quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte VIII

CAPÍTULO III

A REPRESENTAÇÃO ÁRABE EM MILTON HATOUM

Perdido no passado, sua memória rondava a tarde distante em que o vi recitar os gazais de Abbas. Era um preâmbulo, e Zana se excitava com aquela voz grave, cheia de melodia, que devia tocar a alma dela antes da loucura dos corpos.
Milton Hatoum

3.1 FICÇÃO E HISTÓRIA DE IMIGRANTES

Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento. Permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou.
Milton Hatoum

O tema da identidade nacional é, sabidamente, uma das grandes recorrências nas literaturas dos países colonizados nos inícios da modernidade, abertos, após suas independências políticas, a um intenso fluxo imigratório, como sucedeu nos países da América Latina e, evidentemente, no Brasil.

Constituindo-se como elemento privilegiado de nossa produção romanesca, dramática, poética e crítica, a discussão acerca de nossa identidade cultural seria iniciada pelos viajantes e colonizadores europeus que transformariam suas crônicas de viagem, em verdadeiros ensaios sobre a natureza brasileira no século XVI.

Não obstante o acentuado etnocentrismo com o qual esses cronistas vêem a cultura indígena, não lhes passaria despercebida a explícita diversidade cultural que povoa o Brasil desde os seus primórdios. Essa diversidade seria, num contínuo, atestada nos mais variados relatos europeus, através da invariável comparação entre os índios tupinambás, detentores da hegemonia cultural no Brasil do século XVI – antropófagos e poligâmicos – e os demais povos indígenas, muito deles monogâmicos e abstêmios da carne humana, que habitavam o solo brasileiro nesse período. Assim, os narradores europeus pontuavam, em suas inaugurais descrições sobre o caráter brasileiro, a marca da nossa diversidade cultural.

Parecendo fortalecer-se com o passar dos tempos, a tematização de nossa identidade cultural seria retomada, vigorosamente, pelos românticos, em especial pelos nacionalistas, que a enriqueceria com a vertente do regionalismo, numa explícita reafirmação de nossa pluralidade cultural. Nesse enriquecimento, inauguram, em nossas letras, um procedimento estético que antecipa as grandes obras regionalistas do chamado Romance de Trinta, como ressalta Antonio Cândido:

Vem a propósito dizer que o caso do Brasil é talvez peculiar, pois aqui o regionalismo inicial, que principia com o Romantismo, antes dos outros países, nunca produziu obras consideradas de primeiro plano [...] De tal modo que só a partir de mais ou menos de 1930, numa segunda fase que estamos tentando caracterizar, as tendências regionalistas, já sublimadas e como transfiguradas pelo realismo social, atingiram o nível das obras significativas. (CÂNDIDO, 1987, p. 161)

Não obstante o nível mediano das primeiras obras regionalistas, essa vertente da temática identitária, despojada da ideologia romântica de “país novo”, orientada pela consciência dilacerada de “país subdesenvolvido”, transformaria as obras modernistas do Regionalismo de Trinta em ícones da modernidade nordestina, como observa Heloísa Toller Gomes (2003, p. 643-653), voltada para as variadas nuanças do modernismo brasileiro, atenta aos seus diferentes caminhos e olhares, na reincidente busca de desvendamento de nossas feições culturais. Essa busca, responsável pela reinvenção de nossa tradição literária, seria efetuada tanto pela ousadia dos modernistas de São Paulo quanto pela circunspeção dos modernistas do Nordeste, num movimento de complementaridade, como aponta Heloísa Toller Gomes (2003, p. 646):

Na perspectiva de que a tradição auxilia a invenção literária, trataremos do texto romanesco de Milton Hatoum, Dois irmãos, procurando observar as maneiras com as quais esse escritor amazonense, filho de imigrantes libaneses, destribalizado e aculturado como os caboclos amazônicos, reatualiza a temática identitária em nosso país, entrelaçada, pela via da ficção e da memória cultural, ao drama dos descendentes dos indígenas brasileiros e ao dos imigrantes libaneses, igualmente distantes e sequiosos de suas origens, como se vê na narrativa, principalmente através das personagens, Nael, narrador da obra, filho de Domingas, índia destribalizada, desconhecedor de sua origem paterna, representação máxima do drama que nos gerou, e do libanês, Halim, que ignora a data do próprio nascimento, fato considerado na narrativa como sina de imigrante.

Dessa reatualização de nossa tradição, vem-nos a certeza de que, longe de esgotar-se ou arrefecer-se, o tema da identidade readquire, no início desse milênio, um novo e intenso vigor, conservando a sua capacidade de impulsionar a produção literária e a conseqüente produção crítica em nosso país, conforme se pode verificar, hoje, em toda a América Latina.

Filho de imigrantes libaneses, Milton Hatoum assinala a sua construção identitária do Brasil, através da reciprocidade cultural entre o mundo árabe e o mundo de Manaus, representado pelo elemento indígena, igualmente “emigrado” de sua aldeia, a exemplo da índia Domingas.

Sistemática e abundante, como se processa na obra do romancista nordestino, a presença árabe, em Milton Hatoum, também se transformaria num dos traços estruturantes mais importantes da produção romanesca de Hatoum, frequentando todas as suas narrativas, numa verdadeira multidão. Desses traços, entranhados e transformados no mundo manauara, reavivados pela memória, Hatoum criaria o seu Oriente em Manaus. 

Professor de Literatura Brasileira, contista, romancista e crítico literário, Milton Hatoum tem, desde sua estréia no universo romanesco em 1989, com a publicação do romance,  Relato de um certo Oriente, despertado a atenção e o reconhecimento de teóricos e críticos nacionais, como Davi Arrigucci Jr., Flora Süssekind, Leila Perrone-Moisés, entre outros importantes ensaístas brasileiros.

Leitor confesso de Graciliano Ramos, Milton Hatoum aproxima-se desse escritor pela reafirmação da literatura como ficção, pela explicitação do trabalho com a linguagem, pelo projeto estético comum. Como Hatoum, na atualidade, Graciliano Ramos configura sua obra através da ruptura com o sentimentalismo, com o empirismo social, com a transparência da linguagem, com o documentário social, pretensões que o Naturalismo pôs em circulação, na fase da consolidação de nossas letras. Nesse sentido, torna sua obra, na década de Trinta, numa faca amolada, como a denomina Flora Süssekind:

Não é apenas por contrapor sua série de romances à continuidade dos ciclos que Graciliano Ramos funciona como faca amolada, como corte no modelo romanesco dominante. Sua ameaça vai além da opção por uma obra mais cheia de rupturas que os ciclos de Jorge Amado e José Lins do Rego. Funciona como um corte crítico na própria estética naturalista. Quando explicita em seus romances o trabalho com a linguagem, Graciliano joga por terra a obsessão fotográfica e documental dominante no neonaturalismo de Trinta. Dominante tanto num Jorge Amado quanto num José Lins do Rego [...] Graciliano foge à regra. Opõe a série ao ciclo. Uma literatura que se afirma como ficção à obsessão fotográfico-documental do decênio de Trinta. Uma economia expressiva, uma linguagem contida à verbosidade, à abundância descritiva dos romancistas-modelo à época. (SÜSSEKIND, 1984, p. 170-172 – grifos da autora)

Contrariando as tendências naturalistas, rompendo com as velhas soluções nacionalistas do romantismo, descartando, em seu percurso ficcional, os tons pitorescos e exóticos na configuração de seu Brasil amazonense, ignorando, enfim, as soluções estéticas românticas, retardatárias e, ainda assim, insistentemente utilizadas na representação atual do Amazonas, em textos restritos à circulação local, o romancista Milton Hatoum – precedido por Márcio Souza, autor da obra, Galvez, imperador do Acre (1977) – parece querer preencher, pela via da excelência estética, a lacuna da literatura (erudita) em solo amazonense. Carência, essa, vivamente lamentada por Graciliano Ramos quando, no século passado, incumbido pela Casa do Estudante do Brasil a proceder a uma seleção das narrativas mais expressivas publicadas em nosso solo, no período compreendido entre a segunda metade do século XIX e o primeiro quartel do século XX, declararia consternado:

Ambicionávamos fazer uma espécie de exposição das mais expressivas histórias publicadas em um século, mas este projeto esbarrou com sérias dificuldades. Não nos foi possível recolher e estudar a produção do interior [...] Nada encontrei no Amazonas, em Mato-Grosso. Do resto do país vão novidades e velharias. (RAMOS, [s.d.], p. 16)

Como se procedesse a uma reparação do contexto literário amazonense, lamentado  pelo mestre alagoano, Milton Hatoum, num trajeto de negação e de afirmação de nossas tradições literárias, publica, num período de quinze anos, sua trilogia sobre o Brasil caboclo, alcançando uma enorme visibilidade, afirmando-se, assim, como um grande escritor contemporâneo, a ponto de conquistar para sua obra o Prêmio Jabuti de melhor romance em 1989, com a narrativa, Relato de um certo Oriente, o Prêmio Jabuti de melhor romance em 2000, com Dois irmãos e, em janeiro de 2006, o Prêmio Jabuti de melhor romance em 2005 e o Grande Prêmio da Crítica da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes – com o romance, Cinzas do Norte, publicado em outubro de 2005.

Além desses prêmios, a obra de Hatoum tem atraído o reconhecimento internacional, tanto nos países do Oriente Médio quanto nos Estados Unidos e na Europa, onde tem circulado em meio a um receptivo acolhimento. No Brasil, além dos críticos citados, vemos a obra de Hatoum tornar-se, cada vez mais, objeto de nossa ensaística, dos estudos acadêmicos, como demonstram as Monografias, as Dissertações de Mestrado, defendidas e aprovadas nos Programas de Pós-Graduação das Universidades Federais de Brasília, de Minas Gerais e da Universidade de Sorocaba, presentes em nossa bibliografia.

Não obstante a trilogia de Hatoum voltar-se, recorrentemente, para o mundo manauara em seu contato com a cultura árabe, elegemos a obra Dois irmãos (2000) no intuito de observar as maneiras e os gestos estéticos com os quais o romancista líbano-amazonense capta as transformações históricas e étnicas na antiga morada dos índios manaós, após os quinhentos anos de conquista e de colonização européia.

Nessa compreensão, nos voltaremos para o texto Dois irmãos numa perspectiva interdisciplinar, que nos possibilite a apreensão da Manaus de Milton Hatoum, antiga morada dos índios manaós; Porto de Lenha, para os imigrantes e viajantes ingleses; Vila da Barra, para os colonizadores portugueses e Terra de Ajuricaba, para os caboclos amazônicos.

Ao publicar Dois irmãos, seu segundo romance, voltado para o mundo dos imigrantes árabes, Milton Hatoum, valendo-se de sua prerrogativa autoral, se utilizaria de um curioso elemento paratextual, no qual previne seu leitor de que sua obra é tão somente produto da imaginação, um fato ficcional, portanto. Dessa forma, indica ao leitor o caráter de sua obra e, evidentemente, o modo como lê-la: como verdade ficcional, conforme se nota na página destinada às informações técnicas de composição do livro: Os personagens e situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opinião (HATOUM, 2000, p. 4).

Num desejo, simetricamente inverso às epigrafes e/ou notas dos autores naturalistas, a advertência de Milton Hatoum, além de apontar para a instigante vitalidade da discussão sobre a difícil relação entre Ficção e História, se constitui como um dado diferenciador entre a sua escritura e a dos romancistas naturalistas que, a exemplo de Jorge Amado e Aluísio Azevedo, insistem na perspectiva da honestidade, da verdade, mesmo com o sacrifício do literário, em acordo com o que já expusemos nesse trabalho.

Tematizando, como Jorge Amado, a presença do imigrante árabe, num contexto relativamente recente de nosso país, Milton Hatoum parece se preocupar com a possibilidade de sua ficção ser lida como verdade, como ícone de autenticidade do narrado. Nessa preocupação, tenta esvaziar, da leitura de sua obra, quaisquer analogias entre o que narra e o vivido ou experimentado. Assim, subtrai, na advertência, o importante papel que desfruta as memórias, no processo do fazer literário e no da sua própria ficção, como se constata da leitura de sua narrativa. Nessa subtração, Milton Hatoum parece antecipar-se, contraditoriamente, ao seu próprio narrador, que confere às reminiscências, às suas e às que colhe dos variados personagens, o caráter de indispensabilidade, em seu projeto escritural.

Concebendo, implicitamente, a sua narrativa como um jogo prazeroso de lembranças e esquecimentos, o narrador de Dois irmãos concebe as memórias como elementos privilegiados de reinvenção da realidade, do processo de ficcionalidade, portanto. Mas a memória inventa, mesmo quando quer ser fiel ao passado [...] Naquela época, tentei em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras verdadeiras [...] o jogo de lembranças e esquecimentos – me dava prazer. (HATOUM, 2000, p. 90; 244; 265)

Nesse exercício, Nael, o narrador de Dois irmãos, assinala a instável relação entre o Tempo e a Memória, caracterizada, dialeticamente, pelos princípios da corrosão (esquecimento) e o princípio da combustão (reavivamento). Assim, procede a uma implícita alusão ao elemento predominante nas memórias poéticas de Carlos Drummond de Andrade, o princípio da corrosão, traço considerado capital em sua memorialista, como assegura Luiz Costa Lima, ao analisar o poema drummondiano, “Destruição”, que Hatoum escolheu como epígrafe de sua obra:

Na verdade, este seu retrato de castelo solar apenas representa o lado da adesão afetiva, do apego ao que, cruel, era entretanto amado. Se esta fosse a inteireza recordada o poeta seria preso do saudosismo e assim não alcançaria o estado de poeta maior. Mas o solar não fora isento ao tempo; o tempo se introduz como cupim, lenta corrosão de seus alicerces e travejamentos de que só conhecemos o resultado [...] A corrosão é assim a figura central da poética drummondiana. Por ela tanto fala o poder que se carcome, quanto da dissolução que se processa. Ou seja, a corrosão abarca tanto a adesão afetiva ao espaço contra que o poeta se rebelara – sua culpa. (LIMA, 1981, p. 172)

Trazido à narrativa como epígrafe, o poema de Drummond não apenas sinaliza para a perspectiva de Hatoum acerca das memórias, como também para o princípio construtor, elemento comburente, de sua tessitura memorialista, como já apontara, noutra direção, Maria Zilda Ferreira Cury (2007, p. 84). Sorrateira e concomitantemente, indicia o seu processo narrativo centrado no segredo e no anúncio (PERRONE-MOISÉS, 2007, p. 110), no sugerido e no escamoteado e, muitas vezes, num silêncio que, embora sustente o interesse, confunde e desorienta o leitor. Entre nós, esse desejo de confundir o leitor está presente tanto nas memórias ficcionais de Machado de Assis, quanto nas memórias de Graciliano Ramos.

Para essa compreensão, concorrem o poema de Drummond, o exercício de metalinguagem do narrador e as próprias palavras de Milton Hatoum. Este, como afirma em entrevista concedida a Susana Scramim, publicada pela BABEL – revista de poesia, tradução e crítica, nutriu-se largamente da memória da família, dos amigos e conhecidos para a elaboração de seu Relato de um certo Oriente (1989), reconhecendo esse exercício, a exemplo de seu narrador, como elemento decisivo na composição de seu discurso romanesco, como se apreende do fragmento abaixo:

Quando comecei a escrever o Relato, a memória da família, dos amigos e conhecidos, toda a memória da infância foi decisiva [...] Foi um alívio saber que meus parentes não se reconheceram nas personagens do livro. Sei que alguns deles estão lá, mas mascarados, metamorfoseados. (HATOUM, 2000, p. 11)

Acreditamos que o recurso autoral, utilizado por Milton Hatoum, intenta, sim, o alívio que Graciliano Ramos não encontrou quando das publicações de seus discursos memorialistas, especialmente de Infância (1945), segundo testemunha o filho do escritor nordestino, Ricardo Ramos, em discurso certamente conhecido pelo autor de Dois irmãos. Testemunho esse que se refere ao processo escritural e à recepção das obras memorialistas de Graciliano Ramos:

Não sei até que ponto foi compreendido o processo de Graciliano memorialista. Sei que aqui e ali, com alguma freqüência, há pessoas que estranham a colocação de figuras do Memórias do cárcere ou do Infância, em particular quando elas são parentes do autor [...] Logo depois da publicação de Infância, chegaram a meu pai uns ecos magoados, claro que de parentes ou pessoas próximas. Ele se espantou, se irritou vendo que não o entendiam [...] E concluía: “eu tenho lá problema com ninguém? (RAMOS, 1987, p. 14-15)
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continua...

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008
Imagem: IBGE 

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