do artigo "As guerras e os sonhos no africano Terra sonâmbula, de Mia Couto", de Vilto Reis
Mia Couto, um português que não é nosso, mas que também não é de Portugal, é o que logo se nota ao pegar nas mãos o livro Terra Sonâmbula, do escritor moçambicano Mia Couto. As palavras parecem pertencer a um outro local, que não poderia ser o urbano das cidades brasileiras ou portuguesas, nem mesmo o interior, é algo mais antigo e profundo, mas ao mesmo tempo atual, como se o autor tivesse achado no português uma forma de destilar a alma e as lendas africanas.
Com um pano de fundo que parece gritar na obra, um sentimento que mistura a agressividade da guerra à passividade do sono, Terra Sonâmbula é um livro errante, que contas duas histórias simultâneas. No primeiro plano se tem a história de Muidinga, um jovem que acompanha Tuahir até chegarem ao machimbombo, um autocarro completamente queimado, onde eles resolvem se abrigar, estão fugindo da guerra. Neste ínterim, surge a segunda linha narrativa, pois Muidinga encontra uns cadernos na mala que está ao lado de um homem morto. Como só ele sabe ler, passa então a fazer a leitura destes cadernos para seu companheiro de viagem, Tuahir.
“O jovem retira os caderninhos. Guarda-os por baixo de seu banco. Não pretende sacrificar aqueles papéis para iniciar o fogo. Fica sentado, alheio. No entanto, lá fora, tudo vai ficando noite. Reina um negro silvestre, cego. Muidinga olha o escuro e estremece. É um desses negros que nem os corvos comem. Parece todas as sombras desceram à terra. O medo passeia seus chifres no peito do menino que se deita, enroscado como um congolote. O machibombo se rende à quietude, tudo é silêncio taciturno”. (pg. 13)
Algo que chama a atenção em Muidinga é sua construção como personagem. Ele não recorda de seu passado, apenas que desde que se lembra, está se escondendo da guerra e viajando com Tuahir. Assim, quando começa a ler os cadernos de Kindzu, como são intitulados as folhas que estavam na mala do cadáver, o leitor se pergunta se não há ligações entre os dois, pois surge a seguinte frase: “Acendo a história, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.” (pg. 15).
Kindzu narra sua trajetória desde a partida de sua aldeia, após a morte do pai, a quem deixa de realizar um ritual que o perseguiria pelo resto da viagem, até o encontro com uma certa mulher chamada Farida. Sua saída da aldeia, na verdade, tem um objetivo: tornar-se um Napurama – espécie de guerreiro tribal vestido de penas, que luta contra a injustiça. Mas para isso, precisa lidar com o fantasma da lembrança paterna, com a culpa de ter abandonado a mãe que se diz grávida há anos e a ausência do irmão, Junhito, desaparecido após ter sido condenado a viver em meio às galinhas.
Se na linha de Muidinga, o leitor se depara com um realismo mágico (poder ser caracterizado assim); na de Kindzu, há um verdadeiro tom surreal, que apresenta uma série de lendas africanas.
Repare neste trecho, no qual é narrado um sonho de Kindzu, com atenção ao “quem sabe”, logo na primeira frase:
“Numa das seguintes noites, escuras de perder o próprio nariz, tive, quem sabe, um sonho. O mar parava, imovente. As ondas se aplanavam, seu rugido emudecia. Havia uma calma dessas que precederam o nascer do mundo. Então, súbito e inesperado, das profundezas emergiram os afogados. Vinham ao de cimo, borbulhavam em festa. Entre eles estava meu pai, idoso como não o tínhamos deixado. Chamou-me, saudou-me sem nenhum afecto”. (pg. 43).
O livro carrega, em todo ele, esta prosa poética (de um outro português) que caracteriza o estilo de Mia Couto. Muito embora, o enredo também não é por menos, pois o leitor sai surpreso com o final proposto pelo escritor moçambicano em Terra Sonâmbula.
As guerras e os sonhos
Há um fator de cunho social também na obra. No entanto, Mia Couto se mostra um escritor maduro, pois não usa sua obra como panfleto político. Apenas descreve seus personagens de forma coerente ao mundo em que vivem. E ainda assim, oferece ao leitor frases belíssimas, como esta do padre a Farida: “O mundo não tem nenhuma utilidade, disse ele. E concluiu: a felicidade só cabe no vazio da mão fechada. A felicidade é uma coisa que os poderosos criaram para ilusão dos mais pobres” (pg. 77).
Surge sempre uma espécie de dualidade, guerra-sonho, que acompanha a obra como um todo. E funciona como se uma fruta, da qual quanto mais Mia Couto espreme, mais trechos de verdades humanas aparecem. Reparem na conclusão de Kindzu após saber a história do homem que vê morto na estrada, com uma corda na mão:
“A morte, afinal, é uma corda que nos amarra as veias. O nó está lá desde que nascemos. O tempo vai esticando as pontas da corda, nos estancando pouco a pouco” (pg. 121).
Quem busca uma história de alto teor poético, e ainda vê na literatura uma oportunidade de utilizar sua imaginação, encontrará no livro Terra Sonâmbula, de Mia Couto, uma ótima leitura. Este aspecto de ser nosso idioma, mas ao mesmo tempo não ser, é uma experiência enriquecedora, como venho comentando na resenha inteira.
Fonte: Homo Literatus
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