Resumo: Uma leitura do filme e livro "Entre os Muros da Escola". A partir desta obra localiza um processo de reflexão sobre as relações entre literatura e cinema.
Consideramos que literatura e cinema sempre estiveram muito próximos quanto à estrutura de comunicação artística ou de manifestação cultural da sociedade moderna. A literatura como estrutura de narrativa escrita, e o cinema como narrativa das imagens. Assim, os dois, em suas dadas especificidades, constroem um universo de representações simbólicas que paira entre o criador e o espectador.
Entre estes, funda-se um mundo novo, sustentado pela obra que os une. Neste espaço, a mensagem, sequência de idéias que compõe um texto escrito ou um filme em suas imagens, dois tipos de narrativas diferentes, pela ação do espectador, ganha um novo sentido. A literatura tem suas especificidades, propriedades do escritor que vive em um mundo de experiências sócio-históricas. O que cria desprende-se como resultado de interações.
E não é fácil escrever, seja o que for - ficção ou realidade. Criar um universo de personagens literários cremos que seja mais difícil ainda. Ainda assim, para que a literatura, como criação, realize seus intentos , depende do leitor. Um desdobramento para além do escritor e de seu universo criador. Recordo-me de um debate sobre literatura, de ensaístas e críticos com o escritor Mario Prata, que quando interrogado sobre o porquê escrevia simplesmente respondeu: “Escrevemos na esperança de que alguém leia. E quando leem reconstroem meu texto”. Além disso, não podemos esquecer que, teoricamente, durante longo tempo, a escrita e leitura foram confundidas como mesmo espaço de apreensão cognitiva. Hoje, sabemos que ocupam espaços diferentes, recriam-se. Ações diferenciadas, integradas, definem novos espaços como universos iniciais que, assim distintos, conformam outros. Este diferencial de criar e recriar em espaços de sensações tão distintos é um dos fundamentos que leva a literatura a interagir com o cinema.
Em relação ao filme, podemos afirmar que, desde seu princípio, tem ponto de partida muito diferente da literatura. O filme já em seu inicio é resultado coletivo. O cinema como arte, mesmo quando definido como de autor, só pode acontecer pelo trabalho de um conjunto de pessoas. Nos dias atuais, realizar um filme demanda um enorme grupo de profissionais que disponibilizam suas especialidades, sistematizadas no interior da obra. O diretor é a peça chave, mas há as marcas de cada indivíduo no transcorrer da realização e que se pode perceber no resultado final. E mais ainda, o cinema é sempre apresentado para grupos de pessoas. Normalmente, afirma-se que uma dada produção cinematográfica não tem sentido sem o “espaço cinema” de projeção, ali onde está o público. Podemos afirmar efetivamente que o cinema é a arte criada de maneira coletiva e só é plenamente realizada com o reconhecimento do público.
Se bem que na verdade, para todas as formas artísticas, o tornar público, a publicação e sua apreciação, aceitação e intervenção exercida pelo espectador é que dará sentido a sua existência como produção cultural de uma época. É com o público que se funda uma obra de arte. É com o público que uma produção cultural ganha o status de obra. Assim, ocorre a necessária passagem ou trajetória que conduz do particular para o universal.
Seu sentido de totalidade deve tender às expectativas dos interlocutores, principalmente em suas projeções, sonhos, e nesta nova dimensão ou mistura, é que pode tomar outro sentido que aquele premeditado pelo seu autor. A obra depois da interação, criador /espectador, ganha novo sentido ou a sua própria condição de bem cultural. A leitura muda, transforma, o escrito ou o sentido pensado pelo autor da mesma forma que no cinema, diante do público é que o filme ganha dimensão e sentido diferente do que o inicialmente proposto pelos realizadores.
Ganhar sentido é ter a apreciação do público. Com certeza, esta ocorrência deve ser, necessariamente, fato em qualquer tipo de produção cultural. O destaque que fazemos em relação à literatura e ao cinema é pela condição de que os dois apresentam dependência do entrelaçamento entre auto r e espectador, as duas pontas da realização, para que possam ser reconhecidos como tal. Obra cultural de uma época refletida no artista e observador, produtor e consumidor, ai está a propriedade da obra.
Entrelaçamento fundamental para definir a perenidade ou não de sua existência. Tratando-se de literatura e cinema, queremos destacar a possibilidade especial de esta relação manter espaços especiais de uma influenciar a outra em seu princípio criador. Claro que sabemos de várias obras artísticas ou culturais que influenciaram ou foram o princípio inspirador para a existência de outra. E elas não necessariamente estavam no universo da literatura e do cinema. Sabemos ainda que a inspiração artística ou a capacidade de tradução do mundo real e concreto pelo artista misturam-se nas várias linguagens antes de definir sua forma final. Em grande parte, existem obras que guardam semelhanças em suas performances ou mensagem, daí então movimentos ou escolas que expressam determinado conjunto de leitura, significação e interpretação do mundo.
Neste aspecto é que queremos destacar a interação entre literatura e cinema como uma constante parceria entre dois tipos de narrativa e que na maioria das vezes a literatura serve de inspiração ou base de construção da obra cinematográfica. Dizemos maioria porque o roteiro de “2001 uma odisséia no espaço”, escrito a quatro mãos por Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke, é que serviu de base para o livro do mesmo título, de Arthur C. Clarke, lançado posteriormente ao filme.
Vários filmes foram produzidos a partir de obras literárias. Alguns serviram como base inspiradora do roteiro, outros foram diretamente adaptados. Seria difícil citar todos desde o princípio do cinema. No entanto, para não passar em branco vamos lembrar alguns que já são referências neste tipo de discussão.
O filme sobre a guerra do Vietnam , Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, é um deles. O roteiro do filme foi escrito por Coppola com John Milius inspirado no romance “O Coração das Trevas (Heart of Darkness 1902 )”, do escritor polonês Joseph Conrad. A idéia central do livro é que conduz ao tema d o filme. Uma profunda reflexão sobre as trevas interiores dos homens e suas ações exteriores, no caso do filme, no conflito gerado pela guerra. Abril Despedaçado, livro do albanês Ismail Kadaré que aborda o tema “vendetas entre as famílias das montanhas albanesas” também serviu de fonte inspiradora para o filme homônimo dirigido por Walter Salles, com roteiro escrito junto com Sérgio Machado e Karim Aïnouz. O filme de Salles destaca o tema “vendetas de famílias” a partir das disputas de terras e rixas de famílias no sertão do nordeste brasileiro na década de 1920.
Uma das mais famosas parcerias entre literatura e cinema foi E o Vento Levou (Gone With The Wind ), com direção de Victor Fleming e roteiro Sidney Howard, baseado em livro de Margaret Mitchell sobre a guerra civil americana. Antes de virar filme, o livro havia sido grande sucesso de público em todo EUA, o que se repetiu com o filme. Ao ser praticamente vertido para o cinema, com toda a grande pompa do romance, a história e os personagens só tiveram sua popularidade ampliada. Mais recentemente, tivemos a produção “Balzac e a costureirinha chinesa”, que foi dirigido por Dai Sijie com roteiro dele e Nadine Perront, baseado em livro homônimo escrito pelo próprio Dai Sijie. Um belo filme que aborda o período da “Revolução Cultural Chinesa”, o que foi a reeducação dos intelectuais urbanos p elos valores camponeses no processo da pós– revolução maoísta. E, a partir de Balzac, destaca a importância da literatura na formação da consciência individual.
Atualmente, temos um filme francês em destaque, resultado desta interação entre literatura e cinema, que vem causando certo movimento entre os apreciadores destas duas formas de produção cultural. Na verdade, filme e romance, pois o livro com o mesmo título foi lançado recentemente no Brasil pela livraria e editora Martins Fontes. O texto tem estrutura muito interessante para quem gosta d e literatura. O livro pode ser destacado como literatura sem igual, tem um texto ágil e instigante que faz sua leitura muito interessante. Podemos dizer que parece muito uma crônica escolar. O cotidiano transborda e quase suprime o tema. Assistir ao filme antes da leitura não significa leitura monótona. Os dois têm solidez no andamento das narrativas e guardam as diferenças de suas dimensões e especificidades, o que faz a leitura fluir bem, mesmo que se tenha o domínio da história a partir do filme.
O filme é “Entre os Muros da Escola”, dirigido por Laurent Cantet, roteiro de Laurent Cantet, François Bégaudeau e Robin Campillo, baseado em livro homônimo de François Bégaudeau. A sua condição de interação entre literatura e cinema nos traz boas novidades. Em certa medida, coloca-o muito próximo da produção francesa “Balzac e a costureirinha chinesa”. O diferencial é que “Entre os Muros da Escola” vai mais além, pois as peculiaridades desta integração são maiores e expandem um pouco mais o relacionamento entre as duas artes. François Bégaudeau escreveu o romance a partir de sua experiência profissional como professor do ensino fundamental nas escolas públicas francesas. Trabalhou na adaptação do roteiro e interpreta o personagem principal. Realmente uma situação inusitada.
“Entre os Muros da Escola” foi premiado como melhor filme no festival de Cannes 2009. Observando seu conteúdo, inicialmente podemos verificar algumas questões que nos chamam a atenção. Num primeiro momento, quando paramos no título, pode parecer ser mais um dos filmes de escola em que o professor, instituição e alunos se digladiam por interesses divergentes. Não que não seja isto. A situação de conflito está em praticamente todas as cenas. Podemos até afirmar que os conflitos gerais viram subtema. Isto porque seu tema vai muito mais além que estes conflitos intraescolares. O tema gira em torno da redefinição da ação escolar ou do sentido da instituição escolar no universo cultural que sustenta as relações entre as diferentes gerações na sociedade globalizada. Difícil dizer que são simplesmente diferenças culturais. Ao mesmo tempo que observamos interesses que convergem, expectativas que aproximam, lazer comum, parece que os mundos estão distantes. A dificuldade de apropriação cultural entre os membros de uma mesma comunidade escolar que têm dificuldade com a compreensão cultural da língua e vivem no mesmo espaço geográfico. A complexidade de comunicação entre diferentes culturas e gerações dentro de um mesmo universo linguístico que intermitentemente se aproximam e se afastam no interior da instituição escolar. Ali deparamos com as questões culturais que assolam as relações de migrações na Europa atual. E isto num momento em que a mídia burguesa divulga o processo de globalização com a integração entre todas as partes do mundo. Oriundos de regiões colonizadas pelos franceses, os alunos falam a língua francesa, mas sem entender a profundidade da cultura francesa, ou mais propriamente o que seria esta “França Civilizada”. No final, vemos dois mundos hostis num mesmo universo. O conflito professor-aluno-instituição ganha dimensão diferenciada. Diversa da até então provada em nossas escolas.
A escola, os professores e todo o sistema é muito parecido com o que temos aqui no Brasil. A forma de tratamento até que transparece uma certa condição de respeitabilidade dos alunos para com a escola e os professores. A dinâmica das aulas desenrola-se com as tensões com que estamos acostumados a conviver. Somente aos poucos vamos percebendo que o conflito não está nas relações que estamos acostumados a vivenciar. A questão é mais complexa, pois a apropriação d a língua não se revela como a própria apropriação cultural. Percebe-se um distanciamento entre o universo cultural linguístico do professor diante do aluno. O domínio da língua deve ir além, passa pela participação no conjunto da produção cultural. E isto está distante dos alunos oriundos da região das ex-colônias ou dos países que atualmente migram para a Europa em busca de trabalho e melhores condições de vida.
Momentos do filme em que transborda a tensão acontecem quando a direção ou o professor tem que falar com os pais que nada entendem do francês. Dependem da tradução dos alunos para serem entendidos. As questões institucionais disciplinares ficam no ar, sem chão. Um vácuo cultural de valores que suplantam conceitos científicos que ordenam as instituições escolares modernas. E isto acontecendo na França que foi o berço da declaração dos direitos humanos, que norteou toda uma suposta sociedade humanística pautada na igualdade, liberdade e fraternidade. E a escola que deveria ser resultado deste momento da nova sociedade humanista acaba como expressão da exclusão econômica e cultural da maior parte dos jovens ou das futuras gerações.
A partir desta leitura é que podemos apontar o filme como um manifesto antropológico do século XXI. Referencia-se um dos problemas culturais mais complexos do processo de globalização do neoliberalismo desta sociedade apontada como a mais avançada. A reordenação econômica é o novo tipo de desenvolvimento social em um mundo cada vez mais distante de atender as necessidades humanas. Esta realidade diariamente produz milhões de desvalidos. A escola como espaço de percepção e convivências e aprofundamento destas distorções. Os jovens de diversos lugares do mundo que no espaço escolar vão resignificar o espaço da comunicação oral e escrita da sociedade global no século XXI. Negros, árabes, judeus e asiáticos, que se veem franceses que aportam da colônia e não dominam a comunicação ou a língua no sentido mais básico para garantir sua participação cultural. Neste processo, a exclusão toma uma nova dimensão e redimensiona os conflitos entre centro e periferia econômica e conflitos diferenciados ente gerações. O conflito como retorno da cultura da periferia ao centro dentro de nova dinâmica. A cultura européia em sua mais elevada realização é solapada pela sua própria estrutura que a conduziu a um espaço de relações ainda não experimentado. Não é somente a visão do jovem que deve ser orientada pela instituição escola e sim a escola que rodopia na borda de um vulcão alimentado pelo processo de globalização econômica de exclusão e expropriação dos bens naturais.
Enfim, o livro merece ser lido e o filme projetado e discutido pelas pessoas que se interessam pelos rumos do mundo atual. Os profissionais da educação, com certeza, perceberão um fértil espaço de debate e reflexão, que é pertinente às obras de arte e às produções culturais significativas para uma época.
Referências
BÉGAUDEAU, François. Entre os Muros da Escola. Tradução Marina Ribeiro Leite. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
Fonte:
Revista Espaço Acadêmico. n. 100. Maringá: UEM. Setembro de 2009.
Consideramos que literatura e cinema sempre estiveram muito próximos quanto à estrutura de comunicação artística ou de manifestação cultural da sociedade moderna. A literatura como estrutura de narrativa escrita, e o cinema como narrativa das imagens. Assim, os dois, em suas dadas especificidades, constroem um universo de representações simbólicas que paira entre o criador e o espectador.
Entre estes, funda-se um mundo novo, sustentado pela obra que os une. Neste espaço, a mensagem, sequência de idéias que compõe um texto escrito ou um filme em suas imagens, dois tipos de narrativas diferentes, pela ação do espectador, ganha um novo sentido. A literatura tem suas especificidades, propriedades do escritor que vive em um mundo de experiências sócio-históricas. O que cria desprende-se como resultado de interações.
E não é fácil escrever, seja o que for - ficção ou realidade. Criar um universo de personagens literários cremos que seja mais difícil ainda. Ainda assim, para que a literatura, como criação, realize seus intentos , depende do leitor. Um desdobramento para além do escritor e de seu universo criador. Recordo-me de um debate sobre literatura, de ensaístas e críticos com o escritor Mario Prata, que quando interrogado sobre o porquê escrevia simplesmente respondeu: “Escrevemos na esperança de que alguém leia. E quando leem reconstroem meu texto”. Além disso, não podemos esquecer que, teoricamente, durante longo tempo, a escrita e leitura foram confundidas como mesmo espaço de apreensão cognitiva. Hoje, sabemos que ocupam espaços diferentes, recriam-se. Ações diferenciadas, integradas, definem novos espaços como universos iniciais que, assim distintos, conformam outros. Este diferencial de criar e recriar em espaços de sensações tão distintos é um dos fundamentos que leva a literatura a interagir com o cinema.
Em relação ao filme, podemos afirmar que, desde seu princípio, tem ponto de partida muito diferente da literatura. O filme já em seu inicio é resultado coletivo. O cinema como arte, mesmo quando definido como de autor, só pode acontecer pelo trabalho de um conjunto de pessoas. Nos dias atuais, realizar um filme demanda um enorme grupo de profissionais que disponibilizam suas especialidades, sistematizadas no interior da obra. O diretor é a peça chave, mas há as marcas de cada indivíduo no transcorrer da realização e que se pode perceber no resultado final. E mais ainda, o cinema é sempre apresentado para grupos de pessoas. Normalmente, afirma-se que uma dada produção cinematográfica não tem sentido sem o “espaço cinema” de projeção, ali onde está o público. Podemos afirmar efetivamente que o cinema é a arte criada de maneira coletiva e só é plenamente realizada com o reconhecimento do público.
Se bem que na verdade, para todas as formas artísticas, o tornar público, a publicação e sua apreciação, aceitação e intervenção exercida pelo espectador é que dará sentido a sua existência como produção cultural de uma época. É com o público que se funda uma obra de arte. É com o público que uma produção cultural ganha o status de obra. Assim, ocorre a necessária passagem ou trajetória que conduz do particular para o universal.
Seu sentido de totalidade deve tender às expectativas dos interlocutores, principalmente em suas projeções, sonhos, e nesta nova dimensão ou mistura, é que pode tomar outro sentido que aquele premeditado pelo seu autor. A obra depois da interação, criador /espectador, ganha novo sentido ou a sua própria condição de bem cultural. A leitura muda, transforma, o escrito ou o sentido pensado pelo autor da mesma forma que no cinema, diante do público é que o filme ganha dimensão e sentido diferente do que o inicialmente proposto pelos realizadores.
Ganhar sentido é ter a apreciação do público. Com certeza, esta ocorrência deve ser, necessariamente, fato em qualquer tipo de produção cultural. O destaque que fazemos em relação à literatura e ao cinema é pela condição de que os dois apresentam dependência do entrelaçamento entre auto r e espectador, as duas pontas da realização, para que possam ser reconhecidos como tal. Obra cultural de uma época refletida no artista e observador, produtor e consumidor, ai está a propriedade da obra.
Entrelaçamento fundamental para definir a perenidade ou não de sua existência. Tratando-se de literatura e cinema, queremos destacar a possibilidade especial de esta relação manter espaços especiais de uma influenciar a outra em seu princípio criador. Claro que sabemos de várias obras artísticas ou culturais que influenciaram ou foram o princípio inspirador para a existência de outra. E elas não necessariamente estavam no universo da literatura e do cinema. Sabemos ainda que a inspiração artística ou a capacidade de tradução do mundo real e concreto pelo artista misturam-se nas várias linguagens antes de definir sua forma final. Em grande parte, existem obras que guardam semelhanças em suas performances ou mensagem, daí então movimentos ou escolas que expressam determinado conjunto de leitura, significação e interpretação do mundo.
Neste aspecto é que queremos destacar a interação entre literatura e cinema como uma constante parceria entre dois tipos de narrativa e que na maioria das vezes a literatura serve de inspiração ou base de construção da obra cinematográfica. Dizemos maioria porque o roteiro de “2001 uma odisséia no espaço”, escrito a quatro mãos por Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke, é que serviu de base para o livro do mesmo título, de Arthur C. Clarke, lançado posteriormente ao filme.
Vários filmes foram produzidos a partir de obras literárias. Alguns serviram como base inspiradora do roteiro, outros foram diretamente adaptados. Seria difícil citar todos desde o princípio do cinema. No entanto, para não passar em branco vamos lembrar alguns que já são referências neste tipo de discussão.
O filme sobre a guerra do Vietnam , Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, é um deles. O roteiro do filme foi escrito por Coppola com John Milius inspirado no romance “O Coração das Trevas (Heart of Darkness 1902 )”, do escritor polonês Joseph Conrad. A idéia central do livro é que conduz ao tema d o filme. Uma profunda reflexão sobre as trevas interiores dos homens e suas ações exteriores, no caso do filme, no conflito gerado pela guerra. Abril Despedaçado, livro do albanês Ismail Kadaré que aborda o tema “vendetas entre as famílias das montanhas albanesas” também serviu de fonte inspiradora para o filme homônimo dirigido por Walter Salles, com roteiro escrito junto com Sérgio Machado e Karim Aïnouz. O filme de Salles destaca o tema “vendetas de famílias” a partir das disputas de terras e rixas de famílias no sertão do nordeste brasileiro na década de 1920.
Uma das mais famosas parcerias entre literatura e cinema foi E o Vento Levou (Gone With The Wind ), com direção de Victor Fleming e roteiro Sidney Howard, baseado em livro de Margaret Mitchell sobre a guerra civil americana. Antes de virar filme, o livro havia sido grande sucesso de público em todo EUA, o que se repetiu com o filme. Ao ser praticamente vertido para o cinema, com toda a grande pompa do romance, a história e os personagens só tiveram sua popularidade ampliada. Mais recentemente, tivemos a produção “Balzac e a costureirinha chinesa”, que foi dirigido por Dai Sijie com roteiro dele e Nadine Perront, baseado em livro homônimo escrito pelo próprio Dai Sijie. Um belo filme que aborda o período da “Revolução Cultural Chinesa”, o que foi a reeducação dos intelectuais urbanos p elos valores camponeses no processo da pós– revolução maoísta. E, a partir de Balzac, destaca a importância da literatura na formação da consciência individual.
Atualmente, temos um filme francês em destaque, resultado desta interação entre literatura e cinema, que vem causando certo movimento entre os apreciadores destas duas formas de produção cultural. Na verdade, filme e romance, pois o livro com o mesmo título foi lançado recentemente no Brasil pela livraria e editora Martins Fontes. O texto tem estrutura muito interessante para quem gosta d e literatura. O livro pode ser destacado como literatura sem igual, tem um texto ágil e instigante que faz sua leitura muito interessante. Podemos dizer que parece muito uma crônica escolar. O cotidiano transborda e quase suprime o tema. Assistir ao filme antes da leitura não significa leitura monótona. Os dois têm solidez no andamento das narrativas e guardam as diferenças de suas dimensões e especificidades, o que faz a leitura fluir bem, mesmo que se tenha o domínio da história a partir do filme.
O filme é “Entre os Muros da Escola”, dirigido por Laurent Cantet, roteiro de Laurent Cantet, François Bégaudeau e Robin Campillo, baseado em livro homônimo de François Bégaudeau. A sua condição de interação entre literatura e cinema nos traz boas novidades. Em certa medida, coloca-o muito próximo da produção francesa “Balzac e a costureirinha chinesa”. O diferencial é que “Entre os Muros da Escola” vai mais além, pois as peculiaridades desta integração são maiores e expandem um pouco mais o relacionamento entre as duas artes. François Bégaudeau escreveu o romance a partir de sua experiência profissional como professor do ensino fundamental nas escolas públicas francesas. Trabalhou na adaptação do roteiro e interpreta o personagem principal. Realmente uma situação inusitada.
“Entre os Muros da Escola” foi premiado como melhor filme no festival de Cannes 2009. Observando seu conteúdo, inicialmente podemos verificar algumas questões que nos chamam a atenção. Num primeiro momento, quando paramos no título, pode parecer ser mais um dos filmes de escola em que o professor, instituição e alunos se digladiam por interesses divergentes. Não que não seja isto. A situação de conflito está em praticamente todas as cenas. Podemos até afirmar que os conflitos gerais viram subtema. Isto porque seu tema vai muito mais além que estes conflitos intraescolares. O tema gira em torno da redefinição da ação escolar ou do sentido da instituição escolar no universo cultural que sustenta as relações entre as diferentes gerações na sociedade globalizada. Difícil dizer que são simplesmente diferenças culturais. Ao mesmo tempo que observamos interesses que convergem, expectativas que aproximam, lazer comum, parece que os mundos estão distantes. A dificuldade de apropriação cultural entre os membros de uma mesma comunidade escolar que têm dificuldade com a compreensão cultural da língua e vivem no mesmo espaço geográfico. A complexidade de comunicação entre diferentes culturas e gerações dentro de um mesmo universo linguístico que intermitentemente se aproximam e se afastam no interior da instituição escolar. Ali deparamos com as questões culturais que assolam as relações de migrações na Europa atual. E isto num momento em que a mídia burguesa divulga o processo de globalização com a integração entre todas as partes do mundo. Oriundos de regiões colonizadas pelos franceses, os alunos falam a língua francesa, mas sem entender a profundidade da cultura francesa, ou mais propriamente o que seria esta “França Civilizada”. No final, vemos dois mundos hostis num mesmo universo. O conflito professor-aluno-instituição ganha dimensão diferenciada. Diversa da até então provada em nossas escolas.
A escola, os professores e todo o sistema é muito parecido com o que temos aqui no Brasil. A forma de tratamento até que transparece uma certa condição de respeitabilidade dos alunos para com a escola e os professores. A dinâmica das aulas desenrola-se com as tensões com que estamos acostumados a conviver. Somente aos poucos vamos percebendo que o conflito não está nas relações que estamos acostumados a vivenciar. A questão é mais complexa, pois a apropriação d a língua não se revela como a própria apropriação cultural. Percebe-se um distanciamento entre o universo cultural linguístico do professor diante do aluno. O domínio da língua deve ir além, passa pela participação no conjunto da produção cultural. E isto está distante dos alunos oriundos da região das ex-colônias ou dos países que atualmente migram para a Europa em busca de trabalho e melhores condições de vida.
Momentos do filme em que transborda a tensão acontecem quando a direção ou o professor tem que falar com os pais que nada entendem do francês. Dependem da tradução dos alunos para serem entendidos. As questões institucionais disciplinares ficam no ar, sem chão. Um vácuo cultural de valores que suplantam conceitos científicos que ordenam as instituições escolares modernas. E isto acontecendo na França que foi o berço da declaração dos direitos humanos, que norteou toda uma suposta sociedade humanística pautada na igualdade, liberdade e fraternidade. E a escola que deveria ser resultado deste momento da nova sociedade humanista acaba como expressão da exclusão econômica e cultural da maior parte dos jovens ou das futuras gerações.
A partir desta leitura é que podemos apontar o filme como um manifesto antropológico do século XXI. Referencia-se um dos problemas culturais mais complexos do processo de globalização do neoliberalismo desta sociedade apontada como a mais avançada. A reordenação econômica é o novo tipo de desenvolvimento social em um mundo cada vez mais distante de atender as necessidades humanas. Esta realidade diariamente produz milhões de desvalidos. A escola como espaço de percepção e convivências e aprofundamento destas distorções. Os jovens de diversos lugares do mundo que no espaço escolar vão resignificar o espaço da comunicação oral e escrita da sociedade global no século XXI. Negros, árabes, judeus e asiáticos, que se veem franceses que aportam da colônia e não dominam a comunicação ou a língua no sentido mais básico para garantir sua participação cultural. Neste processo, a exclusão toma uma nova dimensão e redimensiona os conflitos entre centro e periferia econômica e conflitos diferenciados ente gerações. O conflito como retorno da cultura da periferia ao centro dentro de nova dinâmica. A cultura européia em sua mais elevada realização é solapada pela sua própria estrutura que a conduziu a um espaço de relações ainda não experimentado. Não é somente a visão do jovem que deve ser orientada pela instituição escola e sim a escola que rodopia na borda de um vulcão alimentado pelo processo de globalização econômica de exclusão e expropriação dos bens naturais.
Enfim, o livro merece ser lido e o filme projetado e discutido pelas pessoas que se interessam pelos rumos do mundo atual. Os profissionais da educação, com certeza, perceberão um fértil espaço de debate e reflexão, que é pertinente às obras de arte e às produções culturais significativas para uma época.
Referências
BÉGAUDEAU, François. Entre os Muros da Escola. Tradução Marina Ribeiro Leite. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
Fonte:
Revista Espaço Acadêmico. n. 100. Maringá: UEM. Setembro de 2009.
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