domingo, 17 de janeiro de 2010

Camilo Leal (Gananzama Chuá)



Na cozinha da Fazenda Troncão a escrava Mãe Bárbara conversa com sua sobrinha, a escrava mucama Lane Congo:

- Escute o que eu to dizeno pra ocê. O Leopoldo, meu marido, morreu acidentado na Fazenda do Vale. Foi um grande choque. Ele era tão bão pra mim. Agora nóis aqui longe, aprisionada, sem liberdade... Quando ele tava do nosso lado era tão bão. E agora morreu meu fio com um meis de idade. Tenho bastante leite que inté ta doloreno meus peito. Inda mais agora. O Sinhô me alugo pra sua cunhada que tem um fio e ela não tem leite pra amamenta. É! Eu vô tê qui fica quagi dois anos dano mamá pr’ele. Peço pr’ocê, mucana Lane, pra Elpídia e pr’ocê Maud Lumba, minhas treis subrinha que estimo iguá a minima dos meus óio, tenha juízo, molecas. Faça tudo o que fô mandado, pra não sê castigada na minha ausência.

- Tenha cuidado, minha tia! Vá e não se preocupe. Vamos faze o possive pra não sê castigada.

- Então, eu vô. Cuide dos moleques. Inté lá. E nada de choro, minhas moleca.

O feitor Raimundo Caiolá dá ordens aos escravos.

- O tempo ta carrancudo; pelo jeito vai caí chuva e temo muito fejão no carriadô. Não importa si bamo coiê quagi dois mir saco. O que importa é que bamo coiê tudo e que não bamo perde nada. Todo escravo passe logo na pia de saco, sem recramá, ponha na cabeça um ou dois saco e leve inté a tuia. Precisamo guarda tudo e os carro num vai dá cont. Bamo ajuda os carro, por mode que os boi tão cansado. Depois que entrega o saco de feijão pro feitô, na tuia daí pode í pra senzala. Quem não quisé leva, fica essa noite sem comida. Bamo, negada, se encarreia que nem furmiga. E vancê, Magoado, por que não qué carrega seu saco de feijão?

- Meu Sinhô, me perdoe. Não güento com um saco de feijão dois arquere e meio. Carreguei muito tempo que era moço. Hoje não dá mais. Já tenho guagi cem amo; to cansado.

- Você é vagabundo! Como é que o Boieiro bate no cocho e vancê não pode...? É o primeiro que aparece. Se não leva o saco de fejão, vancê vai fica sem comê essa noite.

- Meu Sinhô, não levo; meu corpo não güenta…

- Logo com isso, negada! E vancê ta me respondendo, negro safado! Sabe o que vô fazê, negro... ah? Vô lhe amarra nesse laço e vô leva cincha do meu cavalo e entrega pro feito do viramundo. E se não corre, meu cavalo arrasta.

- Pelo amo de São Jorge que ta dentro da luma, lá inriba da nossa cabeça no céu, veno o que ta aconteceno aqui na terra, me sorte desse laço.

- Não sorto, não negro! Ah-rã! Vancê vai pro viramundo pra aprende, negro…

O escravo Magoado, lançado, é entregue ao feitor do viramundo nestes termos:

- Castigue o Magoado, Feitor. Não tenha presa pra pará, não. Quero que ele aprenda a não desobedecê a disciplina da Fazenda.

- Deixe por minha conta, feitor Raimundo Caiolá. Ele bem sabe que nosso viramundo tem mó. E ele vai te que moê um saco de mio inté amanhã cedo e faze fubá... deixe comigo.

O feitor Raimundo Caiolá voltou para cuidar dos escravos que carregavam feijão, enquanto o velho negro Magoado gritava à sorte:

- Gente, me sorte desse viramundo. Oh! Meu São Jorge! Tiraram minha tanga e o tango, ataram-me as mãos como um ladrão, crueldade sem amor. Eu sô véio cativo que muito trabaiei pro coroné. Por que tanto me judia? Sinhá Moça na janela, venha e mande pará de me judiá.

- Negro, seu nome é Magoado e muito mais magoado você vai ficá se não moê esse saco de mio inté amanhã cedo e fazê fubá. Não pare de girá o viramundo pra não sê mais castigado.

E o velho mal conseguia fazer mover o viramundo.

A escrava Mãe Maria, que ia buscar fubá, ao ver tal acontecimento, corre escondida e chama Sinhazinha Marlene, a quem os escravos colocaram o nome de Gananzama Chuá, como agradecimento à proteção que ela dá a eles. A Sinhazinha, perplexa com tal barbaridade, vai até o viramundo e repreende com veemência o feitor.

- Liberdade imediatamente ao Véio Magoado. Ele não merece esse castigo. De hoje em diante o Véio Magoado não vai ter mais que trabalhar no pesado. Eu quero que ele apenas fique para contar estórias para os moleques. Acho que o Véio tem muito o que contar. Sirva farofa pra ele, Mãe Maria. Ele deve de estar com fome.

Ela saiu rumo a casa carregando Gustavo, que apareceu ali correndo, o seu gato de estimação.

A escrava Mãe Maria ao cuidar do velho escravo lembra a ele os ensinamentos de Mãe Bárbara e comenta saudosa da escrava amiga, alugada há poucos dias:

- Enquanto existi descendente de escravo da Fazenda Troncão nessa terra, vai te roda pra louva Gananzama Chuá, fia do Coroné Bento de Prado, por sê bondosa, faze caridade, livrá os escravo quando são castigados injustamente. É! Mãe Bárbara tem razão... Nóis tudo daqui da Fazenda Troncão do Itu Rio Paranapanema sempre bamo cantá Gananzama Chuá.
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Camilo Francisco Leal (1922- 2004) artista plástico, escultor, compositor, contista e poeta, nasceu em Bica da Pedra, SP. Foi um dos pioneiros do Norte do Paraná, que em 1952 trabalhou na fundação e administração da Fazenda Rio da Prata em São João do Caiuá. Em 1963 mudou-se para Maringá, onde viveu até seu falecimento.

Camilo deixou uma obra vasta - 04 livros de contos e poesia, 137 músicas, 10 esculturas em papel e centenas de pinturas, entre óleo, acrílico e desenhos a lápis e esferográfica. A obra completa de Camilo, tematizada em torno da história da vida do negro liberto, mas sem perspectivas, e da vida rural, está sendo catalogada e organizada para publicação.

Patrono da Cadeira n.2 da Academia de Letras do Brasil/ Mariana/MG.

Fontes:
Jornal Aldrava
Pintura

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