quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Dina Salústio (A Oportunidade do Grito)

Quando cheguei, a conversa, que ia a meio foi interrompida para os cumprimentos e uma breve troca de elogios, porque nos amamos e, por isso, há sempre um tempinho para uma palavra carinhosa que, livre, voa de umas para as outras.

Elsa pareceu-me triste e ainda pensei que estivesse a fazer charme, já que o vestido que trazia ficava a matar com um rosto ligeiramente tocado pela tristeza ou... qualquer coisa parecida com um pingo de desgosto.

A outra mulher é dessas que ao olhá-las, naturalmente a palavra vencedora nos vem à cabeça. Não pela arrogância patenteada, mas porque a força inquieta que lhe escapa dos olhos, diz  muito da sua capacidade de derrubar tudo que seja obstáculo ao que deseja.

Elsa levava o cigarro à boca, com tanta ansiedade que por momentos me distraí, pensando em como um simples e insignificante cigarro pode marcar de maneira cruel a nossa fragilidade.

— Tens que largar essa maneira de estar, por de lado o marasmo que te envolve. Parece até que estás a pedir esmolas à vida — dizia a vencedora.

Eu estava furiosa por não ter chegado uma meia hora antes, e percebe-se.

— Arranja força, sacode o mau olhado ou seja que diabo for, mas vive — continuava, agora num tom tão alto que obrigava um ou outro passante a diminuir o passo.

Olhei para a Elsa esperando uma reação, que só chegou depois de uma possível análise interna da legitimidade da resposta:

— Mas se eu não faço mal a ninguém! Se eu nem tenho inimigos!

— Ah! Aí é que está — quase gritou a outra — tens que incomodar, mostrar que existes, perturbar, brigar com o mundo e contigo. Sobretudo contigo. É um treino que atrai bons fluidos. Os outros, vendo a coragem com que te desafias a ti mesma, respeitam-te e temem--te. Tens que dar umas trochadas, rapariga, porque quem não as dá, acaba simplesmente por as apanhar,

— Claro que não quero continuar neste vegetar e, para que saibas, luto, esforço-me, rezo, mas não adianta muito.

— Rezas? E como é que rezas? — grunhiu a outra, já no limite do que parecia a sua paciência.

— Rezo, peço a Deus...

— Pedes a Deus? Idiota! Tens é que discutir com Ele. Enfrenta-o como mulher. Mostra-lhe as tuas razões. Grita se for preciso. Ele é que te pôs aqui, não é? Pois que assuma a sua parte da responsabilidade. Enfrenta-o. Deus gosta de mulheres fortes — gritou.

De repente eu percebi que ela era uma mulher vencedora porque enfrentava com garra todas as situações, mesmo que a situação se chamasse Deus. Encostei-me a mim mesma gozando o prazer da descoberta.

Fonte:
SALÚSTIO, Dina. Mornas eram as noites. Instituto da Biblioteca Nacional, 2002.

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