terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Genolino Amado (O Ponto Fatal)


Certa ocasião quase aderi à desavença do velho Campos. Foi naquele dia em que o maldoso Colombo me atrapalhou na Escola e até fez perigar a salvação de um inocente.

O inocente pertencia a um grupo de assustados guarda-livros sem diploma profissional. Assustados porque lei ou decreto, que finalmente se cumpria, lhes impôs a escolha cruel: ou provas de habilitação ou perder o meio de vida. Porque mantinha curso oficial de comércio, ficou a Amaro com a incumbência dos exames. E que exames! Além de escrituração mercantil e segredos contábeis, incluíam matérias ginasiais.

Assim, ao sobradinho das meninas foram comparecendo, bem nervosos, examinandos grisalhos, de pouco saber e muitas rugas. Alguns, gorduchões, se espremeriam nas carteiras das pequenas. Carteiras iguais às das suas filhas, ou talvez das netas, noutra escola qualquer.

Veio a designação dos examinadores. Dois em cada banca. Eu, com o Professor Balbino de companheiro na de História e Geografia. Afinal, uma reunião dos mestres indicados. E parecendo exprimir a idéia de todos, o bom Professor Milton:

– Precisamos facilitar de qualquer forma os coitados. Na fisionomia deles a gente vê a angústia. Tem anos e anos de serviço, com os empregadores satisfeitos. É o que atesta de sobra a sua competência e dedicação. Melhor do que um diploma de guarda-livros. Nas provas do Amaro, exigir muito, mesmo pouco, seria demais. Assim penso. E vocês, colegas?

Vozes e vozes de apoio. Só Balbino é que não piou: Mas quem cala consente concluí, confiante. E a confiança cresceu porque alguém:

– Que tal reduzirmos o número de pontos? Bastariam dez... Que acham?

– De acordo – falou Balbino, iniciando as adesões.

Ufa! Tirei um peso da consciência. Se Balbino, o rigor em pessoa, concordava, a coisa ia bem. Peguei o pião na unha:

– Perfeito, colega. Em nosso caso, cinco pontos de Geografia e cinco de História.

– Não, não! Pelo que entendi, têm de ser dez por matéria.

Milton socorreu-me.

– Entendeu mal, Balbino. Dez por banca. É uma só a de História e Geografia. Seu companheiro está certo.

Um bom sofisma... que não pegou. Argumenta daqui, argumenta dali, afinal conciliação à maneira getuliana: dez de Geografia balbínica, cinco de História genolínica. E História a começar dos tempos modernos. O homem aceitou de cara feia. Foi então que um dos facilitadores:

– Vocês discutiram à toa. Que importam dez ou cinco pontos? Ninguém será reprovado...

Isso provocou muito sim e um não. O da Geografia:

– Que exagero! Facilitar, admito. Aprovar de qualquer modo, tenham paciência. . . Não é do meu feitio.

– Mas, Balbino! ponderou Mílton. É um pessoal velho, cansado, receoso de perder o emprego. Não são meninas que decoram sem esforço, que aprendem com facilidade. Alguns já têm a cabeça branca. E têm família...

Reconheço que é duro. Sofrerei, se tiver de reprovar. Sabendo um pouquinho que seja, passa. Não sabendo coisa nenhuma, reprovo. Questão de princípio. Sou assim e não mudarei.

– Veja bem, colega, tornou Milton. Iremos examinar um velhote com dezoito anos de guarda-livros na Rua do Acre. Esse velhote me confessou que já lhe fugiu da cabeça tudo quanto aprendeu no tempo de moço. E reaprender, não consegue. Por que exigir que ele responda certinho quem proclamou. a República ou se o rio Sena é francês, não inglês? O velho faz bem a escrituração de cebola e bacalhau no empório de secos e molhados.

– Serei benevolente, mas só até certo ponto. Não prometo aprovação além do razoável.
Inseguro no andar, claudicando um pouco, Balbino era seguríssimo nas convicções. Admirável professor pelo saber e devotamento ao magistério, via mais o ensino do que a vida.

Mestre por acaso, via eu, principalmente, a sorte dos examinandos. E via com aflição aquele grupo de aflitos. O mais temeroso me pareceu o da rua do Acre. Assim, na véspera do primeiro exame, o de Geografia, fiz-lhe a pergunta:

– Então? Preparou-se?

– Acredito que passarei, Professor. É que minha paixão sempre foi viajar. Não podendo, acostumei-me a ver os mapas. Boa mania, porque espero que me ajude no exame. Na História é que estou fraquinho demais...

Realmente, os mapas o socorreram. Fez boa escrita, não foi muito ruim a oral. Na Geografia, outro é que me custou salvar. Um alagoano quarentão, de testa estreita e bigodinho espinhento, quase não escreveu. E o que escreveu, Nossa Senhora! Atribuí 7, Balbino 2. Antes da oral, chamei-o à parte e:

– Se não souber, fique em silêncio e espere minha ajuda. Não responda sem saber, que é pior. Veja lá, hein? Não se precipite. E o alagoano precipitava-se. Feita qualquer pergunta, dizia sem vacilações a tolice que lhe viesse à mente.

– A cidade principia por um B, ouviu? A capital da Suíça é...

– Bruxelas, Professor.

Ainda bem que Balbino examinava outro. Engoli, fui adiante:

– O rio São Francisco tem a sua nascente...

No Paraná veio em cima da bucha, na mais sadia e descuidosa ignorância. Meu companheiro, que acabara de argüir outro sofredor:

– Que tal este seu 7? – indagou num sussurro.

– Saiu-se bem? Dei 8. O colega quer examiná-lo ou acompanha a nota?

Balbino confiou, acompanhou. Salvou-se uma alma do purgatório naquele dia. Mas, na manhã seguinte, manhã fatal, o problema dos problemas o velho que se confessou fraquinho, fraquinho, no exame de História. Os mapas não o ajudariam. Sorteio, ponto l: Descobrimento da América. O melhor de todos, tão bom que me parecia tirado pelo deus protetor dos guarda-livros. Respirei. Vi, porém, na carteirinha de garota, o velho com os olhos no ar, a caneta inútil na mão trêmula; em branco a folha de papel. E Balbino ali, observador.

Eis que surge um mensageiro do céu, o servente Oséias:

– Professor Balbino, telefone. É o Professor Milton.

– Pode atender, colega. Fiscalizo pelos dois.

Lá se foi o companheiro. Corri ao examinando, soprei a data, o navegador, duas das naus que saíram da Espanha, suprimi a terceira para não dar na vista, uma referenciazinha veloz aos Reis Católicos. O telefonema do Milton, que nem sei se foi intencional ou coisa do destino, mas sei que foi longo, me tornou profundamente grato a Graham Bell. A prova do velho completou-se no minuto em que Balbino reapareceu, a resmungar:

– Esse Mílton é um conversador como nunca vi!

De tarde, seria a oral. Dividi com o companheiro as provas escritas, oito apenas. O resto da manhã aproveitaríamos na leitura. A do velho, passei a Balbino. E depois de apreciá-la, o bom professor:

– Boazinha. E vocês a se alarmarem com o homem! Mostrou conhecimento. Darei nove.
Não é muito? Deixe-me ver: Fingi que lia. Dou oito. Chega.

E depois o rigoroso sou eu. Qual!

Senti uma dor na consciência. Que o deus dos guarda-livros intercedesse por mim ao deus dos professores.

Hora da oral. Começou com o alagoano de bigode espinhoso. Ponto 3: Napoleão. Já experimentado, fiel ao conselho que lhe dei, foi prudente. Na pergunta de Waterloo, teve a cautela de silenciar. Vitória ou derrota napoleônica? Viu que apontei para baixo e triunfou, derrotando Napoleão.

Após três outros, que se saíram razoavelmente, sem me dar susto, o velho da Rua do Acre. Enfiou a mão na caixinha. Reapareceu o ponto 1, o mesmo da escrita. E foram dois os descobrimentos o do nauta e o do Balbina. Esse, na maior das canduras:

– Muito bem! O senhor teve sorte. Sabe a matéria. Só vou perguntar porque é de praxe.

– O nosso continente foi descoberto por quem?

O examinando mudo. E o professor:

– Por que não diz? Pois, se escreveu... Quem foi?

Nada. Silêncio, o velho nervoso. Balbino já nervosinho.

– Por que não me diz que foi Cristóvão Colombo?

– Ah, é verdade, Professor. Colombo, sim. Parece que o almoço me atrapalhou a cabeça.

– É possível. Mas... a data? Pense e responda.

Mudez ainda. O examinador:

– Ora, santo Deus! Diga ao menos a ano. Ou melhor, basta o século. Se sabia, não posso acreditar que tenha esquecido tudo em poucas horas. E então?

Velho desmemoriado! Copiou o que ditei e esqueceu-se completamente. Balbino resmungou:

– Hum! Saí da sala, fui ao telefone...

– É insinuação, colega?

– Bem, dou o dito por não dito. E o examinando pode retirar-se. Lamento, mas vai receber um zero.

– Dei l. Com o meu 8 e o 9 de Balbino na escrita, aprovação raspando com a média quatro-e-meio.

Deixei a Escola em companhia do Professor Milton, que também teve oral nessa tarde. No cafezinho da esquina, desabafei:

– Seu Milton, creio que fiz o que não devia. Um professor fornecendo cola a um examinando...

Relatei o caso todo. Mílton sorria.

– Pensa que é o primeiro a proceder assim? Pois saiba que agi como você na Escola Mauá. O aluno colando por minha determinação. Minha e do próprio diretor.

– Que me diz? Quer contar como foi?

– No momento, não, porque estou com pressa e preciso tomar aquele bonde que vem ali. Amanhã contarei a história. É a de dois andares.

Dois andares? fiquei a pensar, quando Milton se foi. Era um engenheiro de muitas construções, além de professor. Coisa estranha!

Que relação haveria entre a cola de um aluno e um edifício de altos e baixos?

(O reino perdido, 1971.)

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

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