terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Vicência Jaguaribe (Por onde anda minha bela estatueta de porcelana branca?)


Há alguns dias, procuro uma estatueta de porcelana branca. Ela enfeitava um dos recantos de meu apartamento, posta em sossego na parte inferior de uma coluna. Não a encontro. Já começo a perguntar-me se a possuí um dia. Mas sua imagem me é tão clara, que não quero admitir que seja ela fruto de minha imaginação.

Como já disse, é de porcelana branca. Sua silhueta, fina e delgada, e sua beleza delicada sempre me deram impressão de diafaneidade. Talvez tenha uns cinqüenta ou sessenta centímetros de altura, nunca a medi. Como o leitor deve estar observando, faço questão de falar nela no presente do indicativo, porque não admito a sua perda.

Já a procurei em todos os cantos e recantos. Nos guarda-roupas, no alto dos maleiros, dentro das gavetas, nas estantes, e nada. A Noêmia, minha caríssima secretária, diz que não se lembra dela. E olhem que a Noêmia tem memória de elefante. E parece possuir um dom especial para achar coisas perdidas. Mas, desta vez, sua destreza para localizar objetos desaparecidos parece ter-se evaporado.

E fico eu, repetindo a busca nos mesmos lugares, nos mesmos cantos e recantos. E pergunto-me: Se essa estatueta nunca existiu e é fruto de minha fantasia, de onde saiu sua imagem, que preenche minha imaginação? Vi-a em alguma loja? Na casa de alguma amiga? Mas não sou assim tão impressionável. E o mais curioso nessa história é que me lembro não só da estatueta em si, mas de sua embalagem: uma caixa branca, fina e comprida, sem nenhuma inscrição ou desenho.

Lembro-me, inclusive, de uma conversa rápida que tive com um dos meus irmãos. Ele olhou uma outra estatueta – tenho mais de dez, de variados tamanhos e formatos – e disse que, para ele, aquela era a mais bonita. Eu discordei: Para mim, a mais bonita é a branca. Diga-me você, leitor: dá para pensar que inventei toda essa situação? Quem sabe, hein? Nossa memória nos prega peças, não há dúvida. Eu até diria, parodiando Shakespeare, que nossa memória, senhores leitores, nos prega mais peças do que jamais sonhou vossa (e nossa) filosofia.

Algumas lembranças que tenho – que todos temos – da infância me intrigam. E me pergunto: Eu me lembro mesmo desse episódio, ou as lembranças que acho guardar dele são o resultado de tanto ouvir meus familiares falarem sobre o dito cujo? Tenho dúvidas, por exemplo, sobre as lembranças que penso ter de uma cena de namoro de meu tio Dedé com uma prima. Como eu gostava muito dela, ficava perto e via-os abraçarem-se e beijarem-se. Então, dizia, com minha pronúncia precária, uma expressão que, depois, ouvi muitas vezes pela boca de minhas tias, recordando o episódio: Já tomeçou, hein?

O mesmo acontece com uma viagem que fiz com minha tia Sinhazinha – a Mãe da Vovó – e minha irmã Francisca Marta – a Neném. Em uma das paradas do misto, um desconhecido, ouvindo-nos chamar nossa tia de Mãe da Vovó, saiu-se com esta pergunta: Eu pensei que estas meninas fossem suas filhas. Mas são suas netas, não são? Como ouvi minha tia contar essa história muitas vezes, hoje não sei mais se me lembro do acontecido ou se o introjetei partindo de suas palavras.

É sempre difícil admitir-se falha de memória. Como tudo que envolve o mecanismo cerebral, a memória é algo que se reveste de um caráter de intangibilidade, que facilmente atrai o preconceito. É muito mais simples admitir que se está com um sério problema cardíaco, com uma grave pneumonia, até com um tumor maligno, do que admitir que se está com falhas de memória. A falha de memória pode indicar o início da demência senil ou a visita daquele alemão de nome Alzheimer, tão na moda nestes tempos de novos males e de novos nomes para males antigos.

Bem, mas voltemos à minha bela estatueta de porcelana branca. Onde a deixei, caríssimos leitores? Onde a deixei ou a guardei no espaço físico do meu apartamento? E onde a deixei no espaço textual. Há algum dêitico, por aí, que me possa apontá-la? Há alguma pessoa de boa vontade que possa de novo abrir gavetas e guarda-roupas, revirar lençóis e toalhas, desencostar móveis e finalmente gritar bem alto, empregando o dêitico mágico – Está aqui!?

Quanto a situá-la no texto, posso dispensar esse trabalho. Seria uma busca inútil, pois coloco o ponto final desta crônica agora, neste exato momento, e aqui, neste exato lugar.

Fontes:
Colaboração da autora.
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