sábado, 4 de fevereiro de 2017

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte X, final

Representada como canal linguístico da emoção, como se verifica em Amado e Hatoum, a língua árabe, além de mediar o convívio amoroso entre os personagens, também desempenha o papel desencadeador das lembranças de si, o que Hall denomina de núcleo ou essência interior, embora em contínua formação e modificação com os mundos culturais “exteriores” (HALL, 2001, p. 11), como se vê sugerido nas narrativas:

E, por mais espantoso que pareça, naqueles dias vibrantes do comício, no maior deles, quando dr. Ezequiel bateu todos os seus recordes anteriores de cachaça e inspiração, Nacib pronunciou um discurso. Deu-lhe uma coisa por dentro, depois de ouvir Ezequiel. Não aguentou, pediu a palavra. Foi um sucesso sem precedentes, sobretudo porque, tendo começado em português e faltando-lhe as palavras bonitas, pescadas dificilmente na memória, ele terminou em árabe, num rolar de vocábulos sucedendo-se em impressionante rapidez. Os aplausos não findavam. – Foi o discurso mais sincero e mais inspirado de toda a campanha – classificou João Fulgêncio. (AMADO, 1979 1, p. 327)

Às vezes ele se esquecia e falava em árabe. Eu sorria, fazendo-lhe um gesto de incompreensão: “É bonito, mas não sei o que o senhor está dizendo”. Ele dava um tapinha na testa, murmurava: “É a velhice, a gente não escolhe a

língua na velhice. Mas tu podes aprender umas palavrinhas querido [...] Numa noite, o tal de Zunuri reapareceu, intruso e dissimulado. Ela o enxotou com o abanador do fogareiro, insultou-o nas duas línguas que falava. O gatuno alesado, o ladrão, harami! [...] Zana deu um passo na direção dele, perguntou por que dormira no sofá. Depois, menos trêmula, conseguiu iluminar seu corpo e ainda teve coragem de fazer mais uma pergunta: por que tinha chegado tão tarde? Então com o sotaque árabe, ajoelhada gritou o nome dele, já lhe tocando o rosto com as duas mãos. Halim não respondeu. Estava quieto como nunca. Calado, para sempre. (HATOUM, 2000, p. 51; 146; 213)

Em suas construções identitárias, os discursos de Jorge Amado e de Milton Hatoum, num sinestésico apelo aos sentidos, exalam cheiros, sugerem sabores, se apresentando como um mosaico alimentar, duplamente dirigido para o paladar de origem e para o paladar da terra adotada, num saboroso jogo de retorno e de permanência. Desse jogo, deriva mais uma afinidade entre os árabes Nacib e Halim:

A viagem de Filomena [...] impedia-o de voltar-se por inteiro para as múltiplas novidades, tanta coisa a comentar quando os amigos chegassem. Novidades a granel e na opinião de Nacib, nada mais gostoso – só mesmo comida e mulher [...] Ele gostava mesmo era de comer bem, bons pratos apimentados, beber sua cerveja geladinha, jogar uma apurada partida de gamão. (AMADO, 1979 1, p. 77; 116)

Mas ele foi aprendendo, soletrando, cantando as palavras, até que os sons dos nossos peixes, plantas e frutas, todo aquele tupi esquecido, não embolava mais na sua boca [...] Ele era assim: não tinha pressa para nada, nem para falar [...] esbanjava na comida, nos presentes para Zana, nas vontades dos filhos. Convidava os amigos para partidas de gamão, o taule, e era uma festa, noitadas de grande demora, cheias de comilança [...] Ele preparou e serviu o último almoço [...] Ele festejava a volta cozinhando acepipes amazônicos: o piracu seco com farofa, tortas de castanhas, coisas que levava do Amazonas [...] (HATOUM, 2000, p. 51-56)

Avizinhando-se da obra de Jorge Amado, tangenciando Gabriela, cravo e canela, curiosamente, o romance de Hatoum se achegaria a essa personagem, quando se debruça sobre o destino/sina do imigrante. Nessa ponderação, verbalizada por Halim, encontramos a mesma condição vivida pela imigrante do sertão:

Estava envelhecendo, o Halim: uns setenta e tantos, quase oitenta, nem ele sabia o dia e o ano do nascimento. Dizia: Nasci no fim do século passado, em algum dia de janeiro... “A vantagem é que vou envelhecendo sem saber minha idade: sina de imigrante”. (HATOUM, 2000, p. 151)

Eu me lembro que, quando você me anunciou o casamento, contou que ela não sabia o nome da família, nem data do nascimento... – Nada. Não sabia nada... – E Tonico se ofereceu para arranjar os papéis necessários. – Fabricou tudo no cartório dele. – E então? (AMADO, 1979 1, p. 311)

Em sua representação árabe no Brasil, observa-se que o romance Dois irmãos não apenas estabelece um diálogo com Gabriela, cravo e canela, como, também, adota soluções já utilizadas, em outras obras amadianas. Ao assinalar a fé árabe no sistema sagrado dos caboclos amazônicos, Hatoum o aproximaria de uma das recorrências das narrativas de Amado, a da fé e do respeito árabe, ao código religioso popular, especialmente de matizes originadas das etnias não-europeias, como se afere da passagem textual da narrativa, Suor, escrita em 1934, um dos primeiros romances de Jorge Amado:

A negra ficou sentada no degrau. O medo abriu-lhe os olhos. Seria pra ela? Não tinha inimigos, não roubara o marido de ninguém, estava velha demais para ser cobiçada. De qualquer maneiram não passaria sobre o despacho. [...] Toufik juntou-se à negra: – Bom dia, sinhá Maria. – Bom dia, meu branco. – Não vai descer? Ela esticou o dedo apontando o embrulho de papel de jornal. Toufik assobiou. – Um feitiço, puxa! Pra quem será? O árabe também acreditava. (AMADO, 1980, p. 68-69)

Halim nunca me falou da morte, senão uma única vez, com disfarce, triscando as beiradas do assunto. Falou quando já se sentia perto do fim, uns anos depois da história do filho com a Pau-Mulato. Ele não viu o pior, o descalabro. Não viu, mas era dado a apreciar presságios: as tantas antevisões que escutara dos caboclos companheiros dele, filhos da mata e da solidão. Tinha tendência a crer piamente nessas histórias, e se deixava embalar pela trama, pela magia das palavras. (HATOUM, 2000, p. 148)

Também não se pode esquecer do tom incestuoso que perpassa a relação entre mãe e filho árabe, no caso Zana e Omar, largamente insinuado na narrativa de Hatoum. Embora mais abrandado, leve indício do desejo filial, esse tom se faria presente, originalmente, na obra de Jorge Amado, mais precisamente em Suor:

Ficaram juntos, os braços dela enroscados no pescoço do Caçula, ambos entregues a uma cumplicidade que provocou ciúmes em Yaqub e inquietação em Halim [...] Ao contrário de Zana, ela conseguia disfarçar o ciúme que sentia do Caçula e ambas faziam tudo para reinar nas noites de festa [...] Beijou-a com ardor, e nesse momento Zana lagrimou, em parte por emoção, em parte porque o Caçula, depois do beijo, apresentava-lhe a namorada. Dessa vez ela não quis disfarçar: encarou com um sorriso dócil e um olhar de desprezo a mulher que jamais seria a esposa de seu filho, a rival derrotada de antemão. (HATOUM, 2000, p. 26; 98-98)

O calor da noite não o deixava dormir, excitava-o. Levantou-se e molhou a cabeça na pia de água do sótão. Cuspiu e voltou. Notou que a mãe estava com as coxas descobertas. Primeiro, horrorizou-se. Depois não pensou mais naquilo e se deitou junto da velha. Encostou-se nas pernas descobertas, como fazia diariamente, mas nessa noite quase não dormiu, roçando-se na mãe que roncava. (AMADO, 1980, p. 57)

Como se pode verificar, a importância da obra de Jorge Amado não se constitui apenas pelo recorte espacial do seu discurso romanesco, à produção de “postais da Bahia, como ainda a reduz, variadas visões críticas. Dento da concepção estética que escolheu, Jorge Amado se faz pioneiro de um modo de olhar o imigrante árabe que não cessa de se reatualizar, em nosso corpus literário. Parafraseando Lúcia Lippi Oliveira, acreditamos que o escritor nordestino, ultrapassando a perspectiva puramente regionalista, pode ser considerado como romancista e como intelectual que soube ler, literariamente, o seu país e o seu tempo, nos legando uma obra que ainda espera ser reconhecida.

CONCLUSÃO

JORGE AMADO E MILTON HATOUM: SIMETRIAS E ASSIMETRIAS

O pintor de costumes que não se ocupe da América não é incompleto, por enquanto. Mas daqui a cem anos – talvez cinquenta – ele certamente o será.
Henry James

Acostumados à visão de Antonio Cândido de que a nossa literatura se constitui como um sistema, abrigando em seu interior determinados comportamentos e soluções estéticas que se repetem ao longo de nosso fazer literário, nos voltamos para a representação árabe em nossa literatura, tentando apreender as formas com as quais os nossos literatos representam esse universo. Utilizando-nos da perspectiva histórica e comparada, dividimos este trabalho em três momentos.

No primeiro, buscamos, essencialmente, verificar a presença árabe em nossa literatura, através dos mais variados momentos literários, alcançando, inclusive, o contexto literário do mundo colonial. Para, então, chegarmos à conclusão de que a presença árabe se constitui num topoi, grandemente utilizado em nossa produção poética e narrativa. Verificamos, ainda, que à exceção do satírico Gregório de Matos, que representa o universo árabe em estreita ligação com o mundo indígena, os nossos poetas e romancistas representam o elemento árabe em pleno olhar de proximidade, auto-reconhecimento, como Manuel Bandeira, e solidariedade, como Machado de Assis.

Num segundo momento, procuramos observar a representação árabe na literatura brasileira, através de um enfoque mais restrito, o da temática identitária. Levando em consideração a ostensiva presença árabe na obra de Jorge Amado em meio às suas elaborações da identidade nacional, nos voltamos para a narrativa, Gabriela, cravo e canela, primeira obra romanesca brasileira a elevar o elemento árabe à personagem-protagonista. Nessa leitura, verificamos, com surpresa que, não obstante a crítica desfavorável que padece a obra amadiana em nosso meio, principalmente a obra analisada, Jorge Amado, em sua perspectiva naturalista, revisitaria alguns grandes autores do Brasil, de perspectiva diferenciada da sua, como o discurso dos romancistas românticos e o de Machado de Assis.

Por outro lado, observamos, ainda, que os procedimentos utilizados por Jorge Amado, em sua aproximação identitária árabe-brasileira, seriam, em larga medida, retomados por muitos dos nossos escritores, a exemplo de Milton Hatoum, cuja obra tangencia o romance amadiano, apesar do vácuo, de quase cinqüenta anos que as separa, da concepção artística e da visão memorialista que norteiam Milton Hatoum.

Terceiro momento de nosso trabalho, a leitura da obra Dois irmãos, de Milton Hatoum se daria em estreita comparação com o discurso amadiano, respeitando a precedência histórica e literária do escritor nordestino. Nessa leitura mais uma surpresa. Apesar das diferenças assinaladas entre os dois romancistas, do sucesso da obra de Hatoum em nosso meio acadêmico, a obra do escritor amazonense se aproximaria da de Jorge Amado pela recorrência às maneiras pelas quais o escritor grapiúna constrói a identidade brasileira em intercurso com as feições árabes. Nessa compreensão, Jorge Amado pode e deve ser visto como pioneiro dessas construções identitárias.

Nesse percurso, organizamos esse trabalho, esperando contribuir para os estudos literário-identitários entre nós, mais especialmente das representações árabes e brasileiras, em nosso sistema literário.

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008

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