domingo, 17 de janeiro de 2010

Vicência Jaguaribe (O Sonho Encenado )


Na calçada, o inexpressivo violão acompanhando a voz rouquenha e desafinada. Na cabeça, dez anos de sonho. A encenação do sonho, que, de tanto ser sonhado, soava-lhe realidade.

No começo, viajava à capital, onde – dizia – encontrava-se com seu ídolo, um cantor de sucesso do momento. Levava-lhe fitas cassetes, com músicas que compunha. E deixava-as com ele, que as incluía no disco seguinte. Mas, na ficha técnica, apareciam como se fossem composições do próprio cantor. Ele dizia-se revoltado e continuava a tocar o inexpressivo violão, que acompanhava a voz rouquenha e desafinada.

A cidade inteira falava da desonestidade do cantor. Os mais entendidos aconselhavam-no a procurar um advogado. Mas ele persistia nas idas à capital, para apresentar-lhe suas composições. E o cantor continuava a gravar as músicas dele como suas.

Nas últimas visitas não mais o recebia. Estava sempre viajando. Depois, ameaçou-o – dizia ele. O moço desistiu de tentar contato. Mas continuou a tocar seu inexpressivo violão, acompanhando a voz rouquenha e desafinada, que cantava composições de sua lavra. Aquelas composições, suas, que o cantor gravara como se fossem dele. E as músicas faziam sucesso, estouravam nas paradas, recebiam elogios da crítica. Mas não eram as suas composições que faziam sucesso, estouravam nas paradas, recebiam elogios da crítica. Eram composições do cantor. A ficha técnica revelava isso.

E o cantor – seu ídolo – ganhava dinheiro às suas custas. Era voz geral.

E por que não ia conversar com o cantor? Adiantaria alguma coisa uma conversa com ele? Ele sustentaria que o outro era um doente mental, um alucinado, não sabia o que estava dizendo.

O moço resolveu, então, ganhar dinheiro com sua voz rouquenha e desafinada, acompanhada pelo inexpressivo violão.

Naquela tarde de domingo, recebia amigos e conhecidos, que convidara para ouvi-lo cantar suas últimas composições. O palco? A própria calçada.

Todos se entreolharam assustados, quando o moço anunciou o início do show. Quem estava ali não era ele, mas seu ídolo – o mesmo tipo de roupa, o mesmo corte de cabelo, o mesmo repertório. Anunciou-se a si mesmo pelo nome do outro e pegou o inexpressivo violão que acompanharia a voz rouquenha e desafinada.

Naquele momento, a encenação era a própria realidade. Sua integridade mental, ameaçada desde a infância, acabara de esfacelar-se. Ele não reconhecia a si em si mesmo. Em si mesmo, reconhecia o outro. Para todos os efeitos, ele era o outro. Sua mente não podia reconhecer a figura real, porque há muito ele era o outro.

Anunciou o repertório – todo de composições suas, disse. Os amigos, sentados na calçada, e os passantes que paravam para ver o espetáculo – o inexpressivo violão acompanhando a voz rouquenha e desafinada. E todos viram quando ele largou o violão e desnudou-se.

Naquela noite mesmo, levaram-no à capital, onde o internaram em um hospital psiquiátrico. Ao lado da cama, o inexpressivo violão, que não mais acompanharia a voz rouquenha e desafinada, ouvida, todas as tardes, no proscênio criado pela imaginação.

Fontes:
Revista de Literatura e Arte. Maringá/PR. http://www.conexaomaringa.com/

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