domingo, 17 de janeiro de 2010

Ignácio de Loyola Brandão (Hora de Almoço na Cidade Grande)


Na tarde sombria de segunda-feira, sentado no Viena da Alameda Santos, eu hesitava entre o à la carte e o bufê. Entre pedir a carta, escolher, esperar, decidi pela preguiça, fui ao bufê que é variado, amplo, de acordo com um tempo que exige rapidez e preços acessíveis. Levantei-me, ainda pensando que, nas dicas mineiras da semana passada, me esqueci de recomendar a Casa Cambuquira, de Três Corações, com seus queijos brancos, verdadeiras musses, e os doces de leite Nata Suíça, que batem de longe o famoso e cobiçado La Pataya uruguaio, que a gente, aqui, só consegue quase no contrabando. Lembro-me do Viena desde os tempos em que era uma lanchonete situada em frente do corredor de entrada pela Avenida Paulista. As coxinhas de creme, imensas, o sanduíche com pão italiano e queijo derretido, que valia por almoço e jantar, e as tortas de morango que, no início, eram feitas pela própria dona, provocaram ao longo dos anos um problema: encontrar lugar no balcão, na hora do rush do almoço.

Alguém já parou para observar as pessoas diante de um bufê com suas cores atraentes? Vale por uma sessão de cinema, um programa de televisão. A democracia é total: lado a lado estão executivos com ternos Armani, comerciários, secretárias, estudantes, interioranos (ainda é possível reconhecê-los), bancários, jornalistas, modelos, funcionários das livrarias, consulados, mulheres bonitas. Não, elas não foram fazer compras na Rua Augusta! Há muito a rua deixou de ser point, está se transformando em um amontoado de estacionamentos. A fila diante das comidas se forma, compacta, desorganizada, alguns entram de um lado, outros vêm na contramão, há quem reclame, há quem ceda a vez. Os primeiros devem estar com fome, os outros já passaram pelo primeiro prato e estão voltando.

A diversidade de gostos está nos pratos. Há anos freqüento restaurantes como o Viena, além de circular pelos quilos, e jamais vi dois pratos iguais.

Queria estudar as personalidades por meio do que colocam nos pratos ou na forma como arranjam a comida, separando tudo bem separadinho. Alguns amontoam tudo, outros têm o cuidado de organizar. Tenho uma amiga, diretora de arte que odeia mandioquinha, que faz um desenho, combinando as cores, o verde da alface e da rúcula, o vermelho do tomate, o roxo da beterraba, o amarelo da mandioquinha, o branco do palmito, o alaranjado da cenoura.

Gostava de comer ao lado dela, para admirar o design do prato que devia ser fotografado. A diferença entre o quilo e os bufês é que no quilo não se volta à mesa, porque se paga a cada rodada, as pessoas montam um PF, célebre prato-feito, buscam comidas mais leves.

No bufê há uma certa contenção, vergonha do "pratão", porque as mesas ficam muito juntas e sempre existe a curiosidade de olhar o prato do outro.

Quantas vezes não ouvi a pergunta: "Essa torta, onde o senhor achou? Não estava lá quando passei!" É que, em certos momentos, a comida termina e enquanto o funcionário busca a reposição, fica um espaço vazio por minutos.

Mas comilões apressados na hora do almoço são impacientes. Os bufês democratizaram o salmão, o carpaccio e o estrogonofe, entre outras. Foram comidas "caras", hoje estão ao alcance de qualquer um. O caro que ainda não se vê em bufê e em "quilo" é o camarão à grega, imbatível no preço alto. Os vegetarianos ficam na seção de folhas, os carnívoros recomendam ao chapeiro o ponto que gostam. Ali no Viena, na segunda-feira chuvosa, vi um sujeito colocar oito bifes no prato. Tive vontade de segui-lo, daria para a família inteira. Décadas atrás, quando as pizzas rodízio começaram em São Paulo, entrei em uma do Grupo Sérgio, na Augusta. Foi das primeiras. Estava com toda a redação da Editora Três e fomos conferir a novidade. Uma sensação, poucos imaginam o impacto que causou na gastronomia paulistana a chegada da pizza rodízio. Um dia, ficamos boquiabertos, um homem na mesa ao lado comeu 28 pedaços de diferentes sabores. A garçonete chegava, ele aceitava. Vinte e oito fatias correspondem a quatro pizzas grandes e uma média. Devíamos ter fotografado, registrado e enviado ao Guinness.

Agora, no Viena, fiz meu prato, sentei-me e percebi que o sujeito ao lado desenhava com lápis de cera. Ele estava concentrado, tentando retratar uma loira alta e bonita, que comia sozinha, um ar altivo, cheia de si. Sabia que atraía olhares e fingia que não. Desenhava mal o artista de bufê. Por mais que olhasse e se esforçasse, não conseguia um só traço semelhante. Ou ele estava apenas tentando chamar a atenção da jovem? Aí, percebi que na minha mesa tinha um copinho com dois lápis de cera, um preto e outro amarelo.

Levantei-me, dei uma volta, havia muita gente rabiscando as toalhas de mesa, que são de papel. Desenhar enquanto se come. Por que não ler? Acho que sou dos raros que levam um livro para o restaurante. Dia desses, uma senhora me abordou: "O senhor não sabe que faz mal ler e comer?" Não sabia, como e leio há 50 anos. "Que mal?", indaguei. E ela ficou numa saia-justa, não sabia, sempre ouviu as pessoas dizerem isso. Vou continuar a ler, é uma hora sossegada, me abstraio dos barulhos do restaurante.

Agora, o jovem tentava retratar a loira que continuava indiferente, mas provavelmente com a auto-estima em alta. Será que ele desejava presenteá-la, usar o desenho como apoio para uma abordagem? E me veio à cabeça uma das imagens mais pungentes do cinema, em Os Amantes de Montparnasse (Montparnasse 19), de Jacques Becker, 1957. Modigliani (vivido por Gerard Philipe) precisando comer e vendendo por um preço de banana seus desenhos, de mesa em mesa, nos cafés de Paris, com as pessoas zombando dele. Agora, era o inverso. O jovem bem vestido, comia e queria desenhar. No entanto, estava longe, muito longe, tão distante de Modigliani quanto Marte da Terra.

Fontes:
Jornal O Estado de São Paulo. Caderno 2. Sexta-feira, 4 de junho de 2004.
Imagem descolorida de http://www.papatrilhos.com

Um comentário:

Betty Boguchwal disse...

Excelente crônica. Já li diversas vezes e agora fui buscar para mostrar a um colega. E novamente e lambuzei. O que me marcou mais é quando Inácio refere que quem vai repetir a comida, é quem cede a vez mais facilmente.
Parabéns Inácio, apesar de a crônica ter 13 anos, ainda está nova, pena que o Viena é que não é mais o mesmo.