Lançando mão das lembranças do vivido e da tradição literária, Milton Hatoum iniciaria sua trajetória de romancista, elegendo como ambiente privilegiado o norte do Brasil, mais especificamente Manaus, onde se verifica, em meio à profusão de traços indígenas, um expressivo contingente populacional de imigrantes árabes, mais especificamente, de origem sírio-libanesa.
Apreendida, literariamente, através de três grandes momentos históricos de importância no Brasil, a obra de Hatoum se voltaria para a Manaus dos anos da Segunda Guerra Mundial, marcada pela penúria e pela fome; para a Manaus dos anos Cinqüenta, caracterizada pelo alheamento à euforia do progresso e, finalmente, para a Manaus dos anos Sessenta/Setenta, duplamente penalizada, às voltas com o temporal político dos anos ditatoriais que nos infelicitou e com a tempestade econômica que transfigura a cidade, irreconciliando-a com o seu passado, conforme se afere da contraposição de Halim e do lamento, assombrado e triste de Nael, o narrador de Dois irmãos:
O pai reclamava que a cidade estava inundada, que havia correria e confusão no centro, que a Cidade Flutuante estava cercada por militares [...] “Eles estão por toda parte”, disse abraçando o filho. “Até nas árvores dos terrenos baldios a gente vê uma penca de soldados...” “É que os terrenos do centro pedem para ser comprados”, sorriu Yaqub. “Manaus está pronta para crescer.” Halim enxugou o rosto, olhou nos olhos do filho e disse sem entusiasmo: – “Eu peço outra coisa, Yaqub... Já cresci tudo o que tinha de crescer...”. (HATOUM, 2000, p. 196)
Eu acabara de dar a minha primeira aula no liceu onde havia estudado e vim a pé para cá, sob a chuva, observando as valetas que dragavam o lixo, os leprosos amontoados, encolhidos debaixo dos outizeiros. Olhava com assombro e tristeza a cidade que se mutilava e crescia ao mesmo tempo, afastada do porto e do rio, irreconciliável com o seu passado. (HATOUM, 2000, p. 264)
Ao se debruçar sobre esse último momento histórico, Milton Hatoum expressa uma enorme discordância com a ideologia do progresso, representada, recorrentemente, pelos traços da perda, da desordem, do constrangimento, responsável pela presença volumosa e incômoda de “estrangeiros” e de imigrantes interioranos, pela azáfama que se instaura em Manaus, desfigurando-a e descaracterizando-a, como afirmam Omar, o Caçula, e Nael, este ao explicar a que se devia a presença do indiano Rochiram, denominado, tanto por Zana, quanto por Domingas, de estrangeiro:
O Caçula acordava, ela ouvia as histórias dele. O Café Mocambo fechara, a praça das Acácias estava virando um bazar. Sozinho à mesa, ele ia contando suas andanças pela cidade. A novidade mais triste de todas: o Verônica, lupanar lilás, também fora fechado. “Manaus está cheia de estrangeiros, mama. Indianos, coreanos, chineses... O centro virou um formigueiro de
gente do interior... Tudo está mudando em Manaus.” (HATOUM, 2000, p. 223)
Ouvira dizer que Manaus crescia muito, com suas indústrias e seu comércio. Viu a cidade agitada, os painéis luminosos com letreiros em inglês, chinês e japonês. Percebeu que sua intuição não falhara. Quando Zana não compreendia a algaravia de Rochiram, ela perguntava ao filho: ‘O que esse estrangeiro está querendo dizer?” [...] Domingas não se sentia à vontade com aquele estrangeiro, mais estranho do que todos nós juntos. Ela me dizia. (HATOUM, 2000, p. 226-227)
Nesse sentido, a narrativa de Milton Hatoum se afasta do discurso romanesco de Jorge Amado, não obstante a temática comum – a aclimatação árabe em solo nacional – que os aproxima. A perspectiva ideológica amadiana, de civilização e progresso, que alimenta Gabriela, cravo e canela é, em Milton Hatoum, explicitamente problematizada, recusada por seus vários personagens. A esse afastamento do projeto ideológico amadiano se somaria também a recusa e o distanciamento da perspectiva literária adotada pelo escritor baiano, no caso o Naturalismo, como já foi referido em passagem anterior.
O afastamento ideológico da obra de Jorge Amado conduziria Milton Hatoum à aproximação com Graciliano Ramos. Este, em meio às variadas elaborações modernistas, otimistas e ansiosas de progresso, se constitui como um fato isolado, como ressalta Silviano Santiago, ao proceder a um balanço inicial sobre o nosso Modernismo:
Eu acho que é porque Graciliano Ramos, de todos os autores modernistas, foi o único que não esteve comprometido com o projeto de modernização do Brasil. Acho que a impiedade do balanço vai ser em demonstrar que todos estavam, mais ou menos, comprometidos com o projeto de modernização do Brasil, todos tinham uma mente desenvolvimentista, em todos a necessidade de atualização era capital e todos queriam fazer com que o Brasil entrasse na História, e numa História que seria pura industrialização. (SANTIAGO, 1987, p. 422-423)
As afinidades pontuadas entre Milton Hatoum e Graciliano Ramos se devem, essencialmente, ao fato do escritor manauara, a exemplo do romancista nordestino, construir, através do apuro e do rigor da técnica narrativa, a sua novelística. Esse cuidado com a técnica narrativa, que tem no contexto regionalista de Trinta, em Graciliano Ramos o seu precursor, se matiza após esse período, propiciando o aparecimento de Guimarães Rosa. Para Antonio Cândido, o criador de Diadorim seria tributário dessas obras de refinamento do Regionalismo, às quais denomina de super-regionalismo.
Levando em consideração as observações de Antonio Cândido sobre a trajetória do regionalismo no Brasil e na América Latina, como também as reflexões de Tânia Pellegrini sobre o regionalismo de Milton Hatoum, acreditamos que o autor de Dois irmãos pode ser incluído na linhagem desse super-regionalismo que, como acentua Cândido, ao estilizar o regional, alcança a universalidade:
O que vemos agora, sob este aspecto, é uma florada novelística marcada pelo refinamento técnico, graças ao qual as regiões se transfiguram e os seus contornos humanos se subvertem, levando os traços antes pitorescos a se descarnarem e a adquirirem universalidade. Descartando o sentimentalismo e a retórica; nutrida de elementos não-realistas, como o absurdo, a magia das situações; ou de técnicas antinaturalistas, como o monólogo interior, a visão simultânea, o escorço, a elipse – ela implica não obstante em aproveitamento do que antes era a própria substância do nativismo, do exotismo e do documentário social. Isto levaria a propor a distinção de uma terceira fase, que se poderia (pensando em surrealismo, ou super-realismo) chamar de super-regionalista [...] Desse super-regionalismo é tributária, no Brasil, a obra revolucionária de Guimarães Rosa, solidamente plantada no que poderia chamar de a universalidade da região. E o fato de estarem ultrapassados o pitoresco e o documentário não torna menos viva a presença da região em obras como as de Juan Rulfo. (CÂNDIDO, 1987, p. 161-162 – grifos do autor)
Esse regionalismo revisitado de Hatoum consiste, portanto, numa mescla de elementos que brotam de todos os matizes de uma matéria dada por uma região específica, com outros advindos de matrizes narrativas de inspiração européia e urbana, formadoras da nossa literatura, tudo filtrado por um olhar que contém horizontes perdidos num certo Oriente e num outro tempo. Com isso o autor revitaliza o gênero, num momento da história da ficção brasileira em que ele parecia aos poucos estar se esgotando. Talvez essa seja a chave para entender a repercussão que a ficção de Hatoum encontrou: dentro da estrutura geral da sociedade brasileira, o seu regionalismo ainda tem o papel de acentuar as particularidades culturais que se forjaram nas áreas internas, contribuindo para definir sua autoridade, ao mesmo tempo que as reinsere no seio da cultura nacional como um todo, por meio de sua temática universal. (PELLEGRINI, 2007, p. 107-108 – grifos da autora)
Não obstante a nova inflexão que empresta ao romance regional, da catalisação dos diversos elementos que compunham essa modalidade estética e da expressa diferença entre a sua perspectiva literária e a de Jorge Amado, Milton Hatoum ora se avizinharia, ora se afastaria do escritor grapiúna, precursor, entre nós, da sistêmica e larga frequentação árabe no romance brasileiro, que regressaria à nossa literatura através de Hatoum. Como Jorge Amado que projeta, em 1948, a história de Ilhéus na literatura, Hatoum também alinharia o percurso histórico de Manaus, em sua obra, no alvorecer desse milênio. Sem a premissa básica de Jorge Amado de escrever para o povo, Milton Hatoum, a exemplo de Amado, também marcaria sua narrativa pela pluralidade linguística, pela formidável multiplicidade de vozes, constituindo-se como uma verdadeira polifonia que contempla os coloquialismos regionais e assegura o tom de oralidade das obras, enquanto garante a presença dos mais variados tipos étnico-sociais, historicamente silenciados, conforme se observa na apreciação de Stefania Chiarelli, ao analisar a primeira obra de Hatoum.
No romance de Hatoum, muitas falas historicamente silenciadas serão articuladas: faz-se presente, na narração, a união dos retalhos de diferentes memórias, espécie de tapete persa tecido por vozes indígenas, amazônicas, árabes, brasileiras. Estão presentes terapias da fauna amazônica, trechos d’As mil e uma noites, lembranças de rituais indígenas, passagens do Alcorão, orações em nheengatu. (CHIARELLI, 2007, p. 39)
Aos coloquialismos regionais se juntam, nas obras estudadas, à notória presença de outros signos literários da literatura universal e local. Em Jorge Amado, Zola, Aluísio Azevedo e às alusões à literatura indianista. Em Hatoum, As mil e umas noites, tessituras ocidentais e, também, a mesma vaga referência aos textos nativistas, como se vê na menção de Halim ao poema indianista, “Leito de folhas verdes”, de Gonçalves Dias, quando recorda, em conversa com Nael, os bons e velhos tempos de amor com Zana, antes da chegada dos filhos:
“Ali mesmo, debaixo da seringueira” apontou com o indicador da mão enrugada, mas firme: “Era o nosso leito de folhas. Dava uma coceira danada, porque aquele canto do mato era cheio de urtigas. Foi assim até o nascimento dos gêmeos”. (HATOUM, 2000, p. 69)
Narrativas de nação, as obras Gabriela, cravo e canela e Dois irmãos entranham às suas letras uma profusão de gostos e sabores que, aliados à multiplicidade linguística, reforça, na obra de Amado, e reencena, na obra de Hatoum, um dos princípios mais caros aos romancistas do Nordeste, o da ruptura da oposição entre os traços culturais do interior brasileiro e os padrões culturais do litoral, estes subtendidos como “civilizados”, como se apreende da leitura de Cândido:
Talvez se possa dizer que os romancistas da geração de Trinta, de certo modo, inauguraram o romance brasileiro, porque tentaram resolver a grande contradição que caracteriza a nossa cultura, a saber, a oposição entre as estruturas civilizadas do litoral e as camadas humanas que povoam o interior – entendendo-se por litoral e interior menos as regiões geograficamente correspondentes do que os tipos de existência, os padrões de cultura comumente subtendidos em tais designações [...] Ora, precedendo a obra de políticos, dos economistas, dos educadores, a literatura, a seu modo, colocou primeiro e encaminhou em seguida a solução do problema. (CÂNDIDO, 1992, p. 45)
Reconhecendo que as diferenças, de ambiente histórico, de contexto escritural e de perspectiva literária, verificadas entre Jorge Amado e Milton Hatoum, não abolem traços pontuais de convergência entre os dois autores, procedemos, no momento a seguir, um cotejo entre as configurações árabes de Gabriela, cravo e canela e as Dois irmãos. Assim, fazendo–nos acompanhar com Nacib e Halim, adentraremos no universo árabe que povoa a obra de Jorge Amado e a de Milton Hatoum.
3.2 NACIB E HALIM: OS ÁRABES NO BRASIL
O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade [...] Na praça, há o murinho dos velhos que vêem a juventude passar, ele está sentado ao lado deles. Os desejos agora são recordações.
Ítalo Calvino
Levando em consideração a orientação histórica que norteia esse trabalho, faremos uma leitura das similaridades entre as representações árabes do escritor baiano e as do escritor nortista, respeitando a precedência histórico-literária de Jorge Amado, em sua escritura do protagonismo árabe. Assim, nos faremos acompanhar de Nacib e de Halim, caminho escolhido para adentrarmos no universo escritural de Amado e de Milton Hatoum.
Em 1958, surge, na literatura brasileira, o personagem árabe Nacib que dividiria o protagonismo da narrativa, Gabriela, cravo e canela, com a personagem que dá título à obra, representada ora como mulata, ora como sertaneja tangida pela seca, para o sul da Bahia, espaço esse, que seria representado em plena adversidade ao de onde migrara Gabriela para o seu encontro com Nacib. Desse encontro, se formaria o par amoroso central da narrativa amadiana, conquistando uma ampla simpatia dos inúmeros leitores de Jorge Amado:
Naquele ano de 1925, quando floresceu o idílio da mulata Gabriela e do árabe Nacib, a estação das chuvas tanto se prolongara além do normal e necessário que os fazendeiros, como um bando assustado, cruzavam-se na rua a perguntar uns aos outros, o medo no olhar e na voz: – Será que não vai parar? (AMADO, 1979 1, p. 15)
Precedido, na obra de Amado, de uma ampla galeria de retratos árabes, Nacib se constitui como o primeiro personagem árabe a desfrutar do protagonismo literário em nossas letras. Quarenta e dois anos depois, surge a obra Dois irmãos, de Milton Hatoum, na qual vamos encontrar o personagem Halim, desfrutante, como Nacib, do protagonismo literário. À maneira de Jorge Amado, Hatoum entrelaçaria à narração da trajetória de Halim, patriarca de uma família sírio-libanês-brasileira, o próprio percurso histórico da cidade de Manaus, aprendida em perspectiva antagônica, não obstante simétrica, da prosa de Jorge Amado. Se, em Hatoum, as transformações pelas quais passam Manaus são representadas pelos signos da contrariedade e da desolação, em Amado, Ilhéus se irreconcilia com o seu passado pela via da positividade:
Uma noite que ele escapara [Halim] logo depois da sesta eu o encontrei na beira do rio Negro. Estava ao lado do compadre Pocu, cercado de pescadores, peixeiros, barqueiros e mascateiros. Assistiam, atônitos, à demolição da Cidade Flutuante. Os moradores xingavam os demolidores, não queriam morar longe do pequeno porto, longe do rio. Halim balançava a cabeça, revoltado, vendo todas aquelas casinhas serem derrubadas. Erguia a bengala e soltava uns palavrões, gritava “Por que estão fazendo isso? Não vamos deixar, não vamos”, mas os policiais impediam a entrada no bairro. Ele ficou engasgado, e começou a chorar quando viu a taberna e o seu bar predileto [...] Depois da morte de Halim, a casa começou a desmoronar. (HATOUM, 2000, p. 211; 220)
Havia um ar de prosperidade em toda parte, um vertiginoso crescimento. Abriam-se ruas para o lado do mar e dos morros, nasciam jardins e praças, construíam-se casas, sobrados, palacetes. Os aluguéis subiam, no centro comercial atingiam preços absurdos. Bancos do sul abriam agências, o Banco do Brasil edificara prédio novo, de quatro andares, uma beleza. A cidade ia perdendo, a cada dia, aquele ar de acampamento guerreiro que a caracterizava [...] Seu tema foi a civilização e progresso. Pela primeira vez, na história de Ilhéus, um coronel do cacau viu-se condenado à prisão por haver assassinado esposa adúltera e seu amante. (AMADO, 1979 1, p. 20-21; 358)
Elaborada a partir da modalidade literária regionalista, marcada pela perspectiva histórica e pelo amplo povoamento e centralidade dos personagens árabes, a narrativa de Hatoum também adotaria a visão social em seu recorte identitário, num processo interacionista, que Tânia Pellegrini chamaria de transculturalismo, num evidente apoio à denominação criada por Angel Rama:
Nos textos em questão [Dois irmãos e Relato de um certo Oriente], a busca da identidade corresponde à histórica busca da expressão nacional que sempre orientou a ficção brasileira, pois, além da experiência compartilhada da desigualdade – mais que o essencialismo desta ou daquela identidade –, elabora-se sobre uma dupla comprovação: de um lado registra que a cultura presente na comunidade manauara, em permanente mutação, compõe-se de valores particulares, historicamente elaborados; são os elementos indígenas, os mestiços e os resultantes dos vários fluxos migratórios; de outro, corrobora a energia criadora que move essa cultura, fazendo-a muito mais que um simples conjunto de normas, comportamentos, crenças, culinária e objetos, pois trata-se de uma força que atua com desenvoltura, criando nexos profundos e originais no interior das narrativas. Tem-se, pois, o que Rama chama transculturação. (PELLEGRINI, 2007, p. 108 – grifos da autora)
Nesse caminho, Tânia Pellegrini terminaria por descartar a perspectiva multiculturalista como ângulo de orientação da narrativa de Hatoum, vendo em suas apreensões identitárias, certo comprometimento com as perspectivas ideológicas do mercado capitalista, conforme pondera a seguir:
Não por acaso, portanto, o que emana do discurso com mais contundência é o sentido da busca de identidade; manauara, brasileira, libanesa ou tudo isso ao mesmo tempo, expressa sobretudo na figura do narrador. Não se trata aqui de uma relação com a que se tem denominado multiculturalismo; este, na verdade, parece expressar o desejo e a possibilidade de integração de setores de grupos social e economicamente subalternos ao mercado do capitalista, por meio de uma representação apenas formal das identidades, que se dão a conhecer como uma mercadoria entre outras. (PELLEGRINI, 2007, p. 108 – grifos da autora)
De acentuado tom oral, a narrativa de Milton Hatoum caracteriza pela mistura simultânea de vários sons, democraticamente elaborada, numa visível polifonia em que os tons regionais se conjugam com as vozes estrangeiras, num manifesto burburinho de vozes que a aproxima da prosa de Amado. Nesse plurilinguismo, à língua árabe, algaravias do desejo, como recita Halim, caberia o papel discursivo da mediação amorosa entre Halim e Zana; entre Nacib e Gabriela; é língua de amor nas duas narrativas que sabemos funcionar também como resistência à integração:
Ela [Zana] leu os versos e entregou o envelope ao pai, dizendo-lhe: “Aquele mascateiro esqueceu esse papel na mesa dele” [...] Riu soluçando, engasgada, dizendo que tinha pensado em jogar fora aquela folha de papel, mas a curiosidade foi maior que a apatia, maior que o desdém e a indiferença. Ainda bem que leu: como teria sido a vida dela sem aquelas palavras? Os sons, o ritmo, as rimas dos gazais. E tudo o que nasce dessa mistura: as imagens, as visões, o encantamento, Jade e eternidade, alcova e amorosa, aroma e esperança. Ela espremia os lábios, recitava, curvando-se sobre o marido morto. (HATOUM, 2000, p. 220)
Gabriela o puxou para si, mergulhando-o nos seios. Nacib murmurou: Bié... E em sua língua de amor, que era o árabe, lhe disse a tomá-la: “De hoje em diante és Bié e essa é a tua cama, aqui dormirás. Cozinheira não és apesar de cozinhares. És a mulher desta casa, o raio de sol, a luz do luar, o canto dos pássaros. Te chamas Bié... – Bié é nome de gringa? Me chame Bié, fale
mais nessa língua... gosto de ouvir [..] Bié, gostava do nome. (AMADO, 1979 1, p. 202-203)
Perpassadas pelos mais variados idílios amorosos, as narrativas de Amado e de Hatoum privilegiam a temática amorosa, envolta numa acentuada sensualidade, que caracteriza o pendor amoroso dos protagonistas, igualmente representados como românticos, pelos seus narradores:
Coração romântico, as histórias terríveis que ele contava nada significavam. Nem o revólver que conduzia no cinto como todo homem em Ilhéus, naquele tempo. Hábitos da terra [...] Ia ao cabaré com Nhô-Galo, dormia com Mara, com outras também. Com Gabriela: todas as vezes que não tinha mulher e chegava em casa sem cansaço e sem sono. Mais com ela, talvez, do que com as outras. Porque nenhuma se lhe comparava, tão fogosa e úmida, tão louca na cama, tão doce no amor, tão nascida para aquilo. Chão onde estava plantado. Adormecia Nacib com a perna passada sobre sua anca redonda. (AMADO, 1979 1, p. 355)
Um romântico tardio, um tanto deslocado ou anacrônico, alheio às aparências poderosas que o ouro e o roubo propiciam. Talvez pudesse ter sido poeta, um flâneur da província; não passou de um modesto negociante possuído de fervor passional [...] Mas era um demônio na cama e na rede. Ele me contou cenas de amor com a maior naturalidade, a voz pastosa, pausada, a expressão libidinosa no rosto estriado, molhado de suor, molhado pelas lembranças das noites, tardes e manhãs em que os dois se enrolavam na rede, o leito preferido do amor, ali onde os poderes de Zana se desmanchavam em melopeia de gozo e riso. “Algaravias do desejo”, repetia Halim, citando as palavras de Abbas. Com o tempo, ela acabou por se acostumar com os dois corpos acasalados, escandalosos, que não tinham hora nem lugar para o encontro. Nas manhãs de domingo Zana resistia aos galanteios de Halim e corria para a igreja Nossa Senhora dos Remédios. Mas ao regressar a casa, com a alma pura e o gosto da hóstia no céu da boca, Halim a erguia na soleira da porta e subia a escada carregando-a no colo. E, enquanto subia, deixava as alpercatas e o roupão nos degraus, e mais os sapatos, as meias, as anáguas e o vestido dela, de modo que entravam quase nus na alcova aromada por orquídeas brancas. “Por Deus, nunca pude levar a sério o comércio”, disse ele, num tom de falso lamento. “Não tinha tempo nem cabeça para isso. Sei que fui displicente nos negócios, mas é que exagerava nas coisas do amor.” (HATOUM, 2000, p. 52-54; 65)
_____________________
continua, final…
Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008
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