A senhora já teve alguém da família preso? – ia perguntar, na primeira chance.
Podia ser quando ela entrasse na cozinha para pedir alguma coisa ou beber água e ficasse por ali puxando conversa, comentando alguma notícia. Às vezes dava para começar uma conversa assim comentando notícia, e eu contava tudo, se desse tempo.
Dizia primeiro que há uns seis meses tinha ido à cadeia pública. Um filho meu ficou preso vinte dias. Fui lá dois domingos para vê-lo e levar frutas. Não, não comprei frutas – levei biscoitos e cigarros e outras coisas. Não me lembro. Quando cheguei, vi logo que estava exasperado. Atirou num homem num baile; não matou, a bala passou de raspão. Nem sabia que ele tinha arma. Disse que em outro baile o sujeito tinha dado um tapa na cara dele e fugido na confusão. Que confusão? Um tapa na cara, ficou apanhado. Esse meu filho tem 23 anos.
Fui aqueles dois domingos para a fila. Tinha muitas mulheres, quase só mulheres. Jovens, velhas, meia-idade, tudo com sacola na mão, caladas, conversando, umas já conhecidas das outras, falando, falando. Nunca senti tanta vergonha de ser mulher, de ser mãe, de estar ali com aquelas outras todas, carregando coisas para amenizar o malfeito dos outros. E depois raiva, uma raiva que dava vontade de largar aquela sacola e ir andando sem rumo.
Pensava na distância grande até em casa, mas não podia me ver caminhando na cidade como num descampado, sem ponto final definido, sem parar para esperar os carros. Queria mesmo era andar sem rumo e sem paradas - num descampado - andar muito, até ficar meio grogue, sem sentir os pés, com uma moleza, sem saber de dia, de noite, do tempo desgraçado que fazia, ou muita chuva, ou pouca, sol fraco, sol escaldante, vento frio, mormaço, não consigo me lembrar. Como o tempo aqui é assim, talvez nem estivesse chovendo, não levava sombrinha, ou carreguei a minha pequena, por hábito, dentro de uma das sacolas. Tinha duas. Sacolas, quero dizer. Todas de plástico, do supermercado. Não, eram quatro, uma por dentro da outra, de reforço. Cheguei lá para entregar as coisas. Não teve muita conversa. Vi a vergonha dele. Vergonha da burrice, da cavilação. Comprou o revólver, ficou esperando o baile três semanas. Agora que está solto tem dificuldade de arranjar emprego por conta da ficha suja na polícia. Na época do tiro trabalhava, arrumou dinheiro, comprou arma, passou dias remoendo a raiva, fermentando. Gostaria de bater nele, dar uns tapas, sacudir pelos ombros, beliscar os braços, puxar os cabelos, torcer os dedos.
Vingança burra; se pegasse, miserável, quem perdia os melhores dias? Pro morto, nada mais conta: toda a merda ia ficar contigo mesmo. Essa sujeira. Não pelo resto da tua vida, mas bem pelo resto da minha, miserável. Não, queria que pelo resto da tua mesmo, o resto dos teus dias desgraçados, sem entendimento, remoídos, burros. Quem sabe aprendia alguma coisa nessa porcaria.
Se ela me perguntasse, sim, eu gostaria de ter dito. Não disse nada. Só as coisas habituais: “Oi, filho?”, eu disse. “Trouxe umas coisinhas aqui pra você”. Dei notícias de casa, as desculpas dos que não podiam visitá-lo, não permitiam a família toda - nem me lembro. Sei que não queriam, nenhum queria fazer visita em cadeia, o pai não quis, os irmãos não iam estragar a folga do domingo: vai você, mãe. Não disse. Dei as saudações, as lembranças, falei de um churrasco que o irmão mais velho queria dar quando ele saísse, seria logo sua saída. E ia sentindo minha falta de pena. Até enxergava a vergonha dele, exasperado, ignorante, o rosto mais fino, como se fosse magro e era forte. Mas pena, compaixão, dó de mãe, não consegui. Ali, durante a conversa, a raiva foi mudando, assentando. Eu olhava para ele, falava, agia tudo como mãe, mãe zelosa do filho; quero dizer, de sua maneira particular, levando coisas, falando, sem muitos afagos, mas com os cuidados, os cumprimentos etc. Mas de mim ele estava muito apartado. Depois, em casa, a distância foi diminuindo.
Penso agora que se dividiu pelos outros filhos. Toda vez que faço coisas por eles, um favor, uma atenção a mais, qualquer espécie de agrado, de ajuda, desconfio. Acho que é assim, um sujo num canto difícil de limpar, a gente olha aquele lugar, tenta, tenta, tenta, cansa, desiste, esquece. Depois vê de novo, tenta de novo, pensa até que melhorou e a sujeira acaba se entranhando, já faz parte daquele canto. Se der, falo. Será que falo mesmo? E ela escuta tudo ou me interrompe, faz perguntas? A senhora nunca vai conhecer meu filho, - podia começar.
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Emília Barbès nasceu em Belém do Pará em 1962. Formou-se em Química pela Usp em 1985 e pouco depois casou-se com um empresário canadense. No exterior, morou em Ottawa, Boston, Copenhagen e Vevey (Suíça). Divorciou-se e voltou para São Paulo, onde trabalha com educação infantil polilinguística. Começou a escrever recentemente.
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Fontes:
Cronopios – Literatura e Arte em Meio Digital.
Silvia Caroline.
Podia ser quando ela entrasse na cozinha para pedir alguma coisa ou beber água e ficasse por ali puxando conversa, comentando alguma notícia. Às vezes dava para começar uma conversa assim comentando notícia, e eu contava tudo, se desse tempo.
Dizia primeiro que há uns seis meses tinha ido à cadeia pública. Um filho meu ficou preso vinte dias. Fui lá dois domingos para vê-lo e levar frutas. Não, não comprei frutas – levei biscoitos e cigarros e outras coisas. Não me lembro. Quando cheguei, vi logo que estava exasperado. Atirou num homem num baile; não matou, a bala passou de raspão. Nem sabia que ele tinha arma. Disse que em outro baile o sujeito tinha dado um tapa na cara dele e fugido na confusão. Que confusão? Um tapa na cara, ficou apanhado. Esse meu filho tem 23 anos.
Fui aqueles dois domingos para a fila. Tinha muitas mulheres, quase só mulheres. Jovens, velhas, meia-idade, tudo com sacola na mão, caladas, conversando, umas já conhecidas das outras, falando, falando. Nunca senti tanta vergonha de ser mulher, de ser mãe, de estar ali com aquelas outras todas, carregando coisas para amenizar o malfeito dos outros. E depois raiva, uma raiva que dava vontade de largar aquela sacola e ir andando sem rumo.
Pensava na distância grande até em casa, mas não podia me ver caminhando na cidade como num descampado, sem ponto final definido, sem parar para esperar os carros. Queria mesmo era andar sem rumo e sem paradas - num descampado - andar muito, até ficar meio grogue, sem sentir os pés, com uma moleza, sem saber de dia, de noite, do tempo desgraçado que fazia, ou muita chuva, ou pouca, sol fraco, sol escaldante, vento frio, mormaço, não consigo me lembrar. Como o tempo aqui é assim, talvez nem estivesse chovendo, não levava sombrinha, ou carreguei a minha pequena, por hábito, dentro de uma das sacolas. Tinha duas. Sacolas, quero dizer. Todas de plástico, do supermercado. Não, eram quatro, uma por dentro da outra, de reforço. Cheguei lá para entregar as coisas. Não teve muita conversa. Vi a vergonha dele. Vergonha da burrice, da cavilação. Comprou o revólver, ficou esperando o baile três semanas. Agora que está solto tem dificuldade de arranjar emprego por conta da ficha suja na polícia. Na época do tiro trabalhava, arrumou dinheiro, comprou arma, passou dias remoendo a raiva, fermentando. Gostaria de bater nele, dar uns tapas, sacudir pelos ombros, beliscar os braços, puxar os cabelos, torcer os dedos.
Vingança burra; se pegasse, miserável, quem perdia os melhores dias? Pro morto, nada mais conta: toda a merda ia ficar contigo mesmo. Essa sujeira. Não pelo resto da tua vida, mas bem pelo resto da minha, miserável. Não, queria que pelo resto da tua mesmo, o resto dos teus dias desgraçados, sem entendimento, remoídos, burros. Quem sabe aprendia alguma coisa nessa porcaria.
Se ela me perguntasse, sim, eu gostaria de ter dito. Não disse nada. Só as coisas habituais: “Oi, filho?”, eu disse. “Trouxe umas coisinhas aqui pra você”. Dei notícias de casa, as desculpas dos que não podiam visitá-lo, não permitiam a família toda - nem me lembro. Sei que não queriam, nenhum queria fazer visita em cadeia, o pai não quis, os irmãos não iam estragar a folga do domingo: vai você, mãe. Não disse. Dei as saudações, as lembranças, falei de um churrasco que o irmão mais velho queria dar quando ele saísse, seria logo sua saída. E ia sentindo minha falta de pena. Até enxergava a vergonha dele, exasperado, ignorante, o rosto mais fino, como se fosse magro e era forte. Mas pena, compaixão, dó de mãe, não consegui. Ali, durante a conversa, a raiva foi mudando, assentando. Eu olhava para ele, falava, agia tudo como mãe, mãe zelosa do filho; quero dizer, de sua maneira particular, levando coisas, falando, sem muitos afagos, mas com os cuidados, os cumprimentos etc. Mas de mim ele estava muito apartado. Depois, em casa, a distância foi diminuindo.
Penso agora que se dividiu pelos outros filhos. Toda vez que faço coisas por eles, um favor, uma atenção a mais, qualquer espécie de agrado, de ajuda, desconfio. Acho que é assim, um sujo num canto difícil de limpar, a gente olha aquele lugar, tenta, tenta, tenta, cansa, desiste, esquece. Depois vê de novo, tenta de novo, pensa até que melhorou e a sujeira acaba se entranhando, já faz parte daquele canto. Se der, falo. Será que falo mesmo? E ela escuta tudo ou me interrompe, faz perguntas? A senhora nunca vai conhecer meu filho, - podia começar.
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Emília Barbès nasceu em Belém do Pará em 1962. Formou-se em Química pela Usp em 1985 e pouco depois casou-se com um empresário canadense. No exterior, morou em Ottawa, Boston, Copenhagen e Vevey (Suíça). Divorciou-se e voltou para São Paulo, onde trabalha com educação infantil polilinguística. Começou a escrever recentemente.
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Fontes:
Cronopios – Literatura e Arte em Meio Digital.
Silvia Caroline.
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