sábado, 4 de fevereiro de 2017

Olivaldo Junior (Um Livro Aberto)

Eu, por um bom tempo, me dispus a ser um livro, um livro aberto pra ti. Deixaste marcadas minhas páginas, dobrando-as nas pontas, para ver se, mais tarde, quando quisesses um trecho de destaque bem à mão, sequer trabalho tivesses de procurar em mim o que gostaste e irias repetir. 

Repito que fui pra ti um livro aberto, sempre alerta, como se eu fosse a Bíblia, sagrada em seu sacrossanto ofício de estar lá, livro que folheavas meio a esmo, mais do mesmo, sem muita emoção. Não, sequer eras devoto dos versículos que eu te mostrava serem teus. Eu, pra ti, se fui um deus, fui um deus morto, um totem visto lá de longe, de outra praia, foragido de meu dever de clarear a tua fé. Feito ateu, me deste adeus.

Soluço feito um livro de poemas de Florbela Espanca, esnobando o didatismo dos livros técnicos, segurando em mim as sílabas que teimam em voar de minhas linhas. Minha alma, em teu colo descoberta, era um livro aberto, romance que contava as crônicas de uma prosa quase nada poética... Quase me perdia em mim, Aurélio que a edição estava antiga, sem o Acordo Ortográfico, com todos os tremas e todos os hifens que nos cabiam e nos foram tomados, tirados da língua. À míngua, minguante, fechei-me ao toque dos dedos que me feriam o papel. Para! Já tenho orelhas demais e muitas, inúmeras notas de rodapé! Peças para alguém me por em braile. Lembro-me de que tu não tens tato o bastante para me ler nas entrelinhas, tocando-me as fibras, uma a uma; ao contrário, me espancas se me torno a bela flor de teu jardim, a obra-prima de teu sebo, o selo raro em tua pasta. Basta! Aberto, fecho-me a teus olhos, roído de traças me trago e me "voo".

[...] "Fecha o meu livro, se por agora / Não tens motivo nenhum de pranto." [...]. Tô com Bandeira e não abro! Abro a cadabra de mim e me sumo na estante. Nunca me encontrarás. Sob os olhos dos clássicos, caças algo para ler, e eu, que, por um bom tempo, me dispus a ser teu livro, aberto só pra ti, tiro a poeira dos móveis e me cubro com ela. Lambes o dedo a fim de virares mais facilmente as páginas. Não mais as minhas. Bíblico, mítico, místico, transfiguro-me em jornal e tens de mim as últimas notícias da Cidade, do Brasil e do Mundo. Nunca as minhas. Soluço, sim, mas salvo a pátria de meus ais com minhas páginas unidas, seladas pelo efeito da umidade que peguei quando chorei.

Disposto, aberto, marcado, dobrado, visto, revisto e ampliado, fui, assim, um livro que se abria pra a consulta, a qualquer hora. Feito lista, feito alguém que é descoberto especial quando é preciso. Viso outra forma de ser. Rezo para alguém me "conseguir". Velho, a esmo, o mesmo, quase pó.

Fonte:
O Autor

Contos do Oriente (A Pereira Mágica)

Um camponês vendia no mercado peras doces e perfumadas, mas muito caras. Diante da carroça de peras, um monge taoista pedia esmolas. Ele tinha a túnica esfarrapada e o capuz rasgado.

– Quer fazer a gentileza de dar o fora daqui! - gritou o camponês.

O monge recusou-se a ir embora. Com muita raiva, o camponês começou a insultá-lo. Depois de um tempo, o monge disse:

– Você tem uma quantidade enorme de peras, e eu, um velho monge maltrapilho, quero uma só. Por que ficar com tanta raiva, se vai perder muito pouco se me der o que estou pedindo?

As pessoas em volta sugeriram que o vendedor de peras se livrasse do monge dando-lhe uma, não das mais bonitas, claro, para que ele deixasse o lugar, mas o camponês se recusou a aceitar essa ideia.

No fim, um rapazinho de uma birosca ali perto, atordoado com a gritaria, tirou do bolso uns tostões e comprou come uma pera, oferecendo-a ao monge, que prontamente agradeceu gesto tão caridoso. Em seguida, o monge virou-se para a multidão e disse:

– Nós, religiosos, que deixamos nossas famílias, não conseguimos compreender por que existe tanta avareza. Eu, por exemplo, tenho peras excelentes, e gostaria muito de reparti-las com vocês.

- Mas, se tem peras excelentes, por que não come uma delas, em vez de ficar aqui nos aborrecendo? – perguntou um dos homens.

– Porque eu preciso das sementes para plantar – respondeu o monge.

Imediatamente, ele pegou a pera com as duas mãos e começou a comê-la. Pelo jeito, devia estar bem gostosa. Antes de terminar, pôs as sementes na palma da mão, tirou a pequena pá que carregava na cintura, usada para colher plantas medicinais e começou a cavar um buraco. Quando o buraco ficou pronto, jogou dentro deles as sementes, cobrindo-as com terra.

O monge ficou de pé, examinou com cuidado a cova que tinha feito e disse que precisava regá-la com água quente. Um curioso trouxe um pouco, de uma venda ali perto, e o monge despejou-a devagar sobre a terra recém revolvida.

Todo mundo seguiu seus movimentos com atenção. E nesse instante, saiu da terra um broto, que cresceu, e instantes depois se transformou numa árvore com galhos frondosos. Nem bem as pessoas se recuperaram da surpresa, as flores desabrocharam nos galhos, que se inclinaram, carregados de peras doces e perfumadas.

O monge taoista subiu na pereira e começou a colher as peras dos galhos mais altos, oferecendo-as a quem quisesse. Num piscar de olhos, tudo foi distribuído. O monge pegou então a pá e bateu com ela no tronco da pereira, quebrando-o em pouco tempo. Pôs o tronco nos ombros, com a folhagem, e seguiu tranquilamente pela rua.

O camponês, que tinha entrado no meio da multidão logo no início, quando o monge tinha começado a plantar as sementes, estava tão fascinado que nem se lembrava mais da carroça. E quando o monge afastou-se, voltou correndo para as suas peras e teve uma surpresa maior ainda: a carroça estava vazia.

Por fim ele compreendeu o que tinha acontecido. Eram suas as peras que o monge havia distribuído de maneira tão generosa. Ele percebeu também que a carroça estava sem um dos varais, certamente serrado há bem pouco tempo. Indignado, foi atrás do monge. No canto do muro, estava o varapau que faltava. Era ele, então, o tronco da árvore! Quanto ao taoista, nunca soube em que direção tinha seguido. 

Fonte: 

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte X, final

Representada como canal linguístico da emoção, como se verifica em Amado e Hatoum, a língua árabe, além de mediar o convívio amoroso entre os personagens, também desempenha o papel desencadeador das lembranças de si, o que Hall denomina de núcleo ou essência interior, embora em contínua formação e modificação com os mundos culturais “exteriores” (HALL, 2001, p. 11), como se vê sugerido nas narrativas:

E, por mais espantoso que pareça, naqueles dias vibrantes do comício, no maior deles, quando dr. Ezequiel bateu todos os seus recordes anteriores de cachaça e inspiração, Nacib pronunciou um discurso. Deu-lhe uma coisa por dentro, depois de ouvir Ezequiel. Não aguentou, pediu a palavra. Foi um sucesso sem precedentes, sobretudo porque, tendo começado em português e faltando-lhe as palavras bonitas, pescadas dificilmente na memória, ele terminou em árabe, num rolar de vocábulos sucedendo-se em impressionante rapidez. Os aplausos não findavam. – Foi o discurso mais sincero e mais inspirado de toda a campanha – classificou João Fulgêncio. (AMADO, 1979 1, p. 327)

Às vezes ele se esquecia e falava em árabe. Eu sorria, fazendo-lhe um gesto de incompreensão: “É bonito, mas não sei o que o senhor está dizendo”. Ele dava um tapinha na testa, murmurava: “É a velhice, a gente não escolhe a

língua na velhice. Mas tu podes aprender umas palavrinhas querido [...] Numa noite, o tal de Zunuri reapareceu, intruso e dissimulado. Ela o enxotou com o abanador do fogareiro, insultou-o nas duas línguas que falava. O gatuno alesado, o ladrão, harami! [...] Zana deu um passo na direção dele, perguntou por que dormira no sofá. Depois, menos trêmula, conseguiu iluminar seu corpo e ainda teve coragem de fazer mais uma pergunta: por que tinha chegado tão tarde? Então com o sotaque árabe, ajoelhada gritou o nome dele, já lhe tocando o rosto com as duas mãos. Halim não respondeu. Estava quieto como nunca. Calado, para sempre. (HATOUM, 2000, p. 51; 146; 213)

Em suas construções identitárias, os discursos de Jorge Amado e de Milton Hatoum, num sinestésico apelo aos sentidos, exalam cheiros, sugerem sabores, se apresentando como um mosaico alimentar, duplamente dirigido para o paladar de origem e para o paladar da terra adotada, num saboroso jogo de retorno e de permanência. Desse jogo, deriva mais uma afinidade entre os árabes Nacib e Halim:

A viagem de Filomena [...] impedia-o de voltar-se por inteiro para as múltiplas novidades, tanta coisa a comentar quando os amigos chegassem. Novidades a granel e na opinião de Nacib, nada mais gostoso – só mesmo comida e mulher [...] Ele gostava mesmo era de comer bem, bons pratos apimentados, beber sua cerveja geladinha, jogar uma apurada partida de gamão. (AMADO, 1979 1, p. 77; 116)

Mas ele foi aprendendo, soletrando, cantando as palavras, até que os sons dos nossos peixes, plantas e frutas, todo aquele tupi esquecido, não embolava mais na sua boca [...] Ele era assim: não tinha pressa para nada, nem para falar [...] esbanjava na comida, nos presentes para Zana, nas vontades dos filhos. Convidava os amigos para partidas de gamão, o taule, e era uma festa, noitadas de grande demora, cheias de comilança [...] Ele preparou e serviu o último almoço [...] Ele festejava a volta cozinhando acepipes amazônicos: o piracu seco com farofa, tortas de castanhas, coisas que levava do Amazonas [...] (HATOUM, 2000, p. 51-56)

Avizinhando-se da obra de Jorge Amado, tangenciando Gabriela, cravo e canela, curiosamente, o romance de Hatoum se achegaria a essa personagem, quando se debruça sobre o destino/sina do imigrante. Nessa ponderação, verbalizada por Halim, encontramos a mesma condição vivida pela imigrante do sertão:

Estava envelhecendo, o Halim: uns setenta e tantos, quase oitenta, nem ele sabia o dia e o ano do nascimento. Dizia: Nasci no fim do século passado, em algum dia de janeiro... “A vantagem é que vou envelhecendo sem saber minha idade: sina de imigrante”. (HATOUM, 2000, p. 151)

Eu me lembro que, quando você me anunciou o casamento, contou que ela não sabia o nome da família, nem data do nascimento... – Nada. Não sabia nada... – E Tonico se ofereceu para arranjar os papéis necessários. – Fabricou tudo no cartório dele. – E então? (AMADO, 1979 1, p. 311)

Em sua representação árabe no Brasil, observa-se que o romance Dois irmãos não apenas estabelece um diálogo com Gabriela, cravo e canela, como, também, adota soluções já utilizadas, em outras obras amadianas. Ao assinalar a fé árabe no sistema sagrado dos caboclos amazônicos, Hatoum o aproximaria de uma das recorrências das narrativas de Amado, a da fé e do respeito árabe, ao código religioso popular, especialmente de matizes originadas das etnias não-europeias, como se afere da passagem textual da narrativa, Suor, escrita em 1934, um dos primeiros romances de Jorge Amado:

A negra ficou sentada no degrau. O medo abriu-lhe os olhos. Seria pra ela? Não tinha inimigos, não roubara o marido de ninguém, estava velha demais para ser cobiçada. De qualquer maneiram não passaria sobre o despacho. [...] Toufik juntou-se à negra: – Bom dia, sinhá Maria. – Bom dia, meu branco. – Não vai descer? Ela esticou o dedo apontando o embrulho de papel de jornal. Toufik assobiou. – Um feitiço, puxa! Pra quem será? O árabe também acreditava. (AMADO, 1980, p. 68-69)

Halim nunca me falou da morte, senão uma única vez, com disfarce, triscando as beiradas do assunto. Falou quando já se sentia perto do fim, uns anos depois da história do filho com a Pau-Mulato. Ele não viu o pior, o descalabro. Não viu, mas era dado a apreciar presságios: as tantas antevisões que escutara dos caboclos companheiros dele, filhos da mata e da solidão. Tinha tendência a crer piamente nessas histórias, e se deixava embalar pela trama, pela magia das palavras. (HATOUM, 2000, p. 148)

Também não se pode esquecer do tom incestuoso que perpassa a relação entre mãe e filho árabe, no caso Zana e Omar, largamente insinuado na narrativa de Hatoum. Embora mais abrandado, leve indício do desejo filial, esse tom se faria presente, originalmente, na obra de Jorge Amado, mais precisamente em Suor:

Ficaram juntos, os braços dela enroscados no pescoço do Caçula, ambos entregues a uma cumplicidade que provocou ciúmes em Yaqub e inquietação em Halim [...] Ao contrário de Zana, ela conseguia disfarçar o ciúme que sentia do Caçula e ambas faziam tudo para reinar nas noites de festa [...] Beijou-a com ardor, e nesse momento Zana lagrimou, em parte por emoção, em parte porque o Caçula, depois do beijo, apresentava-lhe a namorada. Dessa vez ela não quis disfarçar: encarou com um sorriso dócil e um olhar de desprezo a mulher que jamais seria a esposa de seu filho, a rival derrotada de antemão. (HATOUM, 2000, p. 26; 98-98)

O calor da noite não o deixava dormir, excitava-o. Levantou-se e molhou a cabeça na pia de água do sótão. Cuspiu e voltou. Notou que a mãe estava com as coxas descobertas. Primeiro, horrorizou-se. Depois não pensou mais naquilo e se deitou junto da velha. Encostou-se nas pernas descobertas, como fazia diariamente, mas nessa noite quase não dormiu, roçando-se na mãe que roncava. (AMADO, 1980, p. 57)

Como se pode verificar, a importância da obra de Jorge Amado não se constitui apenas pelo recorte espacial do seu discurso romanesco, à produção de “postais da Bahia, como ainda a reduz, variadas visões críticas. Dento da concepção estética que escolheu, Jorge Amado se faz pioneiro de um modo de olhar o imigrante árabe que não cessa de se reatualizar, em nosso corpus literário. Parafraseando Lúcia Lippi Oliveira, acreditamos que o escritor nordestino, ultrapassando a perspectiva puramente regionalista, pode ser considerado como romancista e como intelectual que soube ler, literariamente, o seu país e o seu tempo, nos legando uma obra que ainda espera ser reconhecida.

CONCLUSÃO

JORGE AMADO E MILTON HATOUM: SIMETRIAS E ASSIMETRIAS

O pintor de costumes que não se ocupe da América não é incompleto, por enquanto. Mas daqui a cem anos – talvez cinquenta – ele certamente o será.
Henry James

Acostumados à visão de Antonio Cândido de que a nossa literatura se constitui como um sistema, abrigando em seu interior determinados comportamentos e soluções estéticas que se repetem ao longo de nosso fazer literário, nos voltamos para a representação árabe em nossa literatura, tentando apreender as formas com as quais os nossos literatos representam esse universo. Utilizando-nos da perspectiva histórica e comparada, dividimos este trabalho em três momentos.

No primeiro, buscamos, essencialmente, verificar a presença árabe em nossa literatura, através dos mais variados momentos literários, alcançando, inclusive, o contexto literário do mundo colonial. Para, então, chegarmos à conclusão de que a presença árabe se constitui num topoi, grandemente utilizado em nossa produção poética e narrativa. Verificamos, ainda, que à exceção do satírico Gregório de Matos, que representa o universo árabe em estreita ligação com o mundo indígena, os nossos poetas e romancistas representam o elemento árabe em pleno olhar de proximidade, auto-reconhecimento, como Manuel Bandeira, e solidariedade, como Machado de Assis.

Num segundo momento, procuramos observar a representação árabe na literatura brasileira, através de um enfoque mais restrito, o da temática identitária. Levando em consideração a ostensiva presença árabe na obra de Jorge Amado em meio às suas elaborações da identidade nacional, nos voltamos para a narrativa, Gabriela, cravo e canela, primeira obra romanesca brasileira a elevar o elemento árabe à personagem-protagonista. Nessa leitura, verificamos, com surpresa que, não obstante a crítica desfavorável que padece a obra amadiana em nosso meio, principalmente a obra analisada, Jorge Amado, em sua perspectiva naturalista, revisitaria alguns grandes autores do Brasil, de perspectiva diferenciada da sua, como o discurso dos romancistas românticos e o de Machado de Assis.

Por outro lado, observamos, ainda, que os procedimentos utilizados por Jorge Amado, em sua aproximação identitária árabe-brasileira, seriam, em larga medida, retomados por muitos dos nossos escritores, a exemplo de Milton Hatoum, cuja obra tangencia o romance amadiano, apesar do vácuo, de quase cinqüenta anos que as separa, da concepção artística e da visão memorialista que norteiam Milton Hatoum.

Terceiro momento de nosso trabalho, a leitura da obra Dois irmãos, de Milton Hatoum se daria em estreita comparação com o discurso amadiano, respeitando a precedência histórica e literária do escritor nordestino. Nessa leitura mais uma surpresa. Apesar das diferenças assinaladas entre os dois romancistas, do sucesso da obra de Hatoum em nosso meio acadêmico, a obra do escritor amazonense se aproximaria da de Jorge Amado pela recorrência às maneiras pelas quais o escritor grapiúna constrói a identidade brasileira em intercurso com as feições árabes. Nessa compreensão, Jorge Amado pode e deve ser visto como pioneiro dessas construções identitárias.

Nesse percurso, organizamos esse trabalho, esperando contribuir para os estudos literário-identitários entre nós, mais especialmente das representações árabes e brasileiras, em nosso sistema literário.

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Guimarães Rosa (Partida do Audaz Navegante)

Na manhã de um dia em que brumava e chuviscava, parecia não acontecer coisa nenhuma. Estava-se perto do fogo familiar, na cozinha, aberta, de alpendre, atrás da pequena casa. No campo, é bom; é assim. Mamãe, ainda de roupão, mandava Maria Eva estrelar ovos com torresmos e descascar os mamões maduros. Mamãe, a mais bela, a melhor. Seus pés podiam calçar as chinelas de Pele. Seus cabelos davam o louro silencioso. Suas meninas-dos-olhos brincavam com bonecas. Ciganinha, Pele e Brejeirinha ─ elas brotavam num galho. Só o Zito, este, era de fora; só primo. Meia-manhã chuvosa entre verdes: o fúfio fino borrifo, e a gente fica quase presos, alojados, na cozinha ou na casa, no centro de muitas lamas. Sempre se enxergam o barranco, o galinheiro, o cajueiro grande de variados entortamentos, um pedaço de um morro ─ e o longe. Nurka, negra, dormia. Mamãe cuida com orgulhos e olhares as três meninas e o menino. Da Brejeirinha, menor, muito mais. Porque Brejeirinha, às vezes, formava muitas artes.

Nesta hora, não. Brejeirinha se instituíra, um azougue de quieta, sentada no caixote de batatas. Toda cruzadinha, traçada as pernocas, ocupava-se com a caixa de fósforos. A gente via Brejeirinha: primeiro, os cabelos, compridos, lisos, louro-cobre; e, no meio deles, coisicas diminutas: a carinha não-comprida, o perfilzinho agudo, um narizinho que-carícia. Aos tantos, não parava, andorinhava, espiava agora ─ o xixixi e o empapar-se da paisagem ─ as pestanas til-til. Porém, disse-se-dizia ela, pouco se vê, pelos entrefios: ─“Tanto chove que me gela!” Aí, esticou-se para cima, dando com os pés em diversos objetos. ─“Ui, ui-te” ─ rolara nos cachos de bananas, seu umbigo sempre aparecendo. Pele ajudava-a a se endireitar. ─“E o cajueiro ainda faz flores...” ─ acrescentou, observava da árvore não se interromper mesmo assim, com essas aguaceirices, de durante dias, a chuvinha no bruar e a pálida manhã do céu. Mamãe dosava açúcares e farinhas, para um bolo. Pele tentava ajudar, diligente. Ciganinha lia um livro; para ler ela não precisava virar página.

Ciganinha e Zito nem muito um do outro se aproximava, antes paravam meio brigados, de da véspera, de uma briguinha grande e feia. Pele é que era a morena, com notáveis olhos. Ciganinha, a menina linda no mundo: retrato miúdo da Mamãe. Zito pensava assuntos de não ousar dizer, coisas de ciumoso, ele abrira-se à espécie de ciúmes sem motivo de quê ou quem. Brejeirinha pulou, por pirueta. ─ “Eu sei porque é que o ovo se parece com um espeto!” ─; ela vivia em álgebra. Mas não ia contar a ninguém. Brejeirinha é assim, não de siso débil; seus segredos são sem acabar. Tem porém infinitas inquietações: ─“Eu hoje estou com a cabeça muito quente ─ isto, por não querer estudar. Então, ajunta: ─“Eu vou saber geografia.” Ou: ─“Eu queria saber o amor...” Pele foi quem deu risada. Ciganinha e Zito erguem olhos, só quase assustados. Quase, quase, se entreolharam, num não encontrar-se. Mas, Ciganinha, que se crê com a razão, muxoxa. Zito, também, não quer durar mais brigado, viera ao ponto de não aguentar. Se, à socapa, mirava Ciganinha, ela de repente mais linda, voava.

─“Sem saber o amor, a gente pode ler os romances grandes?” ─ Brejeirinha especulava.

─“É, hem? Você não sabe ler nem o catecismo...” Pele lambava-lhe um tico de desdém; mas Pele não perdia de boazinha e beliscava em doce, sorria sempre na voz. Brejeirinha rebica, picuíca: ─“Engraçada!... Pois eu li as 35 palavras no rótulo da caixa de fósforos...” Por isso, queria avançar afirmações, com superior modo e calor de expressão, deduzidos de babinhas. ─“Zito, tubarão é desvairado, ou é explícito ou demagogo?” Porque gostava, poetisa, de importar desses sérios nomes, que lampejam longo clarão no escuro de nossa ignorância. Zito não respondia, desesperado de repente, controversioso-culposo, sonhava ir-se embora, teatral, debaixo de chuva que chuva, ele estalava numa raiva. Mas Brejeirinha tinha o dom de apreender as tenuidades: delas apropriava-se e refletia-as em si ─ a coisa das coisas e a pessoa das pessoas. ─”Zito, você podia ser o pirata inglório marujo, num navio muito intacto, para longe, lo-o-onge no mar, navegante que o nunca-mais, de todos?” Zito sorri, feito um ar forte. Ciganinha estremecera, e segurou com mais dedos o livro, hesitada. Mamãe dera a Pele a terrina, para ela bater os ovos.

Mas Brejeirinha punha a mão em rosto, agora ela mesma empolgada, não detendo em si o jacto de contar: ─“O Audaz Navegante, que foi descobrir os outros lugares valetudinário. Ele foi num navio, também, falcatruas. Foi de sozinho. Os lugares eram longe, e o mar. O Audaz Navegante estava com saudade, antes, da mãe dele, dos irmãos, do pai. Ele não chorava. Ele precisava respectivo de ir. Disse: ─“Vocês vão se esquecer muito de mim?” O navio dele, chegou o dia de ir. O Audaz Navegante ficou batendo o lenço branco, extrínseco, dentro do indo-se embora do navio. O navio foi saindo do perto para o longe, mas o Audaz Navegante não dava as costas para a gente, para trás. A gente também inclusive batia os lenços brancos. Por fim, não tinha mais navio para se ver, só tinha o resto de mar. Então, um pensou e disse: ─“Ele vai descobrir os lugares, que nós não vamos nunca descobrir...” Então e então, outro disse: ─“Ele vai descobrir os lugares, depois ele nunca vai voltar...” Então, mais, outro pensou, pensou, esférico, e disse: ─“Ele deve de ter, então, a alguma raiva de nós, dentro dele, sem saber...” Então, todos choraram, muitíssimos, e voltaram tristes para casa, para jantar...”

Pele levantou a colher: ─“Você é uma analfabetinha “aldaz”. ─“Falsa a beatinha é tu!” ─ Brejeirinha se malcriou. ─“Por que você inventa essa história de de tolice, boba, boba?” ─ e Ciganinha se feria em zanga. ─”Porque depois pode ficar bonito, uê!” Nurka latira. Mamãe também estava brava? Porque Brejeirinha topara o pé em cafeteiras, e outras. Disse ainda, reflexiva: ─“Antes falar bobagens, que calar besteiras...” Agora, fechou os olhos que verdes, solene arrependida de seu desalinho de conduta. Só ouvirá o rumorejo da chuvinha, que estarão fritando.

A manhã é uma esponja. Decerto, porém, Pele rezara os dez responsos a Santo Antônio, tão quanto batia os ovos. Porque estourou manso o milagre. O tempo temperou. Só era março ─ compondo suas chuvas ordinárias. Ciganinha e Zito se suspiravam. Soltavam-se as galinhas do galinheiro, e o peru. Saía-se, ao largo, Nurka. O céu tornava a azul?

Mamãe ia visitar a doente, a mulher do colono Zé Pavio. ─“Ah, e você vai conosco ou sem-nosco?” ─ Brejeirinha perguntava. Mamãe, por não rir nem se dar de alheada, desferia chufas meigas: ─“Que nossa vergonha!...” ─ e a dela era uma voz de vogais doçuras. A manhã se faz de flores. Então, pediu-se licença de ir espiar o riachinho cheio. Mamãe deixava, elas não eram mais meninas de agarra-a-saia. De impulso, se alegraram. Só que alguém teria de junto ir, para não se esquecerem de não chegar perto das águas perigosas. O rio, ali, é assaz. Se o Zito não seria, próprio, essa pessoa de acompanhar, um meiozinho-homem, leal de responsabilidades? Cessou-se a cerração do ar. Mas tinham de vestir outras roupas quentes. ─”Oh, as grogolas!” Brejeirinha de alegria ante todas, feliz como se, se, se: menina só ave. ─“Vão com Deus!” ─ Mamãe disse, profetisa, com aquela voz voável. Ela falava, e choviam era bátegas de bênçãos. A gentezinha separou-se.

A ir lá, o caminho primeiro subia, subvexo, a ladeirinha do combro, colinosa. Tão mesmo assim, os dois guarda-chuvas. Num ─ avante ─ Brejeirinha e Pele. Debaixo do outro, Zito e Ciganinha. Só os restos da chuva, chuvinha se segredando. Nurka corria, negramente, e enfim voltava, cachorra destapada ditosa. Se a gente se virava, via-se a casa, branquinha com a lista verde-azul, a mais pequenina e linda, de todas, todas. Zito dando o braço a Ciganinha, por vezes, muito, as mãos se encontravam. Pele se crescia, elegante. E ágil ia a Brejeirinha, com seu casaquinho coleóptero. Ela andava pés-para-dentro, feito um periquitinho, impávido.

No transcenso da colineta, Zito e Ciganinha colavam-se, muito às tortas, nos comovidos não-falares. Sim, já se estavam em pé de paz, fazendo sua experiência de felicidade; para eles, o passeio era um fato sentimental. Descia-se agora a outra ladeira, pegando cuidado, pelo enlameável e escorregoso, poças, mas também para não pisar no que Brejeirinha chamava de “o bovino” ─ altas rodelas de esterco cogumeleiro. Ali, com efeito, andavam bois: “o boi, beiçudo”; aí, Brejeirinha levou tombo. Ela disse que Mamãe tinha dito que eles precisavam de ter: coragem com juízo. Mas, isso, era mentirinhas. E, o que pois: ─“Agora, já me sujei, então agora posso não ter cuidado...” Correu, com Nurka, pela encosta inferior, no verdinho pasto. Pele ainda ralhou: ─“Você vai buscar um audaz navegante?” Mas, mais. Entanto, à úmida, à luz, o plano capim ─ e floriu-se: estendem-se, entremunhadas, as margaridinhas, todas se rodeiam de pálpebras.

O que se queria, aqui, era a pequena angra, onde o riachinho faz foz. Abaixo, aos bons bambus, e às pedreiras de beira-rio, ouvindo o ronco, o bufo d’água. Porque, o rio, grosso, se descomporta, e o riachinho porém também, seu estuário já feio cheio, refuso, represado, encapelado ─ pororoqueja. ─“Bochechudo!” ─ grita-lhe Brejeirinha. Sumiu-se a última areiínha dele, sob baile de um atoalhado de espumas, no belo despropositar-se, o bulir de bolhas. Brejeirinha já olhou tudo de cor. Cravou varetas de bambu, marcando pontos, para medir a água em se crescer, mudando de lugar. Porém, o fervor daquilo impunha-lhe recordações, Brejeirinha não gostando de mar: ─“O mar não tem desenho. O vento não deixa. O tamanho...” Lamentava-se de não ter trazido pão para os peixes. ─“Peixe, assim, a esta hora?” ─ Pele duvidava. Divagava Brejeirinha: ─“A cachoeirinha é uma parede de água...” Falou que aquela, ali, no rio, em frente, era a Ilhazinha dos Jacarés. ─“Você já viu jacaré lá?” ─ caçoava Pele. ─“Não. Mas você também nunca viu o jacaré-não-estar-lá. Você vê é a ilha, só. Então, o jacaré pode estar ou não estar...” Mas, Brejerinha, Nurka ao lado, já vira tudo, em pé em volta, seu par de olhos passarinhos. Demorava-se, aliás, o subir e alargar-se da água, com os mil-e-um movimentos supérfluos.

A gente se sentava, perto, não no chão nem em tronco caído, por causa do chovido do molhado. Ciganinha e Zito, numa pedra, que dava só para dois, podiam horas infinitas; apenas, conversando ainda feito gente trivial. Pele saíra a colher um feixe de flores. Mais não chuviscava. Brejeirinha já pulando de novo. Disse: que o dia estava muito recitado. Voltava-se para a contramargem, das mais verdes, e jogava pedras, o longe possível, para Nurka correndo ir buscar. Depois, se acocora, de entreter-se, parece que já está até calçada com um sapatinho só. Mas, sem se desganchar, logo gira nos pezinhos, quer Ciganinha e Zito para ouvirem. Olha-os.

─“O Audaz Navegante não gostava de mar! Ele tinha assim mesmo de partir? Ele amava uma moça, magra. Mas o mar veio, em vento, e levou o navio dele, com ele dentro, escrutínio. O Audaz Navegante não podia nada, só o mar, danado de ao redor, preliminar. O Audaz Navegante se lembrava muito da moça. O amor é original...”

Ciganinha e Zito sorriram. Riram juntos. ─“Nossa! O assunto ainda não parou?” ─ era Pele voltada, numa porção de flores se escudando. Brejeirinha careteou um “ah!” e quis que continuou: ─“...Vem a tripulação... Então, não. Depois, choveu, choveu. O mar se encheu, o esquema, amestrador... O Audaz Navegante não tinha caminho para correr e fugir, perante, e o navio espedaçado. O navio perambulava... Ele, com o medo, intacto, quase nem tinha tempo de tornar a pensar demais na moça que amava, circunspectos. Ele só a prevaricar... O amor é singular...”

─ “E daí?”

─“A moça estava paralela, lá, longe, sozinha, ficada, inclusive, eles dois estavam nas duas pontinhas da saudade... O amor, isto é... O Audaz Navegante, o perigo era total, titular... não tinha salvação... O Audaz... O Audaz...”

─ “Sim. E agora? E daí?” ─ Pele intimava-a.

─ “Aí? Então... então... Vou fazer explicação! Pronto. Então, ele acendeu a luz do mar. E pronto. Ele estava combinado com o homem do farol... Pronto. E...”

─ “Nã-ão. Não vale! Não pode inventar personagem novo, no fim da estória, fu! E ─ olha o seu “aldaz Navegante”, ali. É aquele...”

Olhou-se. Era: aquele ─ a coisa vacum, atamanhada, embatumada, semi-ressequida, obra pastoril no chão de limugem, e às pontas dos capins ─ chato, deixado. Sobre sua eminência, crescera um cogumelo de haste fina e flexuosa, muito longa: o chapeuzinho branco, lá em cima, petulante se bamboleava. O embate e orla da água, enchente, já o atingiam, quase.

Brejeirinha fez careta. Mas, nisso, o ramilhete de Pele se desmanchou, caindo no chão umas flores. ─ “Ah! Pois é, é mesmo!” ─ e Brejeirinha saltava e agia, rápida no valer-se das ocasiões. Apanhara aquelas florinhas amarelas ─ josés-moleques, douradinhas e margaridinhas ─ e veio espetá-las no concroo do objeto. ─ “Hoje não tem nenhuma flor azul?” ─ ainda indagou. A risada foi de todos, Ciganinha e Zito bateram palmas. ─“Pronto. É o Audaz Navegante...” ─ e Brejeirinha crivava-o de mais coisas ─ folhas de bambu, raminhos, gravetos. Já aquela matéria, o “bovino”, se transformava.

Deu-se, aí, porém, longe rumor: um trovão arrasta seus trastes. Brejeirinha teme demais os trovões. Vem para perto de Zito e Ciganinha. E de Pele. Pele, a meiga. Que: ─“Então? A estória não vai mais? Mixou?”

─“Então, pronto. Vou tornar a começar. O Audaz Navegante, ele amava a moça, recomeçado. Pronto. Ele, de repente, se envergonhou de ter medo, deu um valor, desasssustado. Deu um pulo onipotente... Agarrou, de longe, a moça, em seus abraços... Então, pronto. O mar foi que se aparvalhou-se. Arres! O Audaz navegante, pronto. Agora, acabou-se, mesmo: eu escrevi ─”Fim”!”

De fato, a água já se acerca do “Audaz Navegante”, seu primeiro chofre golpeava-o. ─“Ele vai para o mar?” ─ perguntava, ansiosa, Brejeirinha. Ficara muito de pé. Um ventinho faz nela bilo-bilo ─ acarinha-lhe o rosto, os lábios, sim, e os ouvidos, os cabelos. A chuva, longe, adiada.

Segredando-se, Ciganinha e Zito se consideram, nas pontinhas da realidade. ─“Hoje está tão bonito, não é? Tudo, todos, tão bem, a gente alegre... Eu gosto deste tempo...” E: ─“Eu também, Zito. Você vai voltar sempre aqui, muitas vezes?” E: ─“Se Deus quiser, eu venho...” E: ─“Zito, você era capaz de fazer como o Audaz Navegante? Ir descobrir os outros lugares? E: ─“Ele foi, porque os outros lugares ainda são mais bonitos, quem sabe?...” Eles se disseram, assim eles dois, coisas grandes em palavras pequenas, ti a mim, me a ti, e tanto. Contudo, e felizes, alguma outra coisa se agitava neles, confusa ─ assim rosa-amor-espinhos-saudade.

Mas, o “Aldaz Navegante”, agora a água se apressa, no vir e ir, seu espumitar chega-lhe já em redor, começando a ensopação. Ei-lo circunavegável, conquanto em firme terrestreidade: o chão ainda o amarrava de romper e partir. Brejeirinha aumenta-lhe os adornos. Até Ciganinha e Zito pegam a ajudar. E Pele. Ele é outro, colorido, estrambótico, folhas, flores. ─“Ele vai descobrir os outros lugares...” “─Não, Brejeirinha. Não brinca com coisas sérias!” “─Uê? O quê?” Então, Ciganinha, cismosa, propõe: ─“Vamos mandar, por ele, um recado?” Enviar, por ora, uma coisa, para o mar. Isso, todos querem. Zito põe uma moeda. Ciganinha, um grampo. Pele, um chicle. Brejeirinha ─ um cuspinho; é o “seu estilo”. E a estória? Haverá, ainda, tempo para recontar a verdadeira estória? Pois:

─“Agora, eu sei. o Audaz Navegante não foi sozinho; pronto! Mas ele embarcou com a moça que ele amavam-se, entraram no navio, estricto. E pronto. O mar foi indo com eles, estético. Eles iam sem sozinhos, no navio, que ficando cada vez mais bonito, mais bonito, o navio... pronto: e virou vaga-lumes...”

Pronto. O trovão, terrível, este em céus e terra, invencível. Carregou. Brejeirinha e o trovão se engasgam. Ela iria cair num abismo “intacto” ─ o vão do trovão? Nurka latiu, em seu socorro. Ciganinha, e Pele e Zito, também, vêm para a amparar. Antes, porém, outra fada, inesperada, surgia, ali, de contraflor.

“─Mamãe!”

Deitou-se-lhe ao pescoço. Mamãe aparava-lhe a cabecinha, como um esquilo pega uma noz. Brejeirinha ri sem til. E, Pele:

─“Olha! Agora! Lá se vai o “Audaz Navegante”!”

“─Ei!”

“─Ah!”

O Audaz! Ele partia. Oscilado, só se dançando ando, espumas e águas o levavam, ao Audaz Navegante, para sempre, viabundo, abaixo, abaixo. Suas folhagens, suas flores e o airoso cogumelo, comprido, que uma gota orvalha, uma gotinha, que perluz ─ no pináculo de uma trampa seca de vaca.

Brejeirinha se comove também. No descomover-se, porém, é que diz:

“─Mamãe, agora eu sei, mais: que o ovo só se parece, mesmo, é com um espeto!”

De novo, a chuva dá.

De modo que se abriram, asados, os guarda-chuvas.

_______________________
VOCABULÁRIO:

azougue = pessoa muito viva e esperta;
socapa = disfarce, fantasia
tenuidades = delicadezas, sutilezas
extrínseco = exterior; não pertencente à essência de uma coisa
assaz = bastante, suficientemente
bátegas = aguaceiro forte e grosso
subvexo = sub + vexo = molestado, maltratado, humilhado, afligido
combro = corruptela: calombo
coleóptero = insetos, larvas, pragas dos vegetais
transcenso = superior, excedido
refuso = refundido, transformado
escrutínio = exame atento, minucioso, apuramento
vacum = gado vacum
embatumada = acumulada, demasiadamente cheia
eminência = elevação, altura
concroo = talvez, corruptela de “concretude” ou “com coroa”, “no alto” do objeto = lugar de coroação
estrito = rigoroso, exato
viabundo = via (caminho) + vagabundo

Fonte:
ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte IX

Lançando mão das lembranças do vivido e da tradição literária, Milton Hatoum iniciaria sua trajetória de romancista, elegendo como ambiente privilegiado o norte do Brasil, mais especificamente Manaus, onde se verifica, em meio à profusão de traços indígenas, um expressivo contingente populacional de imigrantes árabes, mais especificamente, de origem sírio-libanesa.

Apreendida, literariamente, através de três grandes momentos históricos de importância no Brasil, a obra de Hatoum se voltaria para a Manaus dos anos da Segunda Guerra Mundial, marcada pela penúria e pela fome; para a Manaus dos anos Cinqüenta, caracterizada pelo alheamento à euforia do progresso e, finalmente, para a Manaus dos anos Sessenta/Setenta, duplamente penalizada, às voltas com o temporal político dos anos ditatoriais que nos infelicitou e com a tempestade econômica que transfigura a cidade, irreconciliando-a com o seu passado, conforme se afere da contraposição de Halim e do lamento, assombrado e triste de Nael, o narrador de Dois irmãos:

O pai reclamava que a cidade estava inundada, que havia correria e confusão no centro, que a Cidade Flutuante estava cercada por militares [...] “Eles estão por toda parte”, disse abraçando o filho. “Até nas árvores dos terrenos baldios a gente vê uma penca de soldados...” “É que os terrenos do centro pedem para ser comprados”, sorriu Yaqub. “Manaus está pronta para crescer.” Halim enxugou o rosto, olhou nos olhos do filho e disse sem entusiasmo: – “Eu peço outra coisa, Yaqub... Já cresci tudo o que tinha de crescer...”. (HATOUM, 2000, p. 196)

Eu acabara de dar a minha primeira aula no liceu onde havia estudado e vim a pé para cá, sob a chuva, observando as valetas que dragavam o lixo, os leprosos amontoados, encolhidos debaixo dos outizeiros. Olhava com assombro e tristeza a cidade que se mutilava e crescia ao mesmo tempo, afastada do porto e do rio, irreconciliável com o seu passado. (HATOUM, 2000, p. 264)

Ao se debruçar sobre esse último momento histórico, Milton Hatoum expressa uma enorme discordância com a ideologia do progresso, representada, recorrentemente, pelos traços da perda, da desordem, do constrangimento, responsável pela presença volumosa e incômoda de “estrangeiros” e de imigrantes interioranos, pela azáfama que se instaura em Manaus, desfigurando-a e descaracterizando-a, como afirmam Omar, o Caçula, e Nael, este ao explicar a que se devia a presença do indiano Rochiram, denominado, tanto por Zana, quanto por Domingas, de estrangeiro:

O Caçula acordava, ela ouvia as histórias dele. O Café Mocambo fechara, a praça das Acácias estava virando um bazar. Sozinho à mesa, ele ia contando suas andanças pela cidade. A novidade mais triste de todas: o Verônica, lupanar lilás, também fora fechado. “Manaus está cheia de estrangeiros, mama. Indianos, coreanos, chineses... O centro virou um formigueiro de
gente do interior... Tudo está mudando em Manaus.” (HATOUM, 2000, p. 223)

Ouvira dizer que Manaus crescia muito, com suas indústrias e seu comércio. Viu a cidade agitada, os painéis luminosos com letreiros em inglês, chinês e japonês. Percebeu que sua intuição não falhara. Quando Zana não compreendia a algaravia de Rochiram, ela perguntava ao filho: ‘O que esse estrangeiro está querendo dizer?” [...] Domingas não se sentia à vontade com aquele estrangeiro, mais estranho do que todos nós juntos. Ela me dizia. (HATOUM, 2000, p. 226-227)

Nesse sentido, a narrativa de Milton Hatoum se afasta do discurso romanesco de Jorge Amado, não obstante a temática comum – a aclimatação árabe em solo nacional – que os aproxima. A perspectiva ideológica amadiana, de civilização e progresso, que alimenta Gabriela, cravo e canela é, em Milton Hatoum, explicitamente problematizada, recusada por seus vários personagens. A esse afastamento do projeto ideológico amadiano se somaria também a recusa e o distanciamento da perspectiva literária adotada pelo escritor baiano, no caso o Naturalismo, como já foi referido em passagem anterior.

O afastamento ideológico da obra de Jorge Amado conduziria Milton Hatoum à aproximação com Graciliano Ramos. Este, em meio às variadas elaborações modernistas, otimistas e ansiosas de progresso, se constitui como um fato isolado, como ressalta Silviano Santiago, ao proceder a um balanço inicial sobre o nosso Modernismo:

Eu acho que é porque Graciliano Ramos, de todos os autores modernistas, foi o único que não esteve comprometido com o projeto de modernização do Brasil. Acho que a impiedade do balanço vai ser em demonstrar que todos estavam, mais ou menos, comprometidos com o projeto de modernização do Brasil, todos tinham uma mente desenvolvimentista, em todos a necessidade de atualização era capital e todos queriam fazer com que o Brasil entrasse na História, e numa História que seria pura industrialização. (SANTIAGO, 1987, p. 422-423)

As afinidades pontuadas entre Milton Hatoum e Graciliano Ramos se devem, essencialmente, ao fato do escritor manauara, a exemplo do romancista nordestino, construir, através do apuro e do rigor da técnica narrativa, a sua novelística. Esse cuidado com a técnica narrativa, que tem no contexto regionalista de Trinta, em Graciliano Ramos o seu precursor, se matiza após esse período, propiciando o aparecimento de Guimarães Rosa. Para Antonio Cândido, o criador de Diadorim seria tributário dessas obras de refinamento do Regionalismo, às quais denomina de super-regionalismo.

Levando em consideração as observações de Antonio Cândido sobre a trajetória do regionalismo no Brasil e na América Latina, como também as reflexões de Tânia Pellegrini sobre o regionalismo de Milton Hatoum, acreditamos que o autor de Dois irmãos pode ser incluído na linhagem desse super-regionalismo que, como acentua Cândido, ao estilizar o regional, alcança a universalidade:

O que vemos agora, sob este aspecto, é uma florada novelística marcada pelo refinamento técnico, graças ao qual as regiões se transfiguram e os seus contornos humanos se subvertem, levando os traços antes pitorescos a se descarnarem e a adquirirem universalidade. Descartando o sentimentalismo e a retórica; nutrida de elementos não-realistas, como o absurdo, a magia das situações; ou de técnicas antinaturalistas, como o monólogo interior, a visão simultânea, o escorço, a elipse – ela implica não obstante em aproveitamento do que antes era a própria substância do nativismo, do exotismo e do documentário social. Isto levaria a propor a distinção de uma terceira fase, que se poderia (pensando em surrealismo, ou super-realismo) chamar de super-regionalista [...] Desse super-regionalismo é tributária, no Brasil, a obra revolucionária de Guimarães Rosa, solidamente plantada no que poderia chamar de a universalidade da região. E o fato de estarem ultrapassados o pitoresco e o documentário não torna menos viva a presença da região em obras como as de Juan Rulfo. (CÂNDIDO, 1987, p. 161-162 – grifos do autor)

Esse regionalismo revisitado de Hatoum consiste, portanto, numa mescla de elementos que brotam de todos os matizes de uma matéria dada por uma região específica, com outros advindos de matrizes narrativas de inspiração européia e urbana, formadoras da nossa literatura, tudo filtrado por um olhar que contém horizontes perdidos num certo Oriente e num outro tempo. Com isso o autor revitaliza o gênero, num momento da história da ficção brasileira em que ele parecia aos poucos estar se esgotando. Talvez essa seja a chave para entender a repercussão que a ficção de Hatoum encontrou: dentro da estrutura geral da sociedade brasileira, o seu regionalismo ainda tem o papel de acentuar as particularidades culturais que se forjaram nas áreas internas, contribuindo para definir sua autoridade, ao mesmo tempo que as reinsere no seio da cultura nacional como um todo, por meio de sua temática universal. (PELLEGRINI, 2007, p. 107-108 – grifos da autora)

Não obstante a nova inflexão que empresta ao romance regional, da catalisação dos diversos elementos que compunham essa modalidade estética e da expressa diferença entre a sua perspectiva literária e a de Jorge Amado, Milton Hatoum ora se avizinharia, ora se afastaria do escritor grapiúna, precursor, entre nós, da sistêmica e larga frequentação árabe no romance brasileiro, que regressaria à nossa literatura através de Hatoum. Como Jorge Amado que projeta, em 1948, a história de Ilhéus na literatura, Hatoum também alinharia o percurso histórico de Manaus, em sua obra, no alvorecer desse milênio. Sem a premissa básica de Jorge Amado de escrever para o povo, Milton Hatoum, a exemplo de Amado, também marcaria sua narrativa pela pluralidade linguística, pela formidável multiplicidade de vozes, constituindo-se como uma verdadeira polifonia que contempla os coloquialismos regionais e assegura o tom de oralidade das obras, enquanto garante a presença dos mais variados tipos étnico-sociais, historicamente silenciados, conforme se observa na apreciação de Stefania Chiarelli, ao analisar a primeira obra de Hatoum.

No romance de Hatoum, muitas falas historicamente silenciadas serão articuladas: faz-se presente, na narração, a união dos retalhos de diferentes memórias, espécie de tapete persa tecido por vozes indígenas, amazônicas, árabes, brasileiras. Estão presentes terapias da fauna amazônica, trechos d’As mil e uma noites, lembranças de rituais indígenas, passagens do Alcorão, orações em nheengatu. (CHIARELLI, 2007, p. 39)

Aos coloquialismos regionais se juntam, nas obras estudadas, à notória presença de outros signos literários da literatura universal e local. Em Jorge Amado, Zola, Aluísio Azevedo e às alusões à literatura indianista. Em Hatoum, As mil e umas noites, tessituras ocidentais e, também, a mesma vaga referência aos textos nativistas, como se vê na menção de Halim ao poema indianista, “Leito de folhas verdes”, de Gonçalves Dias, quando recorda, em conversa com Nael, os bons e velhos tempos de amor com Zana, antes da chegada dos filhos:

“Ali mesmo, debaixo da seringueira” apontou com o indicador da mão enrugada, mas firme: “Era o nosso leito de folhas. Dava uma coceira danada, porque aquele canto do mato era cheio de urtigas. Foi assim até o nascimento dos gêmeos”. (HATOUM, 2000, p. 69)

Narrativas de nação, as obras Gabriela, cravo e canela e Dois irmãos entranham às suas letras uma profusão de gostos e sabores que, aliados à multiplicidade linguística, reforça, na obra de Amado, e reencena, na obra de Hatoum, um dos princípios mais caros aos romancistas do Nordeste, o da ruptura da oposição entre os traços culturais do interior brasileiro e os padrões culturais do litoral, estes subtendidos como “civilizados”, como se apreende da leitura de Cândido:

Talvez se possa dizer que os romancistas da geração de Trinta, de certo modo, inauguraram o romance brasileiro, porque tentaram resolver a grande contradição que caracteriza a nossa cultura, a saber, a oposição entre as estruturas civilizadas do litoral e as camadas humanas que povoam o interior – entendendo-se por litoral e interior menos as regiões geograficamente correspondentes do que os tipos de existência, os padrões de cultura comumente subtendidos em tais designações [...] Ora, precedendo a obra de políticos, dos economistas, dos educadores, a literatura, a seu modo, colocou primeiro e encaminhou em seguida a solução do problema. (CÂNDIDO, 1992, p. 45)

Reconhecendo que as diferenças, de ambiente histórico, de contexto escritural e de  perspectiva literária, verificadas entre Jorge Amado e Milton Hatoum, não abolem traços pontuais de convergência entre os dois autores, procedemos, no momento a seguir, um cotejo entre as configurações árabes de Gabriela, cravo e canela e as Dois irmãos. Assim, fazendo–nos acompanhar com Nacib e Halim, adentraremos no universo árabe que povoa a obra de Jorge Amado e a de Milton Hatoum.

3.2 NACIB E HALIM: OS ÁRABES NO BRASIL

O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade [...] Na praça, há o murinho dos velhos que vêem a juventude passar, ele está sentado ao lado deles. Os desejos agora são recordações. 
Ítalo Calvino

Levando em consideração a orientação histórica que norteia esse trabalho, faremos uma leitura das similaridades entre as representações árabes do escritor baiano e as do escritor nortista, respeitando a precedência histórico-literária de Jorge Amado, em sua escritura do protagonismo árabe. Assim, nos faremos acompanhar de Nacib e de Halim, caminho escolhido para adentrarmos no universo escritural de Amado e de Milton Hatoum. 

Em 1958, surge, na literatura brasileira, o personagem árabe Nacib que dividiria o protagonismo da narrativa, Gabriela, cravo e canela, com a personagem que dá título à obra, representada ora como mulata, ora como sertaneja tangida pela seca, para o sul da Bahia, espaço esse, que seria representado em plena adversidade ao de onde migrara Gabriela para o seu encontro com Nacib. Desse encontro, se formaria o par amoroso central da narrativa amadiana, conquistando uma ampla simpatia dos inúmeros leitores de Jorge Amado:

Naquele ano de 1925, quando floresceu o idílio da mulata Gabriela e do árabe Nacib, a estação das chuvas tanto se prolongara além do normal e necessário que os fazendeiros, como um bando assustado, cruzavam-se na rua a perguntar uns aos outros, o medo no olhar e na voz: – Será que não vai parar? (AMADO, 1979 1, p. 15)

Precedido, na obra de Amado, de uma ampla galeria de retratos árabes, Nacib se constitui como o primeiro personagem árabe a desfrutar do protagonismo literário em nossas letras. Quarenta e dois anos depois, surge a obra Dois irmãos, de Milton Hatoum, na qual vamos encontrar o personagem Halim, desfrutante, como Nacib, do protagonismo literário. À maneira de Jorge Amado, Hatoum entrelaçaria à narração da trajetória de Halim, patriarca de uma família sírio-libanês-brasileira, o próprio percurso histórico da cidade de Manaus, aprendida em perspectiva antagônica, não obstante simétrica, da prosa de Jorge Amado. Se, em Hatoum, as transformações pelas quais passam Manaus são representadas pelos signos da contrariedade e da desolação, em Amado, Ilhéus se irreconcilia com o seu passado pela via da positividade:

Uma noite que ele escapara [Halim] logo depois da sesta eu o encontrei na beira do rio Negro. Estava ao lado do compadre Pocu, cercado de pescadores, peixeiros, barqueiros e mascateiros. Assistiam, atônitos, à demolição da Cidade Flutuante. Os moradores xingavam os demolidores, não queriam morar longe do pequeno porto, longe do rio. Halim balançava a cabeça, revoltado, vendo todas aquelas casinhas serem derrubadas. Erguia a bengala e soltava uns palavrões, gritava “Por que estão fazendo isso? Não vamos deixar, não vamos”, mas os policiais impediam a entrada no bairro. Ele ficou engasgado, e começou a chorar quando viu a taberna e o seu bar predileto [...] Depois da morte de Halim, a casa começou a desmoronar. (HATOUM, 2000, p. 211; 220)

Havia um ar de prosperidade em toda parte, um vertiginoso crescimento. Abriam-se ruas para o lado do mar e dos morros, nasciam jardins e praças, construíam-se casas, sobrados, palacetes. Os aluguéis subiam, no centro comercial atingiam preços absurdos. Bancos do sul abriam agências, o Banco do Brasil edificara prédio novo, de quatro andares, uma beleza. A cidade ia perdendo, a cada dia, aquele ar de acampamento guerreiro que a caracterizava [...] Seu tema foi a civilização e progresso. Pela primeira vez, na história de Ilhéus, um coronel do cacau viu-se condenado à prisão por haver assassinado esposa adúltera e seu amante. (AMADO, 1979 1, p. 20-21; 358)

Elaborada a partir da modalidade literária regionalista, marcada pela perspectiva histórica e pelo amplo povoamento e centralidade dos personagens árabes, a narrativa de Hatoum também adotaria a visão social em seu recorte identitário, num processo interacionista, que Tânia Pellegrini chamaria de transculturalismo, num evidente apoio à denominação criada por Angel Rama:

Nos textos em questão [Dois irmãos e Relato de um certo Oriente], a busca da identidade corresponde à histórica busca da expressão nacional que sempre orientou a ficção brasileira, pois, além da experiência compartilhada da desigualdade – mais que o essencialismo desta ou daquela identidade –, elabora-se sobre uma dupla comprovação: de um lado registra que a cultura presente na comunidade manauara, em permanente mutação, compõe-se de valores particulares, historicamente elaborados; são os elementos indígenas, os mestiços e os resultantes dos vários fluxos migratórios; de outro, corrobora a energia criadora que move essa cultura, fazendo-a muito mais que um simples conjunto de normas, comportamentos, crenças, culinária e objetos, pois trata-se de uma força que atua com desenvoltura, criando nexos profundos e originais no interior das narrativas. Tem-se, pois, o que Rama chama transculturação. (PELLEGRINI, 2007, p. 108 – grifos da autora)

Nesse caminho, Tânia Pellegrini terminaria por descartar a perspectiva multiculturalista como ângulo de orientação da narrativa de Hatoum, vendo em suas apreensões identitárias, certo comprometimento com as perspectivas ideológicas do mercado capitalista, conforme pondera a seguir:

Não por acaso, portanto, o que emana do discurso com mais contundência é o sentido da busca de identidade; manauara, brasileira, libanesa ou tudo isso ao mesmo tempo, expressa sobretudo na figura do narrador. Não se trata aqui de uma relação com a que se tem denominado multiculturalismo; este, na verdade, parece expressar o desejo e a possibilidade de integração de setores de grupos social e economicamente subalternos ao mercado do capitalista, por meio de uma representação apenas formal das identidades, que se dão a conhecer como uma mercadoria entre outras. (PELLEGRINI, 2007, p. 108 – grifos da autora)

De acentuado tom oral, a narrativa de Milton Hatoum caracteriza pela mistura simultânea de vários sons, democraticamente elaborada, numa visível polifonia em que os tons regionais se conjugam com as vozes estrangeiras, num manifesto burburinho de vozes que a aproxima da prosa de Amado. Nesse plurilinguismo, à língua árabe, algaravias do desejo, como recita Halim, caberia o papel discursivo da mediação amorosa entre Halim e Zana; entre Nacib e Gabriela; é língua de amor nas duas narrativas que sabemos funcionar também como resistência à integração:

Ela [Zana] leu os versos e entregou o envelope ao pai, dizendo-lhe: “Aquele mascateiro esqueceu esse papel na mesa dele” [...] Riu soluçando, engasgada, dizendo que tinha pensado em jogar fora aquela folha de papel, mas a curiosidade foi maior que a apatia, maior que o desdém e a indiferença. Ainda bem que leu: como teria sido a vida dela sem aquelas palavras? Os sons, o ritmo, as rimas dos gazais. E tudo o que nasce dessa mistura: as imagens, as visões, o encantamento, Jade e eternidade, alcova e amorosa, aroma e esperança. Ela espremia os lábios, recitava, curvando-se sobre o marido morto. (HATOUM, 2000, p. 220)

Gabriela o puxou para si, mergulhando-o nos seios. Nacib murmurou: Bié... E em sua língua de amor, que era o árabe, lhe disse a tomá-la: “De hoje em diante és Bié e essa é a tua cama, aqui dormirás. Cozinheira não és apesar de cozinhares. És a mulher desta casa, o raio de sol, a luz do luar, o canto dos pássaros. Te chamas Bié... – Bié é nome de gringa? Me chame Bié, fale
mais nessa língua... gosto de ouvir [..] Bié, gostava do nome. (AMADO, 1979 1, p. 202-203)

Perpassadas pelos mais variados idílios amorosos, as narrativas de Amado e de Hatoum privilegiam a temática amorosa, envolta numa acentuada sensualidade, que caracteriza o pendor amoroso dos protagonistas, igualmente representados como românticos, pelos seus narradores:

Coração romântico, as histórias terríveis que ele contava nada significavam. Nem o revólver que conduzia no cinto como todo homem em Ilhéus, naquele tempo. Hábitos da terra [...] Ia ao cabaré com Nhô-Galo, dormia com Mara, com outras também. Com Gabriela: todas as vezes que não tinha mulher e chegava em casa sem cansaço e sem sono. Mais com ela, talvez, do que com as outras. Porque nenhuma se lhe comparava, tão fogosa e úmida, tão louca na cama, tão doce no amor, tão nascida para aquilo. Chão onde estava plantado. Adormecia Nacib com a perna passada sobre sua anca redonda. (AMADO, 1979 1, p. 355)

Um romântico tardio, um tanto deslocado ou anacrônico, alheio às aparências poderosas que o ouro e o roubo propiciam. Talvez pudesse ter sido poeta, um flâneur da província; não passou de um modesto negociante possuído de fervor passional [...] Mas era um demônio na cama e na rede. Ele me contou cenas de amor com a maior naturalidade, a voz pastosa, pausada, a expressão libidinosa no rosto estriado, molhado de suor, molhado pelas lembranças das noites, tardes e manhãs em que os dois se enrolavam na rede, o leito preferido do amor, ali onde os poderes de Zana se desmanchavam em melopeia de gozo e riso. “Algaravias do desejo”, repetia Halim, citando as palavras de Abbas. Com o tempo, ela acabou por se acostumar com os dois corpos acasalados, escandalosos, que não tinham hora nem lugar para o encontro. Nas manhãs de domingo Zana resistia aos galanteios de Halim e corria para a igreja Nossa Senhora dos Remédios. Mas ao regressar a casa, com a alma pura e o gosto da hóstia no céu da boca, Halim a erguia na soleira da porta e subia a escada carregando-a no colo. E, enquanto subia, deixava as alpercatas e o roupão nos degraus, e mais os sapatos, as meias, as anáguas e o vestido dela, de modo que entravam quase nus na alcova aromada por orquídeas brancas. “Por Deus, nunca pude levar a sério o comércio”, disse ele, num tom de falso lamento. “Não tinha tempo nem cabeça para isso. Sei que fui displicente nos negócios, mas é que exagerava nas coisas do amor.” (HATOUM, 2000, p. 52-54; 65)

_____________________
continua, final…

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Machado de Assis (Teoria do Medalhão)

DIÁLOGO

— Estás com sono?

— Não, senhor.

— Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?

— Onze.

— Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta,  chegaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros...

— Papai...

— Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos vinte e um anos. Mas, qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.

— Sim, senhor.

— Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade.

— Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá?

— Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e cinco anos possas entrar francamente no regime do aprumo e do compasso. O sábio que disse: “a gravidade é um mistério do corpo”, definiu a compostura do medalhão. Não confundas essa gravidade com aquela outra que, embora resida no aspecto, é um puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo, tão-somente do corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida. Quanto à idade de quarenta e cinco anos...

— É verdade, por que quarenta e cinco anos?

— Não é, como podes supor, um limite arbitrário, filho do puro capricho; é a data normal do fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta e cinco e cinquenta anos, conquanto alguns exemplos se deem entre os cinquenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Há os também de quarenta anos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia, vulgares. Não falo dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio.

— Entendo.

— Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da plateia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as ideias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.

— Mas quem lhe diz que eu...

— Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloquente, eis aí uma esperança. No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas ideias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As ideias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofremos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.

— Creio que assim seja; mas um tal obstáculo é invencível.

— Não é; há um meio; é lançar mão de um regime debilitante, ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos, etc. O voltarete, o dominó e o whist são remédios aprovados. O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao silêncio, que é a forma mais acentuada da circunspecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação e da ginástica, embora elas façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo que o fazem repousar, restituem-lhe as forças e a atividade perdidas. O bilhar é excelente.

— Como assim, se também é um exercício corporal?

— Não digo que não, mas há coisas em que a observação desmente a teoria. Se te aconselho excepcionalmente o bilhar é porque as estatísticas mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos habituados do taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas, mormente nas de recreio e parada, é utilíssimo, com a condição de não andares desacompanhado, porque a solidão é oficina de ideias, e o espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade.

— Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e disposto a ir comigo?

— Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas escancaradamente. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer coisa, quando não prefiras interrogar diretamente os leitores habituais das belas crônicas de Mazade; 75 por cento desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente saudável. Com este regime, durante oito, dez, dezoito meses — suponhamos dois anos — reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele está subentendido no uso das ideias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim...

— Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo, de quando em quando...

— Podes; podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das Danaides, as asas de Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas empregam sem revés, quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant, consules é um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum. Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não te aconselho esse artifício; seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Não as relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto, o mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o pensado. Quanto à utilidade de um tal sistema, basta figurar uma hipótese. Faz-se uma lei, executa-se, não produz efeito, subsiste o mal. Eis aí uma questão que pode aguçar as curiosidades vadias, dar ensejo a um inquérito pedantesco, a uma coleta fastidiosa de documentos e observações, análise das causas prováveis, causas certas, causas possíveis, um estudo infinito das aptidões do sujeito reformado, da natureza do mal, da manipulação do remédio, das circunstâncias da aplicação; matéria, enfim, para todo um andaime de palavras, conceitos, e desvarios. Tu poupas aos teus semelhantes todo esse imenso aranzel, tu dizes simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes!

— E esta frase sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais depressa o problema, entra pelos espíritos como um jorro súbito de sol.

— Vejo por aí que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de processos modernos.

— Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo a denominação. O mesmo direi de toda a recente terminologia científica; deves decorá-la. Conquanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa atitude de deus Término, e as ciências sejam obra do movimento humano, como tens de ser medalhão mais tarde, convém tomar as armas do teu tempo. E de duas uma: — ou elas estarão usadas e divulgadas daqui a trinta anos, ou conservar-se-ão novas: no primeiro caso, pertencem-te de foro próprio; no segundo, podes ter a coquetice de as trazer, para mostrar que também és pintor. De oitiva, com o tempo, irás sabendo a que leis, casos e fenômenos responde toda essa terminologia; porque o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inocular ideias novas, e é radicalmente falso. Acresce que no dia em que viesses a assenhorear-te do espírito daquelas leis e fórmulas, serias provavelmente levado a empregá-las com um tal ou qual comedimento, como a costureira — esperta e afreguesada — que, segundo um poeta clássico, Quanto mais pano tem, mais poupa o corte, Menos monte alardeia de retalhos; e este fenômeno, tratando-se de um medalhão, é que não seria científico.

— Upa! que a profissão é difícil!

— E ainda não chegamos ao cabo.

— Vamos a ele.

— Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves conquistar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Que D. Quixote solicite os favores dela mediante ações heroicas ou custosas é um sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra política. Longe de inventar um Tratado científico da criação dos carneiros, compra um carneiro e o dá aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo. Comissões ou delegações para felicitar um agraciado, um benemérito, um forasteiro, têm singulares merecimentos, e assim as irmandades e associações diversas, sejam mitológicas, cinegéticas ou coreográficas. Os sucessos de certa ordem, embora de pouca monta, podem ser trazidos a lume, contanto que ponham em relevo a tua pessoa. Explico-me. Se caíres de um carro, sem outro dano, além do susto, é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro às afeições gerais. Percebeste?

— Percebi.

— Essa é publicidade constante, barata, fácil, de todos os dias; mas há outra. Qualquer que seja a teoria das artes, é fora de dúvida que o sentimento da família, a amizade pessoal e a estima pública instigam à reprodução das feições de um homem amado ou benemérito. Nada obsta a que sejas objeto de uma tal distinção, principalmente se a sagacidade dos amigos não achar em ti repugnância. Em semelhante caso, não só as regras da mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato ou o busto, como seria descabido impedir que os amigos o expusessem em qualquer casa pública. Dessa maneira o nome fica ligado à pessoa; os que houverem lido o teu recente discurso (suponhamos) na sessão inaugural da União dos Cabeleireiros, reconhecerão na compostura das feições o autor dessa obra grave, em que a “alavanca do progresso” e o “suor do trabalho” vencem as “fauces hiantes” da miséria. No caso de que uma comissão te leve à casa o retrato, deves agradecer-lhe o obséquio com um discurso cheio de gratidão e um copo d'água: é uso antigo, razoável e honesto. Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se for possível, uma ou duas pessoas de representação. Mais. Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo que possas, decentemente, recusar um lugar à mesa aos reporteres dos jornais. Em todo o caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes ajudá-los de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa; e, dado que por um tal ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mão anexar ao teu nome os qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algum amigo ou parente.

— Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada fácil.

— Nem eu te digo outra coisa. É difícil, come tempo, muito tempo, leva anos, paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra prometida! Os que lá não penetram, os engole a obscuridade. Mas os que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos desadjetivados, e tu serás o adjetivo dessas orações opacas, o aroma das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios. E ser isso é o principal, porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é
o naturalismo do vocabulário.

— E parece-lhe que todo esse ofício é apenas um sobressalente para os deficits da vida?

— Decerto; não fica excluída nenhuma outra atividade.

— Nem política?

— Nem política. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma ideia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhes somente a utilidade do scibboleth bíblico.

— Se for ao parlamento, posso ocupar a tribuna?

— Podes e deves; é um modo de convocar a atenção pública. Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: — ou os negócios miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a metafísica; — é mais fácil e mais atraente. Supõe que deseja saber por que motivo a 7ª Companhia de infantaria foi transferida de Uruguaiana para Canguçu; serás ouvido tão-somente pelo ministro da Guerra, que te explicará em dez minutos as razões desse ato. Não assim a metafísica. Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória. Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade.

— Farei o que puder. Nenhuma imaginação?

— Nenhuma; antes fazes correr o boato de que um tal dom é ínfimo.

— Nenhuma filosofia?

— Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. “Filosofia da história”, por exemplo, é uma locução que deves empregar com frequência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc.

— Também ao riso?

— Como ao riso?

— Ficar sério, muito sério...

— Conforme. Tens um gênio folgazão, prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez. Medalhão não quer dizer melancólico. Um grave pode ter seus momentos de expansão alegre. Somente — e este ponto é melindroso...

— Diga.

— Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos céticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem exageros, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto?

— Meia-noite.

— Meia-noite? Entras nos teus vinte e dois anos, meu peralta; estás definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de Machiavelli. Vamos dormir.

Fonte: GLEDSON, John (seleção). 50 contos de Machado de Assis. Ed. Cia. das Letras.