sozinha.

Já não pertenço a lugar algum.
Tudo que me resta são sonhos.
Agora é tarde para mudar,
- Está tudo feito! -
A chuva continua caindo.

Chuva fina e constante.
Olho a chuva,
Não suporto mais vê-la cair...

Findou o inverno
E a primavera com seus brotos e flores
Já surge nas árvores,
Na curva dos dias de sol.

Repouso minha poesia e meu canto
Numa quimera!
Caminho ao teu encontro,
Beijarei tua boca cheia de palavras,
E a saudade líquida fluirá rolando face afora.

05-10-2002 - Campo Grande MS
---------------------
Fonte:
Colaboração da Poetisa.

Daniela Schlogel (Oportunidade?)


O Jhony é muito malandro, dizem até que ele é mau caráter e quando surgiu a proposta de dar uma vaga de estagiário a ele com acompanhamento da assistente social, todos foram contra, tinha um ou outro que era a favor, não muito a favor, podemos dizer que quem era a favor, era só porque sabia que os do contra ganhariam. E entre o discurso dos do contra dizia-se:
“Ah, aquilo ali é bandido”, “Dar emprego pra ele é arrumar sarna pra se coçar”.

E mesmo assim, havia quem acreditava que dar o emprego ao menino seria proporcionar a ele algumas horas de vivência em um ambiente moralmente saudável. E mandou-se o menino para a empresa e não era uma empresa qualquer, era uma empresa pública, economia mista e coisa e tal. No primeiro dia de trabalho colocaram-no para picotar papel, toda a manhã, e enquanto isso os funcionários trataram de espalhar a boa nova aos outros funcionários ainda desinformados.

”Aquele ali já foi preso num sei quantas vezes”, “Se eu não me engano já vi ele no programa Aterrorizando a Massa”.

E assim entre picotes de papel e nenhuma cordialidade dos companheiros chegou ao fim o primeiro dia de trabalho de Jhony e é claro que passou pela cabeça dele inúmeras observações:

“Será que vou passar o mês inteiro picotando papel?”, “Nem pra ter uma telefonista gatinha nesse lugar”, “Olha o tipo desse careca, fica só me olhando de cara feia”, “Ia ser mais massa se tivesse alguém pra conversar”.

No segundo dia o novo estagiário foi até sua orientadora de referência para saber a ordem do dia e ela foi categórica

– “Como você já picotou todo o papel e hoje eu tenho muitas tarefas financeiras as quais você não pode auxiliar, vai cuidar do nosso Laboratório de informática, fica ali na última porta a esquerda, não vai muita gente lá, todos os computadores devem ficar desligados e se alguém for até lá você deve ligar para pessoa utilizar e anotar o nome e o tempo que a pessoa permaneceu fazendo uso do mesmo. Sabe ligar o computador?”
– “Sim Senhora”.
– “Então pode ir”

E lhe passou as chaves. Jhony entrou naquela sala silenciosa, sentou-se e mais um milhão de observações lhe passaram na cabeça, estava sentado, olhando pro nada e com um “bico” que demonstrava indignação, quando chegou o careca, aquele careca que só ficava olhando pra ele de cara feia e a primeira pergunta que o careca fez foi

– “Por que você teve passagem?”

O menino não entendeu bem a pergunta e ele se explicou dizendo que queria saber o que o menino tinha feito de errado para ter sido apreendido, sem pudor nenhum. O menino contou ao careca que se desdobrou em perguntas, a cara do careca tinha mudado de descaso para interesse e isso fez o menino se sentir o grande protagonista, afinal ele tinha a atenção do careca e mais que isso ele despertou o interesse de outra pessoa, coisa que não lembrava ter acontecido muitas vezes desde a infância. Todos os fatos que o menino descreveu ao careca, é claro, chegariam aos ouvidos de todos os outros funcionários, mas o menino nem pensou nisso e nem em imagem perante aos colegas e nem em nada, a verdade é que o menino se embriagou na sensação de “ser interessante”.

Quando o careca deixou a sala, o menino estava convencido mesmo sem saber de que era realmente “do crime”. Era aonde as pessoas lhe reconheciam como pessoa. A experiência profissional estava reafirmando sua situação de exclusão. Ele teve a oportunidade, mas não aceitação e muito menos o pertencimento.

Antes de sair naquele dia, Jhony abriu um computador e tirou uma peça, ele nem sabia para quê servia, mas sabia que devia valer algum dinheiro. Escondeu a peça e não soube bem como fechar o gabinete aberto do PC. Foi embora e nunca mais retornou ao local. Aqueles que já não acreditavam no menino desde o início usaram a tão famosa frase “Eu já sabia”. Há alguns que dizem que isso se trata da profecia que se autocumpre. Todos nós queremos ser alguma coisa independente do que seja.
–––––––––––––––
Daniela Schlogel é educadora em Foz do Iguaçu, Pr.

Fontes:
Jornal Guata. Foz do Iguaçu
Imagem = http://oglobo.globo.com/blogs/moreira

Cruz e Sousa (Poemas Humorísticos e Irônicos II)


VELHO VENTO

Velho vento vagabundo!
No teu rosnar sonolento
Leva ao longe este lamento,
Além do escárnio do mundo.

Tu que erras dos campanários
Nas grandes torres tristonhas
E és o fantasma que sonhas
Pelos bosques solitários.

Tu que vens lá de tão longe
Com o teu bordão das jornadas
Rezando pelas estradas
Sombrias rezas de monge.

Tu que soltas pesadelos
Nos campos e nas florestas
E fazes, por noites mestas,
Arrepiar os cabelos.

Tu que contas velhas lendas
Nas harpas da tempestade,
Viajas na Imensidade,
Caminhas todas as sendas.

Tu que sabes mil segredos,
Mistérios negros, atrozes
E formas as dúbias vozes
Dos soturnos arvoredos.

Que tornas o mar sanhudo,
Implacável, formidando,
As brutas trompas soprando
Sob um céu trevoso e mudo.

Que penetras velhas portas,
Atravessando por frinchas...
E sopras, zargunchas, guinchas
Nas ermas aldeias mortas.

Que ao luar, pelos engenhos,
Nos miseráveis casebres
Espalhas frios e febres
Com teus aspectos ferrenhos.

Que soluças nos zimbórios
Os teus felinos queixumes,
Uivando nos altos cumes
Dos montes verdes e flóreos.

Que te desprendes no espaço
Perdido no estranho rumo
Por entre visões de fumo,
Das estrelas no regaço.

Que de Réquiens e surdinas
E de hieróglifos secretos
Enches os lagos quietos
Revestidos de neblinas.

Que ruges, brames, trovejas
Ó velho vândalo amargo,
No sonâmbulo letargo
De um mocho rondando igrejas.

Que falas também baixinho
Lá da origem do mistério,
Trazendo o augúrio sidéreo
E certa voz de carinho...

Que nas ruas mais escusas,
Por tardes de nuvens feias,
Como um ébrio cambaleias
Rosnando pragas confusas.

Que és o boêmio maldito,
O renegado boêmio,
Em tudo o turvo irmão gêmeo
Do sonhador Infinito.

Que és como louco das praças
Nos seus gritos delirantes
Clamando a pulmões possantes
Todo o Inferno das desgraças.

Que lembras dragões convulsos,
Bufantes, aéreos, soltos,
Noctambulando revoltos
Mordendo as caudas e os pulsos.

Ó velho vento saudoso,
Velho vento compassivo,
Ó ser vulcânico e vivo,
Taciturno e tormentoso!

Alma de ânsias e de brados,
Consolador companheiro
Sinistro deus forasteiro
D'espaços ilimitados!

Tu que andas, além, perdido,
Tateando na esfera imensa
Como um cego de nascença
Nos desertos esquecido...

Que gozas toda a paragem,
Toda a região mais diversa,
Levando sempre dispersa
A tua queixa selvagem.

Que no trágico abandono,
No tédio das grandes horas
Desoladamente choras,
Sem fadigas e sem sono.

Que lembras nos teus clamores,
Nas fúrias negras, dantescas,
Torturas medievalescas
Dos ímpios inquisidores.

Que és sempre a ronda das casas,
A gemente sentinela
Que tudo desgrenha e gela
Com o torvo rumor das asas.

Que pareces hordas e hordas
De hirsutos, intonsos bardos
Vibrando cânticos tardos
Por liras de cem mil cordas.

Ó vento lânguido e vago,
Ó fantasista das brumas,
Sopro equóreo das espumas,
Ó dá-me o teu grande afago!

Que a tua sombra me envolva
Que o teu vulto me console
E o meu Sentimento role
E nos astros se dissolva...

Que eu me liberte das ânsias
De ansiedades me liberte,
Pairando no espasmo inerte
Das mais longínquas distâncias.

Eu quero perder-me a fundo
No teu segredo nevoento,
Ó velho e velado vento,
Velho vento vagabundo!

[COMO FORTES GARGALHADAS]

Como fortes gargalhadas
Por um templo de cristal,
Sonoramente vibradas,
Como fortes gargalhadas,
Sinto idéias baralhadas
N’um frágil descomunal
Como fortes gargalhadas
Por um templo de cristal.

[DA BRUMA PELOS PAÍSES]

Da bruma pelos países
Pelos países da bruma,
Longe dos astros felizes,
Da bruma pelos países,
Tu vais perdendo os matizes
Da luz e da glória em suma,
Da bruma pelos países,
Pelos países da bruma.

À REVOLTA

A Cassiano César

O século é de revolta — do alto transformismo,
De Darwin, de Littré, de Spencer, de Laffite —
Quem fala, quem dá leis é o rubro niilismo
Que traz como divisa a bala-dinamite!...

Se é força, se é preciso erguer-se um evangelho,
Mais reto, que instrua — estético — mais novo
Esmaguem-se do trono os dogmas de um Velho
E lance-se outro sangue aos músculos do povo!...

O vício azinhavrado e os cérebros raquíticos,
É pô-los ao olhar dos sérios analíticos,
Na ampla, social e esplêndida vitrine!...

À frente!... — Trabalhar à luz da idéia nova!...

— Pois bem! Seja a idéia, quem lance o vício à cova,
— Pois bem! — Seja a idéia, quem gere e quem fulmine!...

ESCÁRNIO PERFUMADO

Quando no enleio
De receber umas notícias tuas,
Vou-me ao correio,
Que é lá no fim da mais cruel das ruas,

Vendo tão fartas,
D'uma fartura que ninguém colige,
As mãos dos outros, de jornais e cartas
E as minhas, nuas — isso dói, me aflige...

E em tom de mofa,
Julgo que tudo me escarnece, apoda,
Ri, me apostrofa,

Pois fico só e cabisbaixo, inerme,
A noite andar-me na cabeça, em roda,
Mais humilhado que um mendigo, um verme...

DECADENTES

Richepin, Rollinat! gritos sangrentos
Da carne alvoroçada de desejos,
Mosto de risos, lágrimas e beijos,
Estertores de abutres famulentos.

Desesperado frêmito dos ventos,
De harpas, sutis, fantásticos harpejos,
Clarins de guerra, e cânticos e adejos
De aves — todos os vivos elementos.

Tudo flameja e nas estrofes canta,
Estruge, zune, em borbotões levanta
Noites, luares, fulgurantes dias.

Mas nessa ideal temperatura forte
Tudo isso é triste como a flor da morte
Que brota dentro das caveiras frias...
------------
Fonte:
Cruz e Sousa Poemas Humorísticos e Irônicos. Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional.

Antonio Ozaí da Silva (A Experiencia da Dor)


Segunda-feira. Deveria ser mais um dia como outro qualquer, mas uma dor aguda, quase imperceptível, indicava que algo não estava bem. Mesmo assim, saí e fui fazer coisas que não gosto, mas que a rotina obriga, como ir ao banco. O corpo não me enganara, os pressentimentos revelaram-se reais. A dor, insidiosamente, aumentava de intensidade até tornar-se insuportável. Precisei antecipar o retorno. Depois, o médico diagnosticaria o que parecia o óbvio: mais uma crise da coluna, ou, como digo em tom de brincadeira, era o “nervo asiático”. Injeções, comprimidos de vários tipos e repouso – eufemismo que indica a condição em que nos vemos forçados a permanecer deitados a maior parte do tempo, dormindo sob o efeito dos medicamentos ou em estado de sonolência. E assim passaram-se os dias da semana…

O que fazer quando não é possível permanecer em pé ou mesmo sentado? O que fazer quando a vida limita-se ao espaço de alguns metros quadrados, do tamanho da cama, e a dor torna-se a companheira indesejável, porém inseparável? Só resta dormir, tomar remédios, dormir novamente e torcer para que a química comece a surtir os efeitos desejados e apazigúe a dor que teima em permanecer. Até que, finalmente, ela cede, diminui de intensidade e já é possível se movimentar um pouco, fazer as refeições à mesa e, até mesmo, escrever um texto – embora sentado na cama e com precauções, pois ela, a dor, ainda está perto e o corpo denuncia a sua presença.

A imobilidade forçada é angustiante. A dor não altera a consciência do que é preciso ser realizado, das tarefas pendentes que são adiadas. Fossem outros tempos, sem computadores e, portanto, sem emails a responder, revistas eletrônicas a encaminhar, Orkut e redes de relações sociais a manter, atividades acadêmicas virtuais a fazer, etc., a angústia seria atenuada. Nos novos tempos, porém, a tecnologia torna-se extensão do corpo e até mesmo as relações sociais passam a ser influenciadas e determinadas pela capacidade de permanecer conectado. O enfermo em sua cama sente-se impotente por não conseguir dar conta das tarefas já incorporadas ao cotidiano virtual e solitário em sua dor.

Há, porém, aspectos compensadores. Inativo, forçado a permanecer deitado, ele tem tempo mais do que suficiente para pensar. Mesmo na sonolência, a mente se torna um turbilhão de idéias, reflexões e lembranças. E, inevitavelmente, passa a refletir sobre a própria dor. Ele recorda do período em que leu a obra de Milan Kundera e da brincadeira que ele faz em um dos seus livros com o dito cartesiano “Penso, logo existo”. A medida da existência, na verdade, é dada pela dor. Portanto, talvez seja mais correto afirmar: “Sinto, logo existo”. A dor parece resumir tudo, torna-se a síntese do viver.

Mas o que é a minha dor diante do sofrimento do torturado? E como explicar o absurdo de um ser humano infligir dor a outro e, ainda mais, sentir prazer? O que significa diante do que sente alguém com o corpo perfurado por uma bala ou sofreu um acidente e está entre a vida e a morte na UTI? O que é a minha dor diante da tragédia que vitima milhares de seres humanos no Haiti? Como somos egoístas diante da dor!

“A verdade da dor reside naquele que a sofre”, leio em História do Corpo.* Aliás, uma leitura que vem a calhar, mas que, ironicamente, não foi planejada para este momento. Enquanto a dor cede e permite concentrar-se, o tempo do ócio, ainda que em condições não muito propícias, pode ser dedicado ao aprendizado e reflexão sobre o corpo, um corpo histórico mas tão real e humano quanto o meu. A leitura me faz compreender melhor o corpo, a dor e o sofrimento humano, mas não cessa a dor que sinto. Conheço-me um pouco mais, mas preferia não passar por esta experiência.
––––––––––––––––––––-
* CORBIN, Alain. Dores, sofrimentos e misérias do corpo. In: História do corpo: da Revolução à Grande Guerra, sob a direção de Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello, Petrópolis,RJ: Vozes, 2009.

Fontes:
Colaboração do autor Antonio Ozai da Silva
Imagem = http://blogs.diariodepernambuco.com.br

Ignácio de Loyola Brandão (O homem cuja orelha cresceu)


Estava escrevendo, sentiu a orelha pesada. Pensou que fosse cansaço, eram 11 da noite, estava fazendo hora-extra. Escriturário de uma firma de tecidos, solteiro, 35 anos, ganhava pouco, reforçava com extras. Mas o peso foi aumentando e ele percebeu que as orelhas cresciam. Apavorado, passou a mão. Deviam ter uns dez centímetros. Eram moles, como de cachorro. Correu ao banheiro. As orelhas estavam na altura do ombro e continuavam crescendo. Ficou só olhando. Elas cresciam, chegavam a cintura. Finas, compridas, como fitas de carne, enrugadas. Procurou uma tesoura, ia cortar a orelha, não importava que doesse. Mas não encontrou, as gavetas das moças estavam fechadas. O armário de material também. O melhor era correr para a pensão, se fechar, antes que não pudesse mais andar na rua. Se tivesse um amigo, ou namorada, iria mostrar o que estava acontecendo. Mas o escriturário não conhecia ninguém a não ser os colegas de escritório. Colegas, não amigos. Ele abriu a camisa, enfiou as orelhas para dentro. Enrolou uma toalha na cabeça, como se estivesse machucado.

Quando chegou na pensão, a orelha saia pela perna da calça. O escriturário tirou a roupa. Deitou-se, louco para dormir e esquecer. E se fosse ao médico? Um otorrinolaringologista. A esta hora da noite? Olhava o forro branco. Incapaz de pensar, dormiu de desespero.

Ao acordar, viu aos pés da cama o monte de uns trinta centímetros de altura. A orelha crescera e se enrolara como cobra. Tentou se levantar. Difícil. Precisava segurar as orelhas enroladas. Pesavam. Ficou na cama. E sentia a orelha crescendo, com uma cosquinha. O sangue correndo para lá, os nervos, músculos, a pele se formando, rápido. Às quatro da tarde, toda a cama tinha sido tomada pela orelha. O escriturário sentia fome, sede. Às dez da noite, sua barriga roncava. A orelha tinha caído para fora da cama. Dormiu.

Acordou no meio da noite com o barulhinho da orelha crescendo. Dormiu de novo e quando acordou na manhã seguinte, o quarto se enchera com a orelha. Ela estava em cima do guarda-roupa, embaixo da cama, na pia. E forçava a porta. Ao meio-dia, a orelha derrubou a porta, saiu pelo corredor. Duas horas mais tarde, encheu o corredor. Inundou a casa. Os hospedes fugiram para a rua. Chamaram a polícia, o corpo de bombeiros. A orelha saiu para o quintal. Para a rua.

Vieram os açougueiros com facas, machados, serrotes. Os açougueiros trabalharam o dia inteiro cortando e amontoando. O prefeito mandou dar a carne aos pobres. Vieram os favelados, as organizações de assistência social, irmandades religiosas, donos de restaurantes, vendedores de churrasquinho na porta do estádio, donas-de-casa. Vinham com cestas, carrinhos, carroças, camionetas. Toda a população apanhou carne de orelha. Apareceu um administrador, trouxe sacos de plástico, higiênicos, organizou filas, fez uma distribuição racional.

E quando todos tinham levado carne para aquele dia e para os outros, começaram a estocar. Encheram silos, frigoríficos, geladeiras. Quando não havia mais onde estocar a carne de orelha, chamaram outras cidades. Vieram novos açougueiros. E a orelha crescia, era cortada e crescia, e os açougueiros trabalhavam. E vinham outros açougueiros. E os outros se cansavam. E a cidade não suportava mais carne de orelha. O povo pediu uma providência ao prefeito. E o prefeito ao governador. E o governador ao presidente.

E quando não havia solução, um menino, diante da rua cheia de carne de orelha, disse a um policial: "Por que o senhor não mata o dono da orelha?"

Fontes:
SILVA, Deonísio da (seleção). Os melhores contos de Ignácio de Loyola Brandão. SP: Global Editora, 1993.
- Imagem = http://d3low.files.wordpress.com

Eloisy Oliveira Batista (Graciliano Ramos: escritor, narrador, autor e herói. Uma leitura do “eu” na obra Memórias do Cárcere)


Resumo: Esse artigo discute o modo como a escrita autobiográfica revela a construção do “eu” de Graciliano Ramos, que em Memórias do Cárcere assume os papéis de escritor (profissional), narrador (voz que encena a história), autor (que garante a unidade do texto) e herói (personagem). A obra é um relato das experiências vividas por Ramos quando ele esteve preso durante a Ditadura de Getúlio Vargas, no ano de 1936. Para tanto, algumas questões são centrais: a primeira delas é a relação entre tempo e espaço que se apresenta de modo constitutivo na própria estrutura do texto, “o tempo deixara de existir” (RAMOS, 1953); a segunda é o uso dos pronomes que revelam a construção do gênero autobiográfico e da identidade dos participantes do discurso, “desgosta-me usar a primeira pessoa” (RAMOS, 1953); e a terceira é a discussão do “estilo” da autobiografia, "Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas” (RAMOS, 1953).

Palavras-chave: memória, autobiografia, tempo, narrativa

A obra Memórias do Cárcere foi escrita por Graciliano Ramos a partir de sua vivência quando preso durante a Ditadura Vargas, em 1936, e o título dessa narrativa apresenta o seu propósito mais evidente: relatar as lembranças dessa experiência Nosso objetivo é fazer uma reflexão sobre como a escrita autobiográfica revela a construção do “eu” de Graciliano Ramos nesse relato, revelando que esse “eu” assume os papéis de escritor, narrador, autor e herói.

Ramos permaneceu em poder da polícia por dez meses, embora tenha sido condenado sem processo jurídico; por isso, não se sabe oficialmente qual a causa de sua prisão, mas tudo faz crer que ele foi vítima de vingança política por suas decisões quando diretor da Instrução Pública de Alagoas. Ao longo das memórias, ele não insiste na tentativa de desvendar esse mistério, ou seja, mostra-se mais interessado em relatar a experiência do que em buscar respostas.

Enquanto presidiário, Ramos transitou por diferentes lugares que são recuperados por fases em sua narrativa da memória, ou seja, a ordem cronológica dos acontecimentos é submetida à ordem de lugares em que ele vivenciou as experiências: primeiro no 20º Batalhão, em Maceió; em seguida em um quartel, no Recife; depois no porão do navio Manaus; mais tarde na Casa de Detenção no Rio de Janeiro, onde ficou no Pavilhão dos Primários; houve ainda o período em que permaneceu no Pavilhão dos Militares; também a Colônia Correcional, em Ilha Grande; na Polícia Central, novamente no Rio de Janeiro e, por último, na Casa de Correção. O espaço é, portanto, o eixo organizador da experiência traumática; uma escolha totalmente coerente a partir da constatação de que “o tempo deixara de existir” (RAMOS, 1953, vol. 4, p. 7)

. Nesse caso, a questão temporal é de extrema importância, pois o narrador faz diversas considerações a esse respeito ao longo da obra; mas, além disso, Márcio Seligmann-Silva afirma tratar-se de uma constante em narrativas que abordam experiências de presídio ou perseguições políticas:

Uma das características mais marcantes da experiência em instituições totais (ou sob regimes de exceção), onde a qualquer momento e por qualquer motivo absurdo pode-se perder a vida, é a temporalidade marcada pela ditadura do agora. (SELIGMANN–SILVA, 2006, p. 55)

A opção de utilizar o espaço como substituto da referência temporal é muito significativa, pois, do ponto de vista da linguagem, a relação entre tempo e espaço é intrínseca, o que se comprova nas metáforas que utilizamos para falar do tempo. Metáforas como: passar do tempo, anos atrás, daqui para frente, pertencem a princípio ao universo semântico do topos, pois só podemos pensar sobre o abstrato passando pelo sensível. Em outras palavras, não somos capazes de falar do tempo sem nos referirmos ao espaço (como metáfora), mesmo que esse vocabulário espacial não seja suficiente para tratar da atividade espiritual. Nesse sentido, observa Gagnebin (1997):

Não basta, pois, passar de uma noção espacial exterior do tempo a uma noção espacial interior, mesmo que houvesse aí um progresso em direção a uma descrição mais específica de como agimos ‘no’ tempo, com o tempo, ‘sobre’ o tempo. Ramos, portanto, no que se refere ao tempo, abre mão do processo metafórico e utiliza a linguagem de modo mais concreto. Trata-se de sua linguagem seca e direta tantas vezes comentada pelos crítico s, mas também da escrita de um "eu" que quer ser o mais autêntico e verossímil possível.

Foi mantida a grafia original em todas as citações.

Graciliano, portanto, dialoga com o questionamento sobre a (im)possibilidade da divisão do tempo primeiramente proposto por Santo Agostinho. Esse filósofo fundamental para se entender o pensamento acerca do tempo afirma que o passado e o futuro somente existem no presente. Além disso, ele reflete sobre a “veracidade” da memória, uma outra questão cara para Graciliano Ramos:

Ainda que se narrassem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígios. (Santo Agostinho, 1973, livro XI, 18\23, p. 246)

A relação entre memória e imagem mencionada na citação é fundamental também para Ricoeur (2007), para quem a memória é uma possibilidade da imaginação, com a diferença de que ela exige uma associação entre a imagem do presente e a do passado.

É na contracorrente dessa tradição de desvalorização da memória, nas margens de uma crítica da imaginação, que se deve proceder a uma dissociação da imaginação e da memória, levando essa operação tão longe quanto possível. Sua idéia diretriz é a diferença, que podemos chamar de eidética, entre dois objetivos, duas intencionalidades: uma, a da imaginação, voltada para o fantástico, a ficção, o irreal, o possível, o utópico; a outra, a da memória, voltada para a realidade anterior, a anterioridade que constitui a marca temporal por excelência da 'coisa lembrada', do 'lembrado' como tal. (RICOEUR, 2007, pp. 25-26)

Ricoeur observa também que o fenômeno da memória só existe porque há passagem do tempo, ou seja, é preciso uma situação de anterioridade. A obra aqui estudada tem um caráter bastante específico em relação ao tempo nessa concepção. Ela começou a ser escrita em 1946 e foi publicada em 1953, sendo que os acontecimentos narrados datam de 1936. Portanto, há uma gr ande distância temporal entre os acontecimentos e a imagem, os "vestígios" e a palavra; o que evidencia a diferença entre o escritor (profissional), o autor (aquele que garante a unidade literária do texto), o narrador (voz que encena a história) e o herói (personagem); elementos distintos, mas que possuem uma identidade comum a fim de garantir a realização dessa autobiografia.

Sobre a imaginação, Memórias do Cárcere também suscita reflexões, pois trata-se da obra de um romancista, ou seja, de um hábil manipulador de palavras, que sabe criar, ainda que respeite o referencial. A desconfiança da veracidade de seu testemunho é legítima, até porque suas obras ficcionais trazem também elementos da sua realidade vivida, filtrados de outra maneira, evidentemente, mas que sinalizam o quanto é rico esse enfrentamento de escritor no que diz respeito a delimitação de um gênero. Ele se utiliza dessa desconfiança e interage com ela, por isso, ele assume a sua parcialidade e se permite narrar o esquecimento:

Foi ali com certeza que achei meio de renovar a minha provisão de fósforos e cigarros. Não me recordo. Também não sei como nos forneciam água. Lembro-me de que ela se achava à entrada, perto do camarote do padeiro, mas esqueci completamente se estava em balde ou ancoreta, se vinha de encanamento. Afasto a última suposição, estou quási certo de que não existia nenhuma torneira. Esta lacuna me revela o desarranjo interno, pois a sêde era grande, estávamos sempre a beber. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 160)

Starobinski (1970) afirma que a autobiografia não é um gênero “regrado”, mas que possui como condição indispensável uma identificação entre o narrador e o herói, assim como é necessário que seja uma narração e não uma descrição. Notadamente, exige-se que a narração aborde uma experiência pessoal que interesse a outras pessoas, pressuposição que legitima o uso de uma experiência passada como tema do discurso.

Starobinski afirma ainda que o “eu” é confirmado em sua função de sujeito permanente pela presença do “tu”, que aparece como motivação da escrita. Memórias do Cárcere corresponde à definição de Starobinski, no entanto, apresenta especificidades, especialmente com relação ao uso dos pronomes.

Vamos nos concentrar principalmente no primeiro capítulo da obra, quando há uma apresentação dos motivos que a provocaram. Esse é um capítulo que se distingue dos demais, pois apresenta de modo mais evidente a voz do autor. Embora seja apresentado como um capítulo qualquer – recebe numeração como os outros, ou seja, não aparece intitulado como introdução – nota-se uma distinção da voz narrativa: "Resolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos – e, antes de começar, digo os motivos por que silenciei e por que me decido". (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 5)

Esse tom “justificatório”, que pode ser recorrente em muitas outras autobiografias, não volta a aparecer no texto de Memórias do Cárcere, no qual possui apenas o papel de definir - "antes de começar" - qual o tipo de texto apresentado, ou seja, funciona muito mais como uma necessidade do “gênero” (Gênero, nesse caso, aparece entre aspas pelo fato de ser uma categoria não discutida nesse momento.) do que como um elemento da narrativa propriamente dita, que começa, de fato, a partir do segundo capítulo:

No começo de 1936, funcionário na instrução pública de Alagoas, tive a notícia de que misteriosos telefonemas, com veladas ameaças, me procuravam o endereço. Desprezei as ameaças: ordinariamente o indivíduo que tenciona ofender o outro não o avisa. Mas os telefonemas continuaram. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 12)

Observa-se, portanto, que a partir do segundo capítulo a narração assume um tom muito mais romanesco. O primeiro funciona como um pacto inicial, um “pacto autobiográfico” (Conceito amplamente difundido por Philippe Lejeune em Le pacte autobiog raphique, 1975), no qual o autor oferece os parâmetros para a leitura de sua obra:

Nesta reconstituição de factos velhos, neste emiuçamento, exponho o que notei, o que julgo ter notado. Outros devem possuir lembranças diversas. Não as contesto, mas espero que não recusem as minhas: conjugam-se, completam-se e não dão hoje impressão de realidade. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 10)

Nota-se uma apresentação daquilo que, para o autor, classifica a sua obra como memorialista. O próprio termo memórias que aparece no título é significativo. Paul Ricoeur (1997, p. 41) nomeia aquilo de que nos lembramos como lembranças, o que exige de nós um esforço de retomada do passado; para ele, o termo memória é singular, pois seria o ato de se voltar para o passado. Esse termo, que aparece no título no plural, conjuga a experiência do lembrar e a lembrança em si, ou seja, enfoca não apenas o ocorrido, mas também o processo de rememoração.

O termo lembrança é também instigante, visto que, pertence ao campo conceitual de Walter Benjamin (Benjamin escreveu no mesmo período que Graciliano Ramos, por isso, é quase certo que um não conheceu a obra do outro. Mesmo assim, Walter Benjamin é um teórico importante no sentido de pensar questões e conceitos muito relacionados com o período histórico em que o autor escreveu; portanto, esse presente histórico vivenciado pelos dois autores têm sentido em suas respectivas obras. Assim, é possível aproximá-los, apesar da distância espacial, buscando coerências discursivas esclarecedoras.) em diferente par de opostos. Em "O narrador" (1980), Benjamin propõe uma comparação entre lembrança (do domínio da narrativa) e recordação (do domínio do romance) nos seguintes termos: a lembrança é uma retomada do passado o mais próximo possível do acontecido, nela há o compromisso com a verdade; já a recordação refere-se a muitos acontecimentos dispersos, escolhidos em função do presente.

Pode-se considerar que o uso de memórias para Ramos é a conjugação também dessas duas possibilidades, pois há justamente uma tentativa de recuperação do passado com um certo respeito pelo acontecido, mas há também a consciência da impossibilidade de se obter sucesso nessa tentativa. Graciliano Ramos lida, portanto, com um material riquíssimo: dados de uma vivência que contam uma outra versão da história do país, não a versão oficial; e a sua própria visão de mundo após essa experiência, após Segunda Guerra Mundial e após o seu reconhecimento como escritor.

O comprometimento com o passado centra-se em um elemento fundamental também mencionado no capítulo inicial: o uso da primeira pessoa. Desgosta-me usar a primeira pessoa. Se se tratasse de ficção, bem: fala um sujeito mais ou menos imaginário; fora daí é desagradável adoptar o pronomezinho irritante, embora se façam malabarismos por evitá-lo. Desculpo-me alegando que êle me facilita a narração. Além disso não desejo ultrapassar o meu tamanho ordinário. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 5)

O “tamanho ordinário”, a “insignificância”, essa modéstia que contrasta com a noção de que alguém considera a sua experiência digna de ser relatada também está presente no texto de forma abundante e participa do pro cesso de definição do “eu”. Essa visão de si próprio é uma maneira de Ramos transformar em valor estético o uso da primeira pessoa "necessário" à autobiografia, ou seja, acaba definindo também o que Starobinski denomina “estilo”.

Starobinski (1970) observa que a autobiografia oferece um quadro muito amplo de possibilidades, que permite a manifestação de uma grande variedade de estilos particulares. O estilo de Graciliano Ramos revela não apenas o seu talento como escritor, mas também a imagem que ele constrói do “eu” em sua narrativa, que funciona como uma chave de leitura da obra. O próprio autor apresenta no primeiro capítulo três aspectos que nortearão o estilo que predominará em sua escrita. Em primeiro lugar, com relação ao “tom” da narrativa: "Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze." (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 7)

Em segundo, com relação ao conteúdo dela: "Omitirei acontecimentos essenciais ou mencioná-los-ei de relance, como se os enxergasse pelos vidros pequenos de um binóculo; ampliarei insignificâncias, repetí-las-ei até cansar, se isto me parecer conveniente." (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 9)

E, também, de acordo com o seu direcionamento político: "Esgueirar-me-ei para os cantos obscuros, fugirei às discussões, esconder-me-ei prudente por detrás dos que merecem patentear-se." (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 11)

Starobinski (1970) afirma que o estilo é o índice da relação entre o escritor e o seu próprio passado. Portanto, ao observarmos as citações anteriores, o estilo de Graciliano Ramos nos revela que seu sentimento para com o passado é áspero, não totalmente compreendido e destituído de um posicionamento político.

Graciliano Ramos vai privilegiar em sua narrativa os episódios vivenciados ao lado de seus companheiros de prisão. Ricoeur afirma que, entre todas as coisas de que nos lembramos, privilegiamos os acontecimentos: "No plano fenomenológico, no qual nos situamos aqui, dizemos que nos lembramos daquilo que fizemos, experimentamos ou aprendemos em determinada circunstância particular". (2007, p. 42) Portanto, no estudo de um texto memorialista é imprescindível atentar para o "quem" se lembra, pois é o centro da circunstância. O acionamento da lembrança é particular não só pela parcialidade da vivência, mas também por aquilo que Ricouer chama de "fundo memorial":

Sob esse aspecto, as lembranças podem ser tratadas como formas discretas com margens mais ou menos precisas, que se destacam contra aquilo que poderíamos chamar de um fundo memorial, com o qual podemos nos deleitar em estados de devaneio vago. (RICOEUR, 2007, p. 41)

O fundo memorial é, portanto, o que nos constitui como indivíduos, ou seja, uma espécie de indefinível conjugação de todas as nossas experiências. Dessa forma, percebemos que o uso do "eu " não é uma escolha indiferente.

Benveniste, em Problémes de linguistique générale (1966), discute o sentido dos pronomes pessoais na estrutura das relações entre as pessoas verbais. Esse teórico faz a diferenciação entre a primeira, a segunda e a terceira pessoa a partir da distinção proposta pelos gramáticos árabes, segundo os quais: a primeira pessoa é aquela que fala, a segunda é aquela com quem se fala e a terceira é a que está ausente. Essa distinção demonstra que a primeira pessoa se impõe à necessidade de Graciliano Ramos porque a sua verdade está dita por todas as “vozes” possíveis no texto (escritor, autor, narrador e herói), portanto, a terceira pessoa não estaria de acordo com o seu projeto de escrita.

A primeira pessoa de Memórias do Cárcere não se dirige diretamente ao seu interlocutor, embora a sua presença seja constituinte do discurso; comprovando a afirmação de Benveniste de que a primeira e a segunda pessoa somente existem uma em função da outra. Ele defende também que as duas primeiras pessoas não se colocam no mesmo plano da terceira, que não é tratada como uma verdadeira “pessoa” verbal. No entanto, a terceira pessoa tem posição privilegiada nas Memórias, pois é a partir da relação com o outro (que no passado exerceu o papel de segunda pessoa) que o “eu” vai aos poucos compreendendo a si próprio. Portanto, a relação discursiva entre o narrador e o leitor é muito mais de apresentação da experiência do que de diálogo; em outras palavras, há uma espécie de encenação do passado.

De fato, Graciliano Ramos não escreve as memórias com o intuito de servir de exemplo, como Santo Agostinho em suas Confissões; também não precisa se justificar, como o faz Rousseau nas suas; e nem faz uma escrita de denúncia, como se poderia supor pelo cenário político apresentado. Ramos não diz claramente qual é o seu objetivo, mas insinua querer registrar sua “ressurreição”.

Aqui findo o resumo dos empecilhos até hoje apresentados à narração que inicio. Terão eles desaparecido? Alguns se atenuaram, outros se modificaram, determinam o que impediam, converteram-se em razões contrárias. Estarei próximo dos homens gordos do primado espiritual? Não, felizmente. Se me achasse assim, iria roncar, pensar na eternidade. (...) Contudo é indispensável um mínimo de tranqüilidade, é necessário afastar as miseriazinhas que nos envenenam. Fìsicamente estamos em repouso. Engano.

O pensamento foge da folha meio rabiscada. Que desgraças inomináveis e vergonhosas nos chegarão amanhã? Terei desviado esses espectros? Ignoro. Sei é que, se obtenho sossego bastante para trabalhar um mês, provavelmente conseguirei meio de trabalhar outro mês. Estamos livres das colaborações de jornais e das encomendas odiosas? Bem. Demais já podemos enxergar luz a distância, emergimos lentamente daquele mundo horrível de treva e morte. Na verdade estávamos mortos, vamos ressuscitando. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 7)

O termo ressurreição aproxima Graciliano Ramos do Walter Benjamin ( LÖWY, 2005) das "Teses sobre o conceito de história", que atribui ao passado grande importância na busca pela redenção e pela felicidade. Benjamin, assim como Ramos, não tem entusiasmo pelo futuro. A intenção de ambos é observar o passado e acertar as dívidas para transformar o presente. Trata-se, possivelmente, de uma necessidade de reagir contra o esquecimento:

Buscamos aquilo que tememos ter esquecido, provisoriamente ou para sempre, com base na experiência ordinária da recordação, sem que possamos decidir entre duas hipóteses a respeito da origem do esquecimento: trata-se de um apagamento definitivo dos rastros do que foi aprendido anteriormente, ou de um impedimento provisório, este mesmo eventualmente superável, oposto à sua reanimação? Essa incerteza quanto à natureza profunda do esquecimento dá à busca o seu colorido inquieto. (...) A recordação bem-sucedida é uma das figuras daquilo a que chamaremos de memória 'feliz'. (RICOEUR, 2007, p. 46)

Assim, por mais que as recordações sejam doloridas, a recuperação delas pode gerar uma espécie de bem-estar, devido a sensação de tarefa cumprida, talvez. Ramos participa ao leitor a informação de que os outros exigem dele essa narrativa do passado e que ele considera a exigência justa: “Acho que estão certos: a exigência se fixa, domina-me” (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 7). É evidente também a auto-exigência a que o escritor se submete, pois ele fez diversas anotações durante o período em que esteve preso, mas elas se perderam. Nota-se que Ramos, como autor, considera seu o papel de registrar uma experiência que deve ser narrada.

O narrador das memórias, nesse caso, é um narrador apto e comprometido, mas que na realização da escrita goza de liberdade. Ele não promete relatar a verdade, quer apenas oferecer ao leitor a sua percepção a respeito do passado. Ao se referir às tentativas frustradas de registrar os fatos no momento presente das experiências, comenta:

Quási me inclino a supor que foi bom privar-me dêsse material. Se êle existisse, ver-me–ia propenso a consultá-lo a cada instante, mortificar-me-ia por dizer com rigor a hora exacta de uma partida, quantas demoradas tristezas se aqueciam ao sol pálido, em manhã de bruma, a côr das fôlhas que tombavam das árvores, num pátio branco, as formas dos montes verdes, tintos de luz, frases autênticas, gestos, gritos, gemidos. Mas que significa isso? Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 9)

Sabe-se que não é possível recuperar no presente um acontecimento tal qual ele ocorreu pela própria definição de passado; no entanto, Paul Ricoeur (2007) defende a memória como sendo a única e mais eficiente maneira de acessarmos uma experiência anterior. Ele enfatiza o saldo positivo da memória:

A meu ver, importa abordar a descrição dos fenômenos mnemônicos do ponto de vista das capacidades das quais eles constituem a efetuação 'bem sucedida'. (...) o que justifica essa preferência pela memória 'certa' é a convicção de não termos outro recurso a respeito da referência ao passado, senão a própria memória (...). (RICOEUR, 2007, p. 40)

Dessa forma, fica evidente a importância do testemunho, que, para Ricoeur, é o elemento de transição entre a memória e a história; e a "verdade" é resultado do confronto de diversos testemunhos, sendo definidos quais são confiáveis e quais não o são; ou quais são convenientes e quais não o são.

Ramos conta uma história paralela à historiografia oficial e constrói sua relação com o “outro” (leitor) segundo a noção de Benveniste (1966, p. 232) do “tu” como sendo a pessoa “não-eu ”, no sentido de não-identificação. Ao contrário de muitos narradores de autobiografias, seu narrador não demonstra interesse nem no reconhecimento de sua escrita como documento histórico, nem na aproximação com o leitor.

Em certo sentido, a sua narrativa pode ser considerada mais “realista”, pelo seu principal propósito: o de encenar alguns episódios. Realista entre aspas, pois, como já foi dito, a memória não retoma um fato em si, que não pode nunca ser dito de maneira justa pela inevitável interferência da subjetividade de quem narra.

Graciliano Ramos esclarece ao seu leitor o que parece óbvio: afirma que não vai escrever um romance, entendido como ficção, pois os personagens existiram; mas avisa que os acontecimentos narrados podem ser frutos de sua imaginação. O escritor dá vazão a sua memória, mas o autor disciplina as imagens que surgem em sua lembrança a fim de alcançar a verossimilhança.

Em Memórias do Cárcere é evidente o distanciamento entre o narrador e o herói. O narrador está no presente da narração e o herói está no passado, porém, é especialmente a relação entre ambos que nos dá a noção do “eu” que perseguimos. A distância temporal e o ato da escrita os diferenciam a ponto de o narrador perceber e comentar com estranhamento algumas atitudes e alguns pensamentos do herói. “Na atrapalhação da partida, esquecera-me de um aviso importante. De facto não havia importância, mas ali, ausentando-me do mundo, começava a dar às coisas valores novos. Sucedia um desmoronamento”. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 41)

Essa citação exemplifica um outro elemento q ue coloca Memórias do Cárcere nos poucos parâmetros com que Starobinski define a autobiografia, trata-se da transformação:
Ajoutons encore cette remarque: Il n’y aurait pas eu de motif suffisant pour une autobiographie, s’il n’était intervenu, dans l’existence antérieure, une modification, une transformation radicale: conversion, entrée dans une nouvelle vie, opération de la Grâce. (STAROBINSKI, 1970, p. 261 ) – Tradução “caseira”: Acrescentamos ainda esta observação: não haveria motivo suficiente para uma autobiografia, se não houvesse intervindo, em uma existência anterior, u ma modificação , uma transformação radical: conversão, entrada em uma nova vida, operação da Graça.

A transformação do “eu” de Memórias do Cárcere acontece sempre a partir da convivência com seus companheiros. De forma que se retoma aqui a importância da terceira pessoa. São os outros, aqueles que estão ausentes na interação discursiva entre narrador e leitor que motivaram a escrita do autor. Não é contingente o fato de que quando o narrador utiliza a primeira pessoa no plural está sempre retomando a si e aos seus companheiros de prisão. Benveniste (1966, p. 233) observa que a passagem do singular para o plural no caso dos pronomes pessoais não apresenta apenas uma pluralização, mas que em muitas línguas há uma diferenciação da forma verbal da primeira pessoa do plural sobre aspectos inclusivos e exclusivos que apresentam uma complexidade particular. Observe a seguinte passagem: Formámos um grupo muito complexo, que se desagregou. De repente nos surge a necessidade urgente de recompô-lo. Define-se o ambiente, as figuras se delineiam, vacilantes, ganham relevo, a acção começa. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 10)

O narrador exclui o leitor, na medida em que une “eu” a “eles”. A primeira pessoa do plural é sempre enunciada por um “eu” que predomina em relação aos outros, por isso, quando Ramos utiliza essa forma pronominal não abandona o seu projeto autobiográfico, apenas marca a constituição de seu herói junto daqueles que lhe acompanharam e a muitos dos quais ele atendeu a exigência da escrita. Ao leitor cabe o papel de espectador ou de testemunha, conforme o envolvimento a que se disponha.

Assim se percebe de que maneira Graciliano Ramos articula as palavras a fim de se apresentar como escritor, autor, narrador e herói. Seu trabalho é tão exato que ele conseguiu coerência inclusive em um quesito que Starobinski não menciona como exigência da autobiografia: “Estou a descer para a cova, este novelo de casos em muitos pontos vai emaranhar-se, escrevo com lentidão – e provavelmente isto será publicação póstuma, como convém a um livro de memórias”. (RAMOS, 1953, vol. 1, p. 8)

A “publicação póstuma” de fato ocorreu. Graciliano Ramos deixou o livro incompleto com um único capítulo faltante que, segundo relato de seu filho Ricardo Ramos, traria as “sensações de liberdade” (RAMOS, 1953, vol. 4, pp. 162-164). O que nos interessa nesse estudo é perceber que a obra Memórias do Cárcere independe do fim e da finalidade, mas que se constitui nessa construção sempre incompleta do “eu”. E, assim, essas reflexões se encerram, aproveitando a possibilidade que o próprio Graciliano Ramos nos oferece de manter em aberto as possibilidades de leitura, sem a responsabilidade da “verdade”.

Fonte:
Revista Espaço Acadêmico. N. 100. Maringá: UEM. Setembro de 2009.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Olga Agulhon (O Dito e o não dito)


As palavras são cruéis e desobedientes;
não são humildes servas.
Fazem-nos cócegas
e depois que saem da boca,
não tornam a ela,
por mais que imploremos;
mas também não vão embora;
ficam ressoando no ar
e nos perseguem para sempre.
Por isso, busco o silêncio;
só ele nos deixa em paz.
As palavras...
prefiro prendê-las no papel.
Se viro a página
ou fecho o livro,
as silencio.
Vingo-me.
Venço.
Torno-me rei.
-----------------

Fontes:
Colaboração da poetisa.