terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Moacyr Scliar (O Escritor em Xeque)



Entrevista dada ao Jornal Estado de Minas

1) Então você leu muitos livros sobre a história de Minas para escrever na noite do ventre, o diamante? Como se deu este processo?

Li, sim, muitos livros. Mas é importante notar que a pesquisa para fins de um trabalho científico (coisa que, como médico, também escrevo) é diferente da pesquisa para um trabalho ficcional. No primeiro caso trata-se de transmitir informações, com referência bibliográfica inclusive; mas, se o escritor de ficção fizer isso, será uma chateação. Portanto, na hora de escrever, trato de "esquecer" tudo o que li. A informação histórica deve estar diluída no romance, como um pano de fundo. A prioridade cabe à ficção.

2) Quando você recebeu o convite para participar da Coleção Cinco Dedos de Prosa, a história do diamante, que o "perseguia", já estava mais ou menos delineada na sua cabeça?

Já estava bem delineada. Eu havia partido de um episódio histórico; quando os hebreus estavam cercados pelos romanos muitas vezes engoliam moedas para evitar que o dinheiro caísse nas mãos do inimigo. Daí veio a idéia de um diamante que é engolido por um menino, membro de uma família judia que está fugindo da Rússia para o Brasil. Àquela altura veio o convite da Editora Objetiva. Meu primeiro impulso foi de recusá-lo, mas, antes de desligar, resolvi perguntar qual era o dedo que faltava. Era o anular. Instantaneamente o diamante "instalou-se" num anel e ali estava a história, praticamente pronta.

3) Você tem participado de várias iniciativas que mostram a profissionalização do mercado para a literatura no Brasil (coletâneas, coleções, contos para livros teóricos como A história da cidadania). Existe um mercado sustentável para a literatura no País?

Existe um mercado em expansão que cresce sobretudo graças ao público juvenil. As escolas hoje estão trabalhando, e com muita criatividade, autores contemporâneos e isto aumentou substancialmente o número de leitores. Mas ainda é difícil viver exclusivamente só de literatura no país. É mais fácil viver de escrever - livros, e também artigos, crônicas, roteiros... Porém não creio que seja decisivo para um escritor viver só de literatura. Kafka, por exemplo, tinha um emprego de tempo integral, mas isso não impedia que à noite e nos horários de folga produzisse grande literatura.

4) É possível perceber, de uns anos para cá, o fortalecimento dos mercados regionais, sobretudo do Sul do País. Pode-se falar em "literatura gaúcha" como um capítulo específico da moderna literatura brasileira?

Certamente, mas dentro de literatura gaúcha temos de diferenciar a literatura regionalista (aquela de um Simões Lopes Neto, por exemplo) que utiliza sobretudo o linguajar da fronteira e a literatura histórica, como a feita por Érico Veríssimo em "O Tempo e o vento". É uma literatura de grande vitalidade, porque a história do Rio Grande não raro passa por momentos dramáticos e também porque o gaúcho é um personagem muito característico. Por último, mas não menos importante, é um Estado de gente culta, que lê bastante, o que ajuda a formar um público leitor.

5) Em alguns dos seus romances há a mescla de personagens históricos como fictícios (Oswaldo Cruz, Noel Nutels, Espinosa).A História ainda reserva boas histórias?

E como! É um filão inesgotável. Agora: é importante visitar a História com o olhar ficcional de hoje. Não se trata de "recuperar" o passado - isto é coisa para historiadores; trata-se de recria-lo ficcionalmente. Não é a História que foi, é a História que poderia ter sido. São as emoções do passado transpostas para o presente.

6) A tradição da literatura judaica está presente em muitos países, em alguns, como os EUA, de forma significativa. Como vê a situação no Brasil, que outros autores podem ser alinhados no que se convencionou chamar de literatura judaica (Samuel Rawet, Clarice Lispector?)

No Brasil, a literatura inspirada na tradição judaica é menos presente nos Estados Unidos, pela simples razão de que naquele país o número de judeus é várias vezes maior. Mas nós também tivemos a experiência da emigração. E esta experiência, nos dois países, é muito parecida. A propósito, lembro um encontro que tive com o Saul Bellow, recentemente falecido, na Universidade de Chicago, onde ele lecionava. A conversa, que começou difícil, por causa do meu embaraço, acabou tomando um rumo inesperado. Bellow, um homem elegante, amável, quis saber de onde eu era, de onde vinham meus pais. Ficou encantado ao saber que eu era filho de imigrantes judeus vindos da Rússia; era essa também sua origem. Só que os pais dele tinham se dirigido para o Canadá, onde nascera, na cidade de Lachine, em 1915, radicando-se depois nos Estados Unidos.

Claramente era um escritor que, sendo profundamente americano (um escritor de Chicago, para ser mais preciso), valia-se de sua herança cultural para entender melhor a realidade do país. Não era um caso isolado; o mesmo acontecia com outros escritores, Norman Mailer, Bernard Malamud, Philip Roth, que inauguraram, nas palavras do crítico Irving Howe, um novo tipo de regionalismo, não geografico, como aquele através do qual William Faulkner retratou o sul dos Estados Unidos, mas sim étnico. A verdade é que o imigrante recebe uma espécie de compensação por sua condição de marginal da cultura; ele é dono de um olhar privilegiado, um olhar que lhe permite enxergar a realidade do país de maneira diferente. Muitos descobrem assim novas oportunidades de ascensão econômica e social: o caso dos imigrantes que criaram a indústria cinematográfica; outros tornam-se revolucionários e outros ainda enveredam pelo caminho da literatura e da arte. De qualquer modo é uma situação original, que serve como fonte de inspiração. A isto deve-se juntar a tradicional veneração judaica pela palavra escrita e o peculiar humor - aquele humor melancólico, filosófico, que serviu, para um grupo perseguido e amaeaçado, como defesa contra o desespero.

7) Você é um dos escritores brasileiros que mais andam por aí participando de palestras, seminários, congressos, etc. Como faz para administrar tantos compromissos e ainda continuar com o mesmo ritmo de produção?

Organização é fundamental. Na ficção a imaginação pode, e deve, voar solta; mas a vida real tem calendário, tem horários. Compatibilizar essas coisas às vezes dá muito trabalho, mas eu o faço com prazer, mesmo porque escrever é um ato eminentemente solitário. O teclado do computador é diferente do teclado do piano: não dá uma resposta imediata sob a forma de música. Com os leitores um diálogo é possível. Eles tem uma curiosidade que se traduz em numerosas perguntas: de onde surgem as idéias para os textos? Como se escreve um romance, planejando a história, ou deixando que os personagens tomam as rédeas da ação? Você tem horário para escrever?

Para os escritores, por outro lado, o contato com leitores, sobretudo jovens, pode ser muito gratificante. Não é, claro, essencial para o ofício da literatura, ainda que desses encontros possam nascer idéias para textos. É outra coisa. Sobretudo em países como o nome o escritor desempenha papel importante como intelectual, como pessoa que procura entender o seu tempo e transmitir o resultado desse entendimento a seus contemporâneos. Mas o contato com o público não deve ser visto só como uma tarefa intelectual. É antes de mais nada um encontro agradável; e exatamente por ser agradável desmistifica o escritor, mostra que este é um ser humano igual a todos os outros, com as mesmas preocupações e as mesma emoções. O papo leitor-escritor é uma troca emocional. A pergunta fundamental a um jovem que leu um texto não é: "O que quis o autor dizer?", mas sim: "O que sentiste lendo esse texto?". A emoção abre caminho para o entendimento. E emoção, ao menos em minha experiência, é o que não falta nos encontros com o público.

Leia sobre Na noite do Ventre, o Diamante, em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2010/01/moacyr-scliar-na-noite-do-ventre-o.html

Fonte:
http://scliar.org/moacyr/

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