segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte VII

Utilizando-se da linha temática regionalista e amorosa, Jorge Amado estrutura e compõe, em plena proximidade com o brasileiro do interior nordestino, as suas representações identitárias, em especial do imigrante árabe, do sul da Bahia, dos meados dos anos Vinte.

Nessa construção, afasta-se da perspectiva etnocêntrica, com a qual, no mais das vezes, se representa o diferente de si. Fugindo ao etnocentrismo, Jorge Amado se aproximaria da concepção interativa da identidade, na qual a identidade se plasma a partir da ‘interação’ entre o eu e a sociedade, como expõe Stuart Hall:

De acordo com essa visão, que se tornou a concepção sociológica clássica da questão, a identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem. [...] A identidade, então, costura (ou para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e previsíveis. (HALL, 2001, p. 11-12)

Na utilização dessa visão sociológica, Jorge Amado procede à sua configuração do imigrante árabe pelas letras da aproximação; da ausência de estranhamento, em plena interação com a cultura baiana, como se afere da passagem, na qual Jorge Amado, retomando Machado de Assis, expressa o sentimento de mal estar de Nacib ante o cozinheiro estrangeiro que contratara, a conselho do seu sócio Mundinho, na presença do qual se sente estrangeiro, amedrontado e humilhado, como se pode observar nas passagens a seguir:

O cozinheiro chegou, via Bahia, junto com Mundinho Falcão [...] Nacib embasbacou-se ante o cozinheiro. Estranha criatura: [...] Português de nascimento, de sotaque pronunciado, muitas palavras a caírem depreciativas se seus lábios eram francesas. Nacib humilhado não as entendia [...] Exigia fogão de metal, a carvão. Quanto antes. Nacib sentia-se humilhado e amedrontado. Ia dizer qualquer coisa, o ‘chef de cuisine’ aplicava-lhe um olho crítico, superior, deixava-o gelado. Não fosse o homem ter vindo do Rio, custar tanto dinheiro e, sobretudo, ter sido ideia de Mundinho Falcão, e o mandaria estourar-se no inferno com suas comidas de nomes complicados e suas palavras francesas. [...] Quanto a Nacib, esse brasileiro nascido na Síria, sentia-se estrangeiro ante qualquer prato não baiano, à exceção do quibe. Era exclusivista em matéria de comida. (AMADO, 1979 1, 340-341)

Um criado trouxe o café. Rubião pegou na xícara e, enquanto lhe deitava  o açúcar, ia disfarçadamente mirando a bandeja, que era de prata lavrada. [...] O criado esperava teso e sério. Era espanhol; e não foi sem resistência que Rubião o aceitou das mãos de Cristiano; por mais que lhe dissesse que estava acostumado aos seus crioulos de Minas e não queria línguas estrangeiras em casa, o amigo Palha insistiu, demonstrando-lhe a necessidade de ter criados brancos. Rubião cedeu com pena. O seu bom pajem, que ele queria pôr na sala, como um pedaço da província nem o pôde deixar na cozinha, onde reinava um francês, Jean; foi degradado a outros serviços. (MACHADO, 1994, p. 676)

Nessa concepção interativa, em que lança mão do melhor de nossa tradição literária, Jorge Amado procede à representação de Nacib. Dessa interação não escapará sequer os traços físicos da personagem, curiosamente aproximada do biótipo nordestino, como atesta a descrição física do personagem, em especial o realce de sua “cabeça chata”, traço fisionômico pelo qual se costumava distinguir os brasileiros oriundos do Nordeste:

Frondosos bigodes plantados num rosto gordo e bonachão, de olhos desmesurados, fazendo-se cúpidos à passagem das mulheres. Boca gulosa, grande e de riso fácil. Um enorme brasileiro, alto e gordo, cabeça chata e farta cabeleira, ventre demasiadamente crescido, “barriga de noves meses”, como pilheriava o Capitão ao perder uma partida no tabuleiro de damas. (AMADO, 1979 1, p. 40 – grifos nossos)

Nesse percurso, Jorge Amado ressaltaria o legítimo pertencimento de Nacib ao Brasil, à Ilhéus, reconhecendo-o como um verdadeiro grapiúna. Recorrentemente assinalada, a condição pátria de Nacib seria ora apontada pelo narrador, ora pelo próprio personagem que, continuadamente, elide sua terra de nascimento, identificando-a apenas como a terra de seu pai, como se afere das passagens abaixo:

Era comum tratarem-no de árabe, e mesmo de turco, fazendo-se assim necessário de logo deixar completamente livre de qualquer dúvida a condição de brasileiro, nato e não naturalizado, de Nacib. Nascera na Síria, desembarcara em Ilhéus com quatro anos, vindo num navio francês até à Bahia. Naquele tempo, no rastro do cacau dando dinheiro, chegavam à cidade de alastrada fama, diariamente, pelos caminhos do mar, do rio e da terra, nos navios, nas barcaças e lanchas, nas canoas, no lombo dos burros, a pé abrindo picadas, centenas e centenas de nacionais e estrangeiros [...] Chegavam e em pouco eram ilhenses dos melhores, verdadeiros grapiúnas plantando roças, instalando lojas e armazéns. (AMADO, 1979 1, p. 39)

– Tudo que quiser, menos turco. Brasileiro, – batia com a mão enorme no peito cabeludo – filho de sírios, graças a Deus. [...] – Na terra de meu pai... – assim começavam suas histórias nas noites de conversas longas, quando nas mesas do bar ficavam apenas uns poucos amigos. Porque sua terra era Ilhéus, a cidade alegre ante o mar, as roças de cacau, aquela zona ubérrima onde se fizera homem. Seu pai e seus tios, seguindo o exemplo dos Ashcar, vieram primeiro, deixando as famílias. Ele embarcara depois, com a mãe e a irmã mais velha, de seis anos, Nacib ainda não completara os quatro. Lembrava-se vagamente da viagem na terceira classe, o desembarque na Bahia onde o pai fora esperá-los. Depois a chegada a Ilhéus, a vinda para a terra numa canoa pois naquele tempo nem ponte de desembarque existia. Do que não se recordava mesmo era da Síria, não lhe ficara lembrança da terra natal tanto se misturara ele à nova pátria e tanto se fizera brasileiro e ilheense. Para Nacib era como se houvesse nascido no momento mesmo da chegada do navio à Bahia, ao receber o beijo do pai em lágrimas. Aliás, a primeira providência do mascate Aziz, após chegar a Ilhéus, foi conduzir os filhos a Itabuna, então Tabocas, ao cartório do velho Segismundo, para registrá-los brasileiros. (AMADO, 1979 1, p. 40-41)

Legitimamente brasileiro, posto que ungido pelo velho e persistente “jeitinho nacional”, Nacib usufruiria da cordialidade brasileira, termo aqui utilizado no sentido difundido por Sergio Buarque de Holanda, ao se referir a nossa propensão adversa a todo o formalismo e convencionalismo social (HOLANDA, 1988, p. 106-107), entre eles o disciplinamento burocrático. Desse desvio da legalidade, aprovado pelos moradores de Ilhéus, se deve a condição de brasileiro nato de Nacib, cujo registro civil de nascimento, comprado a preço módico, havia sido consumido pelo incêndio do cartório de Tabocas, como registra ironicamente o narrador:

Processo rápido de naturalização que o respeitável tabelião praticava com a perfeita consciência do dever cumprido por uns quantos mil-réis. Não tendo alma de explorador, cobrava barato, colocando a operação legal ao alcance de todos, fazendo desses filhos de imigrantes, quando não dos próprios imigrantes vindos trabalhar em nossa terra, autênticos cidadãos brasileiros, vendendo-lhes boas e válidas certidões de nascimento. Acontece ter sido o cartório incendiado [...] Livros de registros não existiam, mas existiam idôneas testemunhas a afirmar que o pequeno Nacib e a tímida Salma, filhos de Aziz e de Zoraia, haviam nascidos no arraial de Ferradas e tinham sido anteriormente registrados no cartório, antes do incêndio [...] Como pensar em míseros detalhes legais, como o lugar e a data exata do nascimento de uma criança [...] Acreditava simplesmente na palavra daqueles simpáticos imigrantes, aceitava-lhes os presentes modestos, vinham acompanhados de testemunhas idôneas, pessoas respeitáveis, homens cuja palavra, por vezes, valia mais que qualquer documento legal. (AMADO, 1979 1, p. 41-42)

Assegurada pelo desvio da legalidade, a nacionalidade brasileira de Nacib também se estenderia aos seus familiares, concebidos pelo narrador como conquistadores lendários, heróis do imaginário e da memória popular, juntamente com outros pioneiros e desbravadores de Ilhéus, de origem brasileira. Nesse caminho, Jorge Amado indicia o assunto de seu último livro, A descoberta da América pelos turcos (1994), ao mesmo tempo em que assegura, à família do protagonista, o estatuto de ilhenses por fora e por dentro, expressão popular bem ao gosto nordestino:

Já ilhenses por fora e por dentro, além de brasileiros naturalizados, eram os parentes de Nacib, uns Ashcar envolvidos nas lutas pela conquista  da terra, onde seus feitos foram dos mais heróicos e comentados. Só encontram eles comparação com os dos Badarós, de Braz Damásio, do célebre negro José Nique, do coronel Amâncio Leal. Um deles, de nome Abdula, o terceiro em idade, morreu nos fundos de um cabaré em Pirangi após bater três dos cinco jagunços mandados contra ele, quando disputava pacífica partida de pôquer. (AMADO, 1979 1, p. 40)

A ênfase no caráter brasileiro de Nacib, na sua completa aclimatação pautará toda a narrativa. É notório o esforço do narrador amadiano em confirmar a completa integração de Nacib à vida de Ilhéus, seja como cidadão estimado e respeitado pelos senhores cacaueiros, seja como político, de cujas ações também advêm às mudanças em curso, como demonstram a sua indicação à diretoria da Associação Comercial de Ilhéus e a sua aliança, política e comercial, com Mundinho:

Um dos mais importantes sucessos daquele ano em Ilhéus foi a inauguração da nova sede da Associação Comercial [...] As eleições para a diretoria precederam a da mudança [...] Além do nome de Ataulfo Passos, um outro se repetia nas duas chapas [...] Nacib A. Saad [...] Assim, viu-se eleito Nacib quarto-secretário da Associação Comercial de Ilhéus, companheiro de Ataulfo, Mundinho, Maluf, do joalheiro Pimenta, de outros tipos importantes, inclusive do dr. Maurício e do Capitão. (AMADO, 1979 1, p. 186-188)

O bar de Nacib agora era um reduto de Mundinho Falcão. Sócio do exportador e inimigo de Tonico, o árabe (cidadão brasileiro nato e eleitor) entrara na campanha. E, por mais espantoso que pareça, naqueles dias vibrantes do comício, no maior deles, quando dr. Ezequiel bateu todos os recordes anteriores de cachaça e inspiração, Nacib pronunciou seu discurso. Deu-lhe uma coisa por dentro, depois de ouvir Ezequiel. Não agüentou, pediu a palavra. Foi um sucesso sem precedentes. (AMADO, 1979 1, p. 327)

Utilizando-se da perspectiva interacionista, Jorge Amado compõe o mosaico identitário da Bahia, privilegiando o imigrante árabe. Nessa composição, organizada pelas lentes da simpatia e da afinidade, o aproximará, amorosamente, de Gabriela, sertaneja tangida pela seca no sertão, chegada à Ilhéus abrindo picadas, numa passagem que, embora marcada pela sutileza, lembraria a personagem Iracema, de José de Alencar:

Só Gabriela parecia não sentir a caminhada, seus pés como que deslizando pela picada muitas vezes aberta na hora a golpes de facão, na mata virgem. Como se não existissem as pedras, os tocos, os cipós emaranhados [...] no começo da viagem, a cor do rosto de Gabriela e de suas pernas era ainda visível e os cabelos rolavam sobre o cangote, espalhando perfume. (AMADO, 1979 1, p. 84 – grifos nossos)

Não obstante essa sutil aproximação, Gabriela seria, antes, uma espécie de Rita Baiana, recém saída das matas. Configurada pelas tintas do Naturalismo, essa descendente dos nossos aborígines co-divide, com a personagem de Aluísio Azevedo, precursor da vertente naturalista no Brasil, a forte sensualidade, o gosto pela música e pela dança, o forte apelo do amor sexual, a pouca propensão ao seu disciplinamento, através do casamento, num completo alheamento ao formalismo e ao convencionalismo social. Filhas da mesma concepção naturalista, a aproximação entre essas duas personagens seria inevitável, como demonstram as várias passagens das narrativas de Aluisio Azevedo e Jorge Amado.

Representante de uma das nossas feições nacionais, derivada, literariamente, da obra de José de Alencar, O sertanejo (1875), Gabriela é o elemento autóctone com o qual Jorge Amado recria o “encontro”, em seu país regional. Desta feita, elegendo, como mediadores, a intensa conexão sexual, a afinidade de temperamento e, principalmente, a ausência de estranhamento entre o imigrante árabe e a sertaneja nordestina. Reciprocamente, ambos são para si mesmos, o elo que preenche o espaço entre o ‘interior’ e o ‘exterior’ – entre o mundo pessoal e o mundo público (HALL, 2001, p. 11), como se pode aferir das passagens seguintes.

Ele se havia sentado. Gabriela acomodou-se no chão a seus pés. Tomou-lhe da grande mão e peluda, beijou-lhe a palma naquele gesto que recordava a Nacib, nem mesmo sabia por que, a terra de seus pais, as montanhas da Síria. Depois encostou a cabeça em seus joelhos, ele passou-lhe a mão nos cabelos. O pássaro sossegara, soltou seu trinado. – Dois presentes de uma vez... Moço tão bom! – Dois? – O passarinho e, mais bom ainda, ter vindo trazer. (AMADO, 1979 1, p. 198)

Gabriela o puxou pra si, mergulhando-o nos seios. Nacib murmurou: Bié...E em sua língua de amor, que era o árabe, lhe disse a tomá-la: “De hoje em diante és Bié e essa é a tua cama, aqui dormirás. Cozinheira não és apesar de cozinhares. És a mulher desta casa, o raio de sol, a luz do luar, o canto dos pássaros. Te chamas Bié...” – Bié é nome de gringa? Me chames Bié, fale mais nessa língua... Gosto de ouvir. (AMADO 1979 1, p. 200)

Nesse caminho interativo, marcado por uma reciprocidade estável entre o interior e o exterior, produto da primeira metade do século XX, como acentua Stuart Hall (2001, p. 32), Jorge Amado procede à recriação de sua pátria regional, proposta privilegiada do Modernismo nordestino, pautando-se pela ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade (HALL, 2001, p. 53), como se apreende do fragmento abaixo:

Muita coisa recordava ainda o velho Ilhéus de antes. Não o tempo dos engenhos, das pobres plantações de café, dos senhores nobres, dos negros escravos, da casa ilustre dos Ávilas. Desse passado remoto sobravam apenas vagas lembranças, só mesmo o Doutor se preocupava com ele. Eram os aspectos de um passado recente, do tempo das grandes lutas pela conquista da terra. Depois que os padres jesuítas haviam trazido as primeiras mudas de cacau. Quando os homens, chegados em busca de fortuna, atiraram-se às matas e disputaram, na boca das repetições e dos parabeluns, a posse de cada palmo de terra. [...] Quando o caxixe reinou, a justiça posta a serviço dos interesses dos conquistadores de terra, quando cada grande árvore escondia um atirador na tocaia esperando sua vítima. Era esse passado que ainda estava presente em detalhes da vida da cidade e dos hábitos do povo. Desaparecendo aos poucos, cedendo lugar às inovações, a recentes costumes. Mas não sem resistência, sobretudo no que se referia a hábitos transformados pelo tempo em lei. (AMADO, 1979 1, p. 21-22)

Em sua narrativa da nação grapiúna, Jorge Amado subordina, ideologicamente, as raízes da identidade do sul da Bahia às raízes indígenas e árabes, se valendo de nossa tradição literária, em suas mais variadas vertentes. Nesse aproveitamento escritural, o escritor baiano aproxima, física e culturalmente, as gentes árabes das nordestinas, ao mesmo tempo em que assegura a esses imigrantes, o importante papel de elemento constitutivo de uma feição baiano-nacional.
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continua...

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008

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