quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Olivaldo Júnior (Dama da noite)

Para Marcel Barbosa*

Tinha nascido homem. Vaguinho, como era chamado na infância, virou Violetta quando jovem. Sim, era um homem que se travestia de mulher. Não era drag queen, era um travesti. Podia ser a Geni do Chico Buarque, a Neguinha do Caetano Veloso, ou qualquer outra em que se atire as pedras do preconceito, tão ferrenho ainda hoje. Não conheci o Vaguinho da várzea, dos campos de areia e de bola, das horas e horas de farra infantil. Na verdade, não conheço Vaguinho. Vaguinho é um mistério. Nem mesmo ele se conhece. Aliás, quem é que se conhece? Quem é que pode dizer com toda a certeza do mundo o que é? Ninguém, ninguém pode. Pode-se dizer que vejo Vaguinho passar, dia após dia, rumo ao trabalho. É servente, ajudante, num asilo de velhos. Trata-os com todo o amor que as famílias de origem lhes negam. Os vovôs e as vovós não sabem que, quando sai, Vaguinho, sim, vira a dama da noite.

Ao chegar a casa, toma um banho, e, traço a traço, tinta a tinta, peça a peça, Violetta, sufocada o dia todo, vem à tona, volta ao mar. Não quer dos marinheiros uma noite. Quer a noite azul-marinho nos lábios, na pele, nos olhos que choraram pela surra que o pai lhe deu quando o pegou travestido na rua e o levou à polícia. E, em vez de servir de capacho para os presos, foi respeitado, ninguém tocou nele aquela noite. Sabiam que ele era trabalhador. Gostava de se vestir de mulher e sair sob a lua buscando seu sol, seu sonho de amor. Sonhar é para os fortes? Então ele era forte. Das pedras que lhe jogaram (perdoe-me pela frase feita) fizera um castelo, reduto dos sonhos que ele mesmo tecera com os fios da saudade que tinha... Do que mesmo que ele tinha saudade? Ah, do sorriso da mãe, que sorria gostoso, a risada sem som que inundava o Vaguinho menino, o Vaguinho sem susto das tardes da infância! Agora é noite.

Sozinho, não mora com ninguém, a não ser com o fantasma da mãe, que já se fora. Seu pai, quando o vê na rua, rosna feio para ele e maldiz sua pessoa. Soa mal em sua alma o quanto o pai detesta o filho, ele mesmo, por sinal. Sai da frente e vai-se embora, dobra esquinas que nunca dobrou, quando vê seu pai. Não quer que ele sinta vergonha de alguém que só quer mesmo ser a dama da noite, a estrela mais d'alva que já raiou. Porque Vaguinho, ou Violetta, não incomoda ninguém. Só quer ser alguém para ele mesmo, alguém que ele inventou e pôs o pé na realidade. Ah, o que é realidade, nesse mundo de "meu" Deus!... Não sei, sei apenas que Vaguinho já vem. De cima do salto, ouve um "Fora, viado!", "Olha o sem vergonha!", mas segue seu passo. Sonha com o colo que perdeu há muito tempo, e que, pelo andar da carruagem, chegará bem tarde. Chegará? Será que um dia ainda chegará? "Boa" noite.
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* Marcel Barbosa, psicólogo, me escreveu um e-mail respondendo a um texto que enviei a ele anteriormente com o miniconto O velhinho. A partir de sua resposta, o Dama da noite nasceu. Obrigado, Marcel.

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