sábado, 18 de outubro de 2008

Fundec de Sorocaba (Teatro: A Casa de Bernarda Alba)



FUNDEC

convida

Espetáculo Teatral "A Casa de Bernarda Alba"

Direção: Mario Persico

Alunos do Núcleo de Artes Cênicas da FUNDEC

Datas: 18 e 19/10 - sábado e domingo Horário: 20h

Local: Sala FUNDEC - Rua Brigadeiro Tobias, 73 - Centro - Sorocaba/SP
(Os ingressos (2 por pessoa) devem ser retirados com uma hora de antecedência na sede da FUNDEC a partir das 19h)

- Entrada gratuita -

(Mais informações através do telefone 15. 3233.2220 ou no site www.fundecsorocaba.com.br

Fonte:
E-mail enviado pela FUNDEC eventos
)

Federico Garcia Lorca (A Casa de Bernarda Alba)

A Casa de Bernarda Alba (1936) é a última peça, e a terceira da trilogia de dramas folclóricos, do escritor espanhol Federico García Lorca. Compõem a trilogia as peças Bodas de Sangue(1933) e Yerma (1934).

Dados sobre a obra

Finalizada exatos trinta dias antes de morrer assassinado, em 19 de agosto de 1936, por forças do governo durante a Guerra Civil Espanhola, A Casa de Bernarda Alba, última peça teatral escrita pelo poeta espanhol Federico García Lorca, teve sua montagem de estréia apenas em 1945, em Buenos Aires, cidade na qual Lorca passara cinco meses em 1933, e só viria a ser encenada na Espanha no ano de 1964.

Enredo

Em A casa de Bernarda Alba, seu único texto de teatro escrito em prosa, Lorca recorre ao simbolismo para realizar uma nova investida no teatro. Bernarda Alba, personagem central do texto, é uma matriarca dominadora que mantém as cinco filhas, Angústia, Madalena, Martírio, Amélia e Adela sob vigilância implacável, transformando a casa onde vivem, em um pequeno povoado na Espanha, em um caldeirão de tensões prestes a explodir a qualquer momento.

Com a morte de seu segundo marido, Bernarda decretara um luto de oito anos e submete suas filhas à reclusão dentro das frias paredes de sua casa e das janelas cerradas. Duas das moças, porém, apaixonadas por um mesmo galanteador das redondezas, um rapaz de vinte e cinco anos chamado Pepe Romano, desencadeiam no meio daquele luto uma disputa cruel e perigosa para conquistarem o amor daquele mesmo homem, com conseqüências trágicas.

A construção central do drama de Lorca – a casa na qual uma família de mulheres solitárias é controlada por uma mãe centralizadora e tirânica – teria sido inspirada por uma família da pequena cidade granadina de Valderrubio, onde os pais do poeta tinham uma propriedade rural e conheceram certa Frasquita Alba, mãe de quatro filhas às quais comandava com mão de ferro e um homem de nome Pepe de la Romilla, que teria se casado com a filha mais velha de Frasquita por seu dote e, posteriormente, se envolvido com a mais jovem das irmãs. Dessa história real, Lorca apropriou-se da idéia de uma casa sem homens para compor o tema central de La Casa de Bernarda Alba, qual seja o lugar da mulher na sociedade espanhola.

Estrutura e trama

O drama divide-se em três atos, todos situados no interior da casa de Bernarda Alba, mãe de cinco filhas – Angustias, Madalena, Amélia, Martírio e Adela – que vive com elas e sua mãe senil em um pequeno povoado do interior da Espanha.

Primeiro ato

O primeiro ato inicia-se com um diálogo entre La Poncia, serva mais antiga da casa, e outra mulher que Lorca denomina apenas por Criada. Elas conversam enquanto arrumam a sala de visitas para a chegada dos que acompanharam o cortejo fúnebre do segundo marido de Bernarda Alba, e por intermédio das falas dessas duas personagens é que são apresentadas a personagem-título do drama, descrita como tirana de todos los que la rodean e mãe controladora das cinco hijas feas que lhe restaram com a morte do esposo, bem como as demais personagens e a própria ambientação da trama. Sabe-se também que Angustias, a filha mais velha, é fruto do primeiro casamento de Bernarda Alba e a única detentora de um dote deixado pelo pai, ao contrário das irmãs, que nada herdam do pai recém-falecido.

Entram em cena as mulheres vindas do enterro de Antonio Maria Benavides, e Bernarda dá ordens às criadas para que sirvam os homens, que ficaram a conversar do lado de fora da casa. É ela também quem conduz as orações pelo morto e, depois da saída das convidadas, maldiz o falatório que, acredita, será iniciado pelas pessoas daquele povoado assim que passarem pelos umbrais de sua porta. Bernarda anuncia que as mulheres da casa manterão um luto de oito anos, nos quais permanecerão trancadas naquela casa, sem contato com o mundo exterior. Ouvem-se gritos e a Criada surge a contar para Bernarda Alba dos desvarios de Maria Josefa, avó das moças; ela ordena à serviçal que leve sua mãe para o pátio, para que os vizinhos não a ouçam, mas orienta em que lugar específico deve ser mantida a velha senil para que os vizinhos não a vejam.

Dando por falta de sua filha Angustias, Bernarda descobre que a moça estava a conversar com um homem no portão de casa e espanca-a; ela opõe-se à idéia de que suas filhas mantenham qualquer relacionamento com os homens. Amélia e Martírio, espelhando as palavras de Bernarda, comentam sobre a história do pai de Adelaida, uma moça do povoado, cujas desilusões que causou às mulheres são aludidas como sinal do terror que é a convivência com os homens. Magdalena, por sua vez, entra em cena para contar às irmãs que Angustias, a mais velha, será pedida em casamento por Pepe el Romano – o que ela atribui apenas ao interesse do jovem rapaz pelo dote da irmã. Adela, a mais nova, apaixonada em segredo pelo pretendente da irmã, lamenta sua sorte.

O primeiro ato encerra-se com a aparição de Maria Josefa, a mãe de Bernarda Alba, que expressa em sua loucura a vontade das netas: ¡Quiero irme de aqui, Bernarda! ¡Bernarda, yo quiero um varón para casarme y para tener alegria! Apesar de o drama de Lorca ter em seu título a chefe da família de mulheres solitárias, Bernarda Alba, muito se questiona sobre quem seria a real protagonista da história. Ainda que não esteja presente em todas as cenas, a personagem da matriarca está contida em todas as ações por ser a referência de medo, de ordem e, conseqüentemente, de transgressão na vida das filhas e criadas . É pelo discurso das personagens que a presença de Bernarda Alba impõe-se em cena desde o primeiro ato, que tem poucas ações e apresenta um caráter quase didático em seu início, que funciona à guisa de prólogo semelhante ao antes visto no Filoctetes, de Sófocles, no qual duas personagens apresentam uma terceira quase em tom narrativo, para situar a audiência na trama.

Segundo ato

No segundo ato, as irmãs encontram-se em uma peça interior da casa, tecendo e bordando o enxoval de Angustias. Conversam sobre a corte de Pepe el Romano à irmã mais velha, e La Poncia faz um contraponto aos comentários de Angustias ao contar sua própria história de como conheceu e casou-se com um marido que pouca alegria lhe trouxera.

Adela não está presente e as irmãs preocupam-se com ela; procurada pelas irmãs, Adela surge em cena algo transtornada, e La Poncia diz-lhe em particular que seu mal é cobiçar o noivo de sua irmã. A serva tenta convencer a filha mais nova de Bernarda Alba que seu destino é aguardar que sua irmã venha a falecer para assumir o posto de segunda esposa de Pepe el Romano, e diz que assim o faz para defender a honra da casa em que trabalha há tantos anos. Adela revolta-se com La Poncia e afirma que lutará por seu direito de amar o homem que deseja. As demais irmãs, por sua vez, lamentam seus destinos de mulheres solitárias, quando La Poncia conta-lhes sobre os novos homens que chegaram ao povoado, trabalhadores para a colheita próxima, do qual se ouve o canto distante. Quando saem as irmãs para espiar pelas frestas das janelas os homens que passam na rua, Angustias surge em cena reclamando o desaparecimento de uma fotografia de Pepe el Romano, que estava em seu quarto, presente de seu noivo.

Bernarda ordena que La Poncia procure o retrato desaparecido; as suspeitas recaem sobre a mais jovem, Adela, mas a serva encontra-o entre as roupas de dormir de Martírio. Bernarda ameaça espancar a filha, que diz ter sido o ato apenas uma brincadeira inocente que fizera com a irmã, Angustias, mas Adela acusa Martírio de nutrir uma paixão secreta por Pepe el Romano. As paixões ocultas, a inveja e a hipocrisia começam, então, a ser desmascaradas: Martírio e Adela dizem a Angustias que Pepe el Romano casa-se apenas por interesse em seu dote, e Bernarda ordena, rispidamente, que as filhas se calem.

La Poncia, em conversa reservada com a matriarca, diz suspeitar que Martírio escondera o retrato por conta do amor de Enrique Humanes, um rapaz que a cortejou mas que fora rechaçado pela mãe por ser de uma classe social inferior. Bernarda, desgostosa com os comentários da serva, relembra-a que ela está naquela casa por piedade da matriarca, que a acolhera ainda jovem, mesmo sendo La Poncia filha de uma meretriz. Sem perceber o perigo do comentário, La Poncia conta que Pepe el Romano esteve até às quatro e meia da madrugada a conversar a noiva, mas diante da negativa de Angustias percebe-se que ele esteve em companhia de outra pessoa da casa. Martírio e Adela conversam em particular e a mais jovem revela que Pepe el Romano está a cortejá-la em segredo.

La Poncia traz a notícia de uma jovem da aldeia que engravidara sendo solteira, dera à luz um menino em segredo e que o matara, sendo o crime revelado por acaso do destino; ouve-se o povo nas ruas que clama pelo linchamento da moça; Bernarda e Martírio saem em apoio à morte da pecadora, enquanto Adela desespera-se e clama pela libertação da moça, recordando que ela também corria perigo por seu amor secreto por Pepe.

Nesse segundo ato, Lorca antecipa diversos elementos que irão desencadear no desfecho apresentado no ato seguinte, como antes fizera no primeiro ato ao mostrar a paixão de Adela por Pepe el Romano: sabe-se então do amor e da inveja de Martirio pelo casamento de Angustias por meio de uma revelação que beira o inverossímil – a primeira furta da irmã que está noiva um retrato do futuro marido – e do envolvimento carnal de Adela com o rapaz, sugerido pelas ações finais do segundo ato. A situação trágica – a entrada, no universo fechado da casa de Bernarda Alba, do elemento masculino e o desequilíbrio por ele causado na harmonia inicial – é preparada para a catástrofe final, apresentada no ato final.

Terceiro ato

O terceiro ato passa-se no pátio interno da casa de Bernarda Alba, onde a matriarca recebe a visita de Prudência e com ela compartilha de uma ceia modesta. A visitante conta a Bernarda Alba de seus desgostos por conta de sua filha, expulsa de casa pelo pai. Angustias e Martírio estão brigadas, e Bernarda insiste que elas façam as pazes ao menos para manter as aparências de um lar em harmonia. A filha mais velha diz desconfiar de Pepe, que lhe avisara que aquela noite não iria à casa por conta de outros compromissos com os pais em outro povoado, e todas retiram-se para dormir. Bernarda e La Poncia conversam sobre as suspeitas da empregada de que uma cosa tan grande estaria a passar na casa; a matriarca rechaça essa idéia, e diz confiar que em suas mãos está o controle total do que se passa ali.

La Poncia parece antever a desgraça que se aproxima e comenta com a Criada sobre o envolvimento de Adela e Pepe; a moça aparece no pátio e some logo em seguida, entrando no curral. Maria Josefa, a mãe de Bernarda, surge em cena carregando uma ovelha nos braços e, em sua loucura, fala do poder de Pepe el Romano sobre todas as netas, às quais agoura um destino cruel de solidão. Martírio vai até o curral e chama Adela, que aparece algum tempo depois, recompondo-se; elas brigam por conta do que Adela estaria a fazer com a irmã mais velha, Angustias, ao roubar-lhe o futuro esposo, mas Adela acusa Martírio de também estar apaixonada pelo rapaz, e esta acaba por confessar que o ama. Seguem as duas brigando, pois Martírio diz que irá denunciá-la, e Adela fala de sua intenção de fugir e tornar-se amante de Pepe el Romano.

Bernarda aparece no pátio e ameaça surrar Adela; esta toma-lhe o bastão das mãos e quebra-o em duas partes. Com o alvoroço de vozes, as demais mulheres surgem em cena. Adela diz, então, a Angustias que ela, a mais jovem, é a verdadeira mulher de Pepe; Bernarda sai de cena e busca uma escopeta com a qual entra no curral e atira. Martírio mente, dando a entender que a mãe matara Pepe el Romano, que na verdade apenas correra com o disparo. Adela corre para o curral e lá se tranca; Bernarda ordena que Adela abra a porta, mas é La Poncia quem abre o curral e descobre a tragédia: Adela está morta, enforcada.

Bernarda, diante da comoção de todas e da notícia trazida pela criada de que os vizinhos já se levantavam para ver o que acontecia naquela casa, ordena que a filha morta seja vestida como si fuera doncela e que as demais filhas mantenham silêncio sobre o que ali se passara.

O final do drama, como nas demais peças estudadas, parece precipitado – e tal sensação é ainda mais forte em A Casa de Bernarda Alba por conta da rapidez com que os acontecimentos – e as falas – finais se sucedem. A situação trágica agudiza-se com a presença de Pepe el Romano no curral, onde mantém um encontro furtivo com a filha mais nova, Adela, e tal situação parece insuportável para Martírio, talvez por uma associação de diversos sentimentos: a dor de ver seu objeto de desejo interessado na irmã mais nova; a sensação de que ele, pela primeira vez, adentra a casa, domínio das mulheres, ameaçando o equilíbrio da família; e a inveja por saber que duas irmãs o possuem – uma pelo dote e pelo casamento, outra pelo desejo e pelo amor carnal – e nada para ela restara a não ser a lembrança de um amor do passado que lhe fora impedido pela mãe.

Do momento em que o conflito entre Martírio e Adela é deflagrado até o ato desesperado de Adela, o drama de Lorca é acelerado pela brevidade das falas e intempestividade das ações das personagens, sobretudo de Bernarda Alba, que parece agir rapidamente na tentativa de retomar a harmonia da casa, tão profundamente abalada pelos acontecimentos.

A verossimilhança, que a princípio seria abalada pela decisão extrema de Adela em se matar diante da possibilidade da morte do amado, não se vê ameaçada por conta da forma intensa que o autor escolheu para terminar seu drama, oferecendo à audiência uma solução trágica, para uma situação dramática opressora e claustrofóbica, que parece funcionar como única alternativa possível para a personagem Adela diante de um mundo que só lhe oferecia limites e nenhuma escolha.

Sobre a Peça

Lançando mão de personagens-tipo, representantes de condutas sociais claramente marcadas, o último drama rural lorquiano consegue agudizar ainda mais a crítica iniciada por Bodas de Sangue (1933) e Yerma (1934). Cada uma das personagens tem um comportamento diferente do das demais, o que destaca sobremaneira várias nuances da sociedade espanhola. Assim como fazem o Estado e a Igreja, Bernarda Alba cerceia a liberdade de suas filhas - representantes do povo, reprimido e assustado, incapaz de enfrentar o sistema que o sufoca, embora desejoso de mudanças e liberdade -, esconde sua mãe e oprime os empregados. De acordo com FOUCAULT (2004: 247), “Geralmente se chama instituição todo comportamento mais ou menos coercitivo, aprendido. Tudo que em uma sociedade funciona como um sistema de coerção, sem ser um enunciado, ou seja, todo o social não discursivo é a instituição”.

Sob essa perspectiva, não somente as instituições públicas são responsáveis pela opressão do indivíduo. A que se destacar, também, o imenso poder que emana do núcleo familiar, instituição privada que fortalece as bases do sistema político autoritário que está prestes a dominar a Espanha que Lorca retrata. Ainda segundo FOUCAULT (2004: 249), o poder flui através dos discursos, a partir de um ponto que aos pouco se irradia:

De modo geral, penso que é preciso ver como as grandes estratégias de poder se incrustam, encontram suas condições de exercício em micro-relações de poder. Mas sempre há também movimentos de retorno, que fazem com que as estratégias que coordenam as relações de poder produzam efeitos novos e avancem sobre domínios que, até o momento, não estavam concernidos.

Analisada sob a ótica foucaultiana, a última peça escrita por García Lorca permite afirmar que o poder político que o Estado e a Igreja demandam, na sociedade espanhola, oferece a Bernarda a credencial necessária para reproduzir em microcosmo o despotismo observado em macroescala. Para a filha que ousou ultrapassar os padrões de comportamento impostos, resta a morte: castigo para aqueles que, como o que vitimou próprio autor da peça, é imputado àqueles que ousam desacomodar a ordem vigente.

Fontes:
- http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Casa_de_Bernarda_Alba
- Luciana Ferrari Montemezzo. O Poder e as instituições na Casa de Bernarda Alba. In http://coralx.ufsm.br/grpesqla/revista/num09/art_05.php
- Imagem = http:// http://www.tap.org.br/

Federico Garcia Lorca (Poemas)

Se as minhas mãos pudessem desfolhar

Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros
beber na lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.
E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.

Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.

Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranqüila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua!!
=========================
O poeta pede a seu amor que lhe escreva

Amor de minhas entranhas, morte viva,
em vão espero tua palavra escrita
e penso, com a flor que se murcha,
que se vivo sem mim quero perder-te.
O ar é imortal. A pedra inerte
nem conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
o mel gelado que a lua verte.

Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias,
tigre e pomba, sobre tua cintura
em duelo de mordiscos e açucenas.
Enche, pois, de palavras minha loucura
ou deixa-me viver em minha serena
noite da alma para sempre escura.
====================

Fonte:
http://www.astormentas.com/lorca.htm

Federico Garcia Lorca (1898 - 1936)



Filho de Federico García Rodríguez, homem simples e inteligente, e de Vicenta Lorca, uma professora, Federico García Lorca nasceu em 5 de junho de 1898 em Fuente Vaqueros. Pouco tempo depois, a família muda-se para um povoado vizinho de Asquerosa, onde o poeta vive até a adolescência. Sua infância desenvolve-se em meio às letras e à música que aprende com a mãe, de quem herda a grande sensibilidade artística e humana.

Na Universidade de Granada, segue duas carreiras, uma para agradar ao pai: Direito, e outra por satisfação pessoal: Filosofia e Letras. Continua estudando violão e piano.

Os primeiros escritos que publica são trabalhos em prosa. Depois escreve um artigo por ocasião do centenário de Zorilla no boletim do Centro Artístico de Granada, em fevereiro de 1917. Logo, um livro intitulado Impresiones y Paisajes, que aparece em Granada em 1918 e que foi o resultado de uma viagem de estudos que realizou com outros companheiros da Universidade, sob a direção do catedrático de Teoria da Arte, no ano de 1917, pelas velhas cidades castelhanas. Nota-se nessa obra uma semelhança com o estilo de Gabriel Miró.

Nesse momento, nosso jovem poeta se projeta simultaneamente por meio da poesia, da prosa, da música e da pintura.

Entre os anos de 1919 e 1928, realiza suas imortais investidas no teatro e na poesia espanhola. A primeira poesia que publica, "Balada de la Placeta", aparece na antologia da poesia espanhola do romance curto.

Em 1919, seu primeiro intento dramático, intitulado O Malefício da Mariposa, estréia e fracassa em 22 de maio de 1920. No ano seguinte, publica seu primeiro livro de poemas. O ano de 1928 marca a vida do poeta, com a publicação de Romancero Gitano. Rápido obtém êxito de público e elogio da crítica.

A primeira edição se esgota rapidamente e, no ano seguinte, 1929, publica a segunda edição do Romancero. Lorca começa a viajar pelo mundo, passando por alguns países da Europa, por Nova York, por Buenos Aires e, na primavera de 1935, o poeta, em sua plenitude, conclui nova obra: La Casa de Bernarda Alba.

Em 16 de julho de 1936, abandona Madri rumo a Granada, onde está sendo impresso, pela Universidade, seu novo livro de poesias: Diván del Tamarit. Segundo o escritor Falla, Lorca, descoberto em casa de um amigo, é preso pelo governo franquista. Não se sabe se por engano ou se por vingança pessoal, o poeta, arrancado de sua prisão ao amanhecer, é levado ao lugar do sacrifício nas ladeiras da serra. Em 17 de julho, estoura o movimento militar-falangista contra a República e uma das primeiras notícias trágicas a abalar o mundo é o fuzilamento de Federico García Lorca.

Bibliografia

Poesia

• El libro de los poemas (1918-1920)
• Canciones(1921-1924)
• Poema del cante jondo (1921)
• Romancero gitano(1924-1927)
• Poeta en Nueva York (1929-1930)
• Llanto por Ignacio Sánchez Megias (1934)
• Diván de Tamarit (1931-1934)

Teatro

• Mariana Pineda (1923)
• La Zapatera Prodigiosa (1930)
• Amor de don Perlimplin con Belisa en su jardín (1931)
• Así que pasen cinco años (1931)
• El público (inacabada, 1933)
• Doña Rosita la Soltera o el lenguaje de las flores (1935),
• Bodas de sangre (1933)
• Yerma (1934)
•La Casa de Bernarda Alba (1936)

Fonte:
http://www.klickescritores.com.br

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Nicodemos Sena (Potira dentro da Lua)

As águas do rio ficam muito serenas. Nenhum som, nenhuma voz, nada se ouve, como se de repente um grande sono tivesse baixado sobre o rio e todas as coisas dormitassem.

Abaixo da cintura, sinto-me deslizar pela maciez de musgos, samambaias, mururés e lianas. Tépida é a água, cálida a sua frescura. Através do espelho negro dos olhos de Potira consigo ver os peixes de olhos mortiços e escamas faiscantes no fundo das águas. Cobras peçonhentas, agora inofensivas, descem da terra e trançam entre nossos corpos, provocando-nos leves arrepios. Grandes e pequenos jacarés arrastam-se uns sobre os outros, as cobras enfiando-se-lhes pela boca e saindo de suas entranhas como longos cordões.

Os curumins entram no rio com seus arcos e flechas de brinquedo; correm de um lugar para outro mirando os peixes que se amparam em quelônios. O mais taludo dos fedelhos aproxima-se de nós e tenta apalpar os seios de Potira. Faço-lhe uma carranca, mas o maroto não se afasta, apenas ri com a boca escancarada; vejo guelras em sua garganta. Potira deixa-se tocar pelo pirralho e pede que eu não me zangue, pois o curumim é apenas um “petitinga”, peixe-miúdo. Piracanjuba, peixe-da-cabeça-amarela, é seu nome.

Uma cunhã ainda muito “mucu” (nova) vem nadando pelo fundo e se roça em meu corpo. Potira dá-lhe um beliscão no costado. A cunhã se afasta, os cabelos lisos e muito compridos esvoaçando-lhe sobre as costas. Bela é a cunhantã, formoso o seu dorso, porém, em meio à pelugem do púbis, vejo, num átimo de relâmpago, como faca brilhando entre musgos, um pequeno falo. Potira diz que o homem que se juntar com ela será feliz. “Ixé inti xa recó nha, rerecó uahá” (eu não tenho o que você tem), lamenta-se, apalpando-me o pênis.

Piracanjuba, que entrara na idade em que os curumins se tornam perigosos, desinteressa-se de Potira e põe-se a seguir a cunhã-mucu.

Uma arraia cinza, de ferrão imenso, chega planando perto de nós; da sua sombra vultos de gente começam a sair.

“Aba-pe aipó?” (quem são eles?), pergunto. Potira diz que são os que morreram afogados no “upabanema” (lago fedorento). Eles saem do fundo dos rios, retornam como eram em vida e se dirigem para o céu, pelo clarão das estrelas. No fundo dos olhos negros de Potira vejo miríades de pontinhos reluzentes. Como isso aconteceu, se há pouco ainda era manhã?! “Inti mahã! Oar pituna!” (não! a noite já caiu!), exclama Potira. “Psiu! Ninguém deve acordar o rio”, adverte ela. A Mãe-d’água, quando o rio dorme, senta-se na proa das canoas e penteia seus lindos cabelos à luz do luar.

“Vamos ver a mãe d’água?”,convida Potira, em português surpreendentemente perfeito, pois os homens debaixo d’água, ou em transe, unidos pela paixão, no sonho ou no desespero, falam a mesma língua. Consigo ver a sua voz fluindo pela água, em halos transparentes. Fala baixinho, ciciando no meu ouvido. Linda é a sua voz se infiltrando por entre mururés e lianas; ao ouvi-la, jacarés, peixes e quelônios adormecem. Estou ligado ao mundo pela sua voz, que me entra pela alma e conduz a todos os lugares e a lugar nenhum.

Sem pernas, caminhamos em busca da Mãe-d’água, um dentro do outro, no útero fofo do rio, ligados pelo tênue fio da vida. De repente, Potira pára (ou fui eu que parei?). Sem olhos vemos o mundo invertido na linha do horizonte. Ou é o mundo que nos vê? Que bela visão! O rio suspenso na abóbada celeste e o Céu sentado nas águas do rio!

Eu e Potira flutuamos no éter, extasiados, plenos de imensidão, calados, mas nossas almas falam. Nos olhos de Potira enxergo os tempos antigos, muito antigos, em que o seu povo morava no teto do Céu. Lá, muito acima, há tudo que se pode desejar. Há batata-doce, macaxeira, inhame, mandioca, milho, frutos de inajá, banana, caça de toda variedade e tartarugas da terra, tudo o que se pode comer e imaginar. Sou um guerreiro experiente e descubro no mato a cova de um tatu. Quero caçar o animal e começo a cavar. Cavo, cavo o dia todo, até de noite, sem encontrar o tatu. Na manhã seguinte, bem cedo, vou para o mato, a fim de continuar a cavar. Cavo até de noite, em vão. No quinto dia, quando estou cavando bem fundo, vejo de repente o tatu-gigante, mas, na ânsia de cavar, furo a abóbada celeste. O tatu então despenca, vai caindo, caindo, até chegar a Terra. Acompanho o tatu na queda, mas um vento forte, de tempestade, pega-me e atira-me de volta para cima, fazendo-me retornar ao Céu, de onde, através do buraco, olho a Terra, lá em baixo. Distingo uma pequena floresta de buritis, um grande rio e campos imensos. Nostalgia infinita toma conta de mim; desse mundo distante sinto saudade. Corro para minha aldeia e conto a novidade: “Cavei um buraco no Céu”, digo a todos. “Como foi que isso aconteceu?”, pergunta um guerreiro. Conto como descobri no mato a cova do tatu-gigante e comecei a cavar, dia após dia, até furar o firmamento. “E onde está o tatu agora?”, querem saber os homens. “Rolou para baixo, eu vi ele cair numa floresta de burutis”, respondo. “O que faremos agora? Ficamos no Céu ou descemos para a Terra?”, pergunta um dos homens. Falam e pensam por muito tempo, até que resolvem mudar-se para a Terra. “O problema é só como vamos descer para lá”, diz um deles. Um outro sugere: “Façamos uma corda comprida de todos os nossos fios, e cordas de arco de todos os nossos cintos e braceletes; cada homem vá para sua choça e de lá traga o que tiver em cordões e fitas”. “Você tem razão, a corda deve ficar forte, igual à de nossos arcos”, retruca outro. Fazemos a corda comprida e depois a jogamos pelo buraco do Céu. Começamos a descida, mas logo paramos, pois a corda não é suficientemente comprida para chegar até a Terra. Tristonhos, voltamos ao Céu. Lá, amarramos muitas outras fitas e cordas para encompridar a corda; ainda não é o bastante; temos que voltar de novo para prolongar a corda, que, mais uma vez, não tem o comprimento necessário. Damos nova busca na aldeia, juntamos tudo o que há em fitas, cordões, cintos e colares; por fim, a corda fica muito comprida. Um homem sem medo e sem vertigem desce e pisa primeiro na Terra. Vejo-o chegar e amarrar a corda no tronco de uma árvore gigantesca. Começa a descida de toda a tribo: primeiro os jovens, depois as mulheres com as crianças, as menores presas a tipóias nas costas das mães; em seguida, os homens e, por fim, os anciãos. Os que aterrizam partem logo para os campos imensos. Os jovens, à frente, procuram o caminho para uma nova morada. Temerosos, alguns hesitam e não acompanham os demais na descida.

Segurando minha mão na descida, Potira solta gritinhos. Vejo um curumim estranho que vem correndo e, ao ver a corda, corta-a, zombando: “Estou cortando a corda para eles ficarem eternamente lá em cima”. Nesse instante, acho que tenho uma vertigem, pois de nada me lembro. A tribo ficou dividida; uma parte continuou morando no Céu e outra, na Terra. Onde eu e Potira ficamos?

“Na terra”, diz Potira.

“No céu”, digo eu.

O que importa, se estamos juntos? Onde estamos será o nosso Céu. Raios translúcidos partem de um disco escarlate, metade água metade ar, olho dourado na linha do horizonte. Dia ou noite, o que será?

“Oar pituna. Pituna i roine” (a noite caiu, será fria), diz Potira.

“Guaraci osem umã; i porang sepiaca” (o sol já saiu, é bela a visão dele), retruco-lhe.

“Acanga aiua! Iaci-tatá” (louco! é o luar!), diz Potira, divertindo-se com a minha confusão. “Aape iporanga reté” (lá é muito bonito), completa a rapariga.

Não sei por quanto tempo avançamos. Sinto as minhas pernas, a ferida já não dói, mas estou muito cansado. Potira, ao contrário, parece cheia de energia.

“Iaciçuaçu poranga reté!” (como a lua cheia está bonita!), exclama.

“Poranga mahiê ne iaué!” (tão bonita como tu!), retruco.

Afastamo-nos tanto da praia que não enxergo mais a margem; estamos em águas profundas, mas o piso do rio (ou teto do Céu?) nunca foge dos pés. Jacarés e peixes menores ficaram para trás. Tainhas, atuns e xaréus são nossos companheiros. Potira segura firme minha mão e, ágil como um peixe, às vezes, me puxa.

O disco escarlate aos poucos vai se erguendo. Baça é a sua luz, tépido o seu calor. Gotas d’água escorrem como suor pelo meu rosto e respiro com dificuldade.

“Poranga iaci-tatá” (lindo é o luar), diz Potira, adiantando-se à maneira dos golfinhos. De repente pára e olha-me.

Que visão enlouquecedora: Potira dentro da Lua!

“Iuri Iké!” (vem cá!), ela me chama.

Estranho, muito estranho, Potira parece outra. Seu rosto redondo fica do tamanho da Lua e seus olhos refletem uma luz mortiça.

“Iuri Iké! Esiquiié umem!” (vem cá! não tenhas medo!), ela me anima.

Hesito. O rosto esfogueado da cunhantã, suas narinas dilatadas e a língua que umedece os lábios como se estivesse com sede atemorizam-me. Pego-lhe as mãos, nossos dedos se entrelaçam e os corpos unidos balouçam com as ondas.

De longe, muito longe, chegam-me vozes, muitas vozes, vozes muito antigas. As vozes frias dos mortos; as vozes dos vivos que gesticulam em volta dos castelos suplicando comida e agasalho; vozes portuguesas do Alentejo fluindo no ar trêmulo das manhãs; vozes hebraicas que imprecam e pregam; vozes inglesas que murmuram e soluçam; vozes brasileiras que suplicam e amaldiçoam; trêmulas vozes d’África procurando o sentido do mundo; vozes de Dante: “Misere di me, gridai a lui qual che tu sii, od ombra od omo certo!”; e o poeta que se agarra à última quimera para não enlouquecer, dizendo-me: “Atenta, amigo, para a modulação da voz, aprende a sua condensada chama, ali onde há de acender algum claro sentido, a menos que te bastem as estacas do ruído. As muitas vozes que perseguem nosso dia com suas águas turvas, suas lâminas, as que sempre esquecerás antes que calem e a que lembrarás por sua acesa chama; a voz da amada, lasciva e profana, a voz do nada, a voz muda, e a que te engana”. No meio de tudo, a voz de Potira murmurando: “Potira nde rausuba” (Potira te ama). Mas o primeiro naco assado da minha carne a danada vai comer com volúpia, por amor, para que eu, desfazendo-me em suas entranhas, fique entranhado para sempre em sua alma. Gosto dela mesmo assim: Potira fazendo sua própria vontade, Potira espetando seu próprio corpo, Potira mordendo-me com caninos de jaguarete, Potira unhando-me com unhas de suçuarana. Nhaêpepô-oaçu, meu matador, lasca já meu crânio com o ibirapema. Potira, pequena antropófaga, podes comer-me com prazer — que doce ventura ter teu corpo por sepultura!

De dentro da Lua, Potira me olha e enxerga o meu pensamento. Pingos de mel brotam-lhe dos olhos, adocicando-me o sofrimento. Uma auréola de pétalas circunda-lhe o rosto, embriagando com seu perfume o mundo. Fico zonzo, já não tenho pernas, nem braços nem corpo. A terra sumiu, a água sumiu e todos os bichos aquáticos desapareceram. Sem olhos, sem boca e sem ouvidos, apenas penso, ou penso que penso, pois não lembro das palavras, já não penso, apenas pressinto e sinto, um vulto entrando na cabana.

Fontes:
Dossier Amazónico. In Revista “Construções Portuárias” (Lisboa, 2002).
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http://www.triplov.com

Nicodemos Sena (1958)


Nasceu no dia 8 de julho de 1958, em Santarém, Pará, Amazônia brasileira. Passou parte de sua infância entre os índios maués, na região de fronteira entre os estados do Pará e Amazonas, experiência que para sempre o marcaria. Em 1977, veio para São Paulo, onde se formou em Jornalismo, pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), e em Direito, pela USP (Universidade de São Paulo).

Em 1999, estreou com o romance “A espera do nunca mais – uma saga amazônica” (Editora Cejup, Belém, PA, 876 páginas).

Em 2000, “A espera do nunca mais” conquistou o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500 Anos, da União Brasileira de Escritores (UBE/Rio de Janeiro).

Seu segundo romance, “A noite é dos pássaros” (Editora Cejup, 136 pág., 2003), foi primeiramente publicado em forma de folhetim, no jornal “O Estado do Tapajós” (Pará, Brasil) e na revista eletrônica portuguesa “TriploV”.

Foi publicado no Dossier Amazónico, na revista literária portuguesa “Construções Portuárias” (nº01, 2002), no qual um trecho de “A noite é dos pássaros” foi incluído, ao lado de importantes escritores da Amazônia, como Max Martins, João de Jesus Paes Loureiro, Vicente Franz Cecim, Age de Carvalho, Benedicto Monteiro e Benedito Nunes.

Fragmentos de “A noite é dos pássaros” foram publicados nas revistas “Palavra em Mutação” (nº 02, 2003) e “Storm-Magazine”, ambas de Portugal. Em 2003, “A noite é dos pássaros” conquistou o prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras, e, em 2004, Menção Honrosa no prêmio José Lins do Rego, da União Brasileira de Escritores (UBE/Rio de Janeiro).

Seus romances mereceram comentários em grandes jornais do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Goiânia, Brasília e Belém do Pará (“O Globo”, “O Estado de São Paulo”, “Jornal da Tarde”, “Estado de Minas”, “Hoje em Dia”, “A Tarde”, “O Liberal”, “Jornal Opção”, “Caderno Brasília”) e da Cidade do Porto, em Portugal (“O Primeiro de Janeiro”).

Sobre sua ficção já se manifestaram importantes críticos e escritores brasileiros, entre os quais Antonio Olinto, Nelly Novaes Coelho, Olga Savary, Fábio Lucas, Oscar D’Ambrosio, Antonio Carlos Secchin, Dirce Lorimier Fernandes, Ronaldo Cagiano, Acyr Castro, Manoel Hygino dos Santos, Nelson Hoffmann, Carlos Nejar, Caio Porfírio Carneiro, Tanussi Cardoso e Adelto Gonçalves.

O escritor vem sendo considerado a revelação da literatura amazônica nos últimos anos, tornando-se verbete na “Enciclopédia de Literatura Brasileira”, direção de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa (edição conjunta da Global Editora, Fundação Biblioteca Nacional, DNL, Academia Brasileira de Letras, 2ª edição, 2001). A obra ficcional de Nicodemos Sena expressa o conflito étnico — cultural entre dois mundos — o do colonizador europeu e o do índio autóctone. Por seu estilo vigoroso e a temática inspirada na vida das populações marginalizadas da Amazônia (índios e caboclos), a crítica já comparou esse romancista da Amazônia a grandes ficcionistas brasileiros, como Graciliano Ramos, João Ubaldo Ribeiro, Mário de Andrade e Érico Verissimo, e a importantes ficcionistas latino-americanos, como o paraguaio Augusto Roa Bastos e o peruano José María Arguedas. O escritor reside atualmente em Caraguatatuba, São Paulo, Brasil, onde, durante o ano de 2004, finalizou o seu terceiro romance, “A mulher, o homem e o cão”.
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Entrevista com Nicodemos Sena
Por Maria João Cantinho

Maria João CantinhoEm 1999, o panorama da literatura brasileira ficou marcado pela sua saga amazónica “A Espera do Nunca Mais”. Como romance de estreia, como guarda a experiência da sua escrita?

Nicodemos Sena – Eu tinha 41 anos quando foi publicado o meu primeiro romance. Um livro de 876 páginas! Muitas pessoas ainda me perguntam como pude, já na estréia, aparecer com um livro desse tamanho, e que logo de cara conquistou um prêmio nacional de literatura, o Lima Barreto, da UBE-União Brasileira de Escritores? Poucos sabem que escrevo desde pequeno. Aos 13 anos de idade, ainda morando na Amazônia, escrevi um romance que, sete anos depois, joguei fora por absoluta impossibilidade de revisá-lo, já que apresentava muitos defeitos. Eu era uma criança cheia de imaginação, mas ainda não tinha cultura literária para escrever um romance. Como quase todo adolescente, “cometi” também poemas românticos, que até foram publicados em “A Província do Pará”, então o maior jornal da Amazônia. Mas o meu veio “poético” logo secou. Nos quinze anos seguintes, já em São Paulo, enquanto estudava e trabalhava (e criava filhos, que cedo vieram), só me sobrava tempo para escrever histórias curtas, chegando até a ganhar um concurso de contos entre universitários, mas nunca me preocupei em reuni-los em livro. Como contista, eu tinha um sério problema: a história queria sempre continuar; era com certa relutância que eu concluía o relato. Por isso, talvez, apenas três contos sobreviveram; apesar dos protestos de minha mulher, a primeira leitora do que escrevo, joguei mais de trinta contos no lixo. Depois de passar pela poesia e pelo conto, voltei ao romance, à história longa. Era como se eu quisesse refazer o romance que eu escrevera aos 13 anos. Aos 34, formado em Jornalismo e Direito, larguei praticamente tudo para me dedicar à literatura. Num país como o Brasil, de relativamente poucos leitores e milhões de analfabetos, a opção pela literatura parecia uma loucura – foi o que acharam alguns amigos. Pois foi como um louco que me lancei na aventura de escrever o romance que veio a se chamar “A Espera do Nunca Mais”. Até saí de São Paulo e fui morar em São José dos Campos, uma cidade menor, onde, sem que nenhum editor soubesse que Nicodemos Sena estava escrevendo um romance, lancei-me ao trabalho, que me consumiu sete anos: um e meio em pesquisa, quatro escrevendo e mais um ano revisando. Foi como meter-me num túnel escuro e profundo sem saber se teria fôlego para sair do outro lado.

M.J.C. – Foi um longo exercício de maratonista. Poderia descrever a caminhada?

N.S. – Busquei inspiração estética na própria geografia amazônica, com seus labirintos de rios, a selva intrincada, os cipoais, a lentidão que a tudo rege. Nessa geografia, não só os rios, mas também as idéias, os desejos, os projetos de vir a ser, tramam labirintos. Alguém já me disse que meus livros são “barrocos”. Sim, são barrocos, como barroca é a região em que se ambientam as histórias. Barroca, aberta e canibal. O tempo na cultura amazônica é algo bem particular, suave. As horas são medidas pelas luas, pelos dias de canoa ou de barco para chegar a tal lugar. Pela época da piracema, a época da desova. O homem amazônico, o homem dos rios, é fruto daquilo que o cerca. Na Amazônia, “o rio comanda a vida”. “A Espera do Nunca Mais” reflete bem isso; é um livro líquido, com grandes remansos. Como nas lendas e mitos indígenas, a linearidade da trama é apenas aparente, pois a história, ou as histórias, vão e voltam, e o narrador não tem pressa em acabar o que está contando.


M.J.C. – Não falámos nisso, mas será que Graciliano Ramos teve algo a ver com a sua aventura?

N.S. – Como leitor, iniciei-me com os românticos brasileiros e portugueses – José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo, Bernardo Guimarães, Camilo Castelo Branco, o “primeiro” Machado de Assis – de forma que a leitura de “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, quando eu tinha 15 anos de idade, foi uma verdadeira “paulada”. Até hoje, quando releio este pequeno grande livro, emociono-me. “Vidas Secas” (1938) conta a triste história de um casal de sertanejos, aviltados pelas mesquinhas condições de vida do campo, que procuram inutilmente cultivar. Fabiano, alma elementar, é subjugado pelo “soldado amarelo”, em cena de covardia. Quando sente que pode vingar-se, recua: “Governo é governo”. Mas, dentro daquela pobreza extrema, abre-se uma esperança para o casal infeliz, movido pela iniciativa da mulher, Sinhá Vitória – procurar região mais próspera: “E andavam para o sul metidos naquele sonho”.
Depois de Machado de Assis, Graciliano Ramos é, na minha opinião, o maior romancista brasileiro. Nele, a obra de arte cumpre sua função social, de não apenas entreter, mas principalmente “esclarecer as consciências e elevar a alma” acima de tudo o que é mesquinho. Mesmo num romance “psicológico” como “Angústia” (1936), ele não perdeu de vista o ambiente social. E nisso somos parecidos. Também mostro o homem simples engolido pela complexa trama social. Aprendi com Graciliano que um texto longo pode ser conciso, pode ser “líquido” sem ser aguado, amplo mas não esparramado, extenso mas não frouxo. Afora isso, somos bem diferentes. O texto de Graciliano é seco e sólido, quase pétreo, pois expressa a magreza gerada pela seca nordestina, enquanto o meu estilo é como a água que se amolda no espaço vasto e no tempo infinito da planície amazônica. Nos livros de Graciliano, as personagens expressam a aspereza do sertão, numa economia extrema; parece que o homem economiza até mesmo as lágrimas. Já as minhas personagens deixam-se levar, sem nenhuma pressa, pelas águas abundantes que brotam das cordilheiras e descem pelo Grande Vale; vou desfiando histórias que se cruzam, depois se bifurcam, e de novo se cruzam num lento e angustiante entrelaçar de pontas que terminam se juntando na mesma direção, como a labiríntica malha dos rios que vão desaguar no mar.

M.J.C. – Pode-se dizer que “A Espera do Nunca Mais” se situa em contra-corrente, relativamente ao que se faz no Brasil? O que o levou à escrita deste romance?

N.S. – Fernando Pessoa escreveu que a finalidade da arte não é agradar, mas elevar o homem por meio da beleza, erguer a alma acima de tudo quanto é estreito, acima dos instintos. Cervantes afirmou que o romance deve divertir e ensinar juntamente. Venho da Amazônia, um lugar de terríveis contradições. Ao lado da Amazônia paradisíaca, dos grandes rios e das florestas catedralescas, que desperta fascínio (e medo) em pessoas de todo o mundo, existe uma outra Amazônia – do genocídio do índio pelo branco, da exploração criminosa dos recursos naturais, do servilismo e escravidão, da destruição do antigo modo de vida nativo, sob o patrocínio do grande capital que invadiu a região nas últimas quatro décadas. A verdadeira face da tragédia que se chama Amazônia não é revelada ao mundo. Mostra-se apenas a terra exótica, de ninguém, espaço vazio e acéfalo a ser ocupado segundo planos elaborados pelos tecnocratas de Brasília ou do estrangeiro acumpliciados pelas corruptas elites locais.
Desde pequeno, convivi com a injustiça na região. Vi de perto a luta do pobre para sustentar a família, debaixo das piores humilhações; a guerra que é sobreviver nesse mundo, sem perder a dignidade. Dessa experiência de vida no paraíso/inferno amazônico extraí a matéria-prima usada no “A Espera do Nunca Mais”. Não escrevo apenas para divertir; também quero provocar uma reflexão sobre a “realidade”. Assumo, portanto, um compromisso ético. Não pode ser outro o comportamento do escritor numa sociedade que converte tudo (inclusive o imaginário) em mercadoria, uma sociedade que gera, em todos os setores da vida, inclusive nas artes, um certo “esplendor do vazio”; uma sociedade que avançou materialmente mas vai retrocedendo à barbárie; uma sociedade que cria consumidores de produtos descartáveis e não homens que valorizem as perenes coisas do espírito; uma sociedade da imagem, do espetáculo e do corpo, que valoriza o egoísmo e o sucesso a qualquer custo; uma sociedade urbana onde a palavra, que antes era sagrada e plena de sentido, chegou ao nível mais alto de estafa e esvaziamento; uma sociedade do “vale tudo” (tudo pelo mercado, tudo pelo sucesso, tudo pelo público), cuja lógica também tem condicionado a poesia e o romance. Infelizmente, muitos artistas acabam adotando os valores dessa sociedade. E a arte, que nasceu para questionar as aparências, revelar o oculto, esclarecer as consciências e elevar a alma, é convertida em mera diversão que aos homens imbeciliza. Diversão do “público”, que espera sempre coisas palatáveis. Ou diversão do autor, quando este se contenta com a “arte-pela-arte” ou se alheia “na linguagem”, esquecendo-se de que o artista, a arte e a vida precisam andar juntos.

M.J.C – Então não achas lícito desejar ser lido pelo maior número de leitores?

N.S. – Como artista, busco alcançar o “outro”, mas, quando me ponho a escrever, não penso no “leitor” ou no “público”, personagens imaginárias, que “não têm mais tempo para longas leituras”. Acho que um autor tem que correr riscos: não pode deixar-se escravizar pelos temas, ou pela exigência editorial, na esperança de agradar a quem o lê e obter sucesso de venda. O escritor precisa ser honesto naquilo que escreve e transparente consigo mesmo, obedecendo somente à sua própria consciência. No Brasil, país que possui um rico imaginário herdado dos índios nativos e dos africanos que foram trazidos como escravos, vem acontecendo uma sinistra “assepcia da imaginação”. Os escritores brasileiros precisam voltar a interessar-se pelo mítico e o antigo que estão na raiz da nossa cultura. Muitos romancistas, como mariposas atraídas pela lâmpada, na ânsia de agradarem ao público, deixam-se seduzir pelos temas mais explosivos, escrevendo textos que pouco diferem do relato jornalístico. No afã de integrar-se ao mundo civilizado, dito “moderno”, o escritor brasileiro, com poucas exceções, se esquece de que, faça o que fizer, será sempre um brasileiro.

M.J.C. – A globalização, em todo o mundo, tem sido o pior dos flagelos para a identidade cultural de cada país, não te parece?

N.S. – Sim. A perda da identidade nacional é uma das conseqüências funestas da globalização, uma verdadeira catástrofe. No mundo “globalizado” em que vivemos, podem até desaparecer as fronteiras visíveis da política e da economia, mas as diferenças do mundo invisível da cultura não se eliminam impunemente. Fica cada vez mais claro que o desprestígio da expressão local, das marcas do tempo, do vento e da terra, a pretexto de alcançar-se um elevado universal, não passa de imposição totalitária de culturas velhas, esgotadas, agonizantes. O mundo de cada um de nós é o mundo de todos os homens. O homem é o mesmo em qualquer parte do mundo. Podemos ser universais sem deixarmos de ser brasileiros (ou portugueses, ou italianos, espanhóis ou japoneses...), desde que o façamos com engenho e arte. Ouso afirmar que o “regional” e o “universal”, assim como a “humanidade”, em arte, não passam de abstrações vazias. Não existem. O que há é o ser humano concreto, que nasce, cresce e morre nalgum lugar. Captar esse homem, esse “outro”, que o próprio escritor traz dentro de si, com suas alegrias e tristezas, esperanças e decepções, heroísmos e vilanias, deve ser o objetivo do artista.

M.J.C. – A propósito dessa transformação do regional em universal, relembro aqui a obra de Vicente Franz Cecim, que é igualmente um caso de transfiguração da Amazónia e que, justamente, se transformou numa obra universal, considerando o seu universo mítico de Andara. Cecim é o único autor da Amazónia que chegou a Portugal, publicando “Ó Serdespanto” (Íman Edições, 2001). Mas existe uma constelação de escritores da Amazónia que nos é desconhecida, não é? Para nós, a quem apenas nos chega a literatura do Rio de Janeiro e de S. Paulo, que autores são importantes descobrir?

N.S. – Antes de falar dos escritores nativos, é bom lembrar que, até o século XIX, praticamente apenas europeus haviam escrito sobre a Amazônia – Gaspar de Carvajal, Cristóbal de Acuña, João Felipe Bettendorff, Luiz e Elizabeth Agassiz, Frederick Hartt, Alfred Russel Wallace, Carl Friedrich Philipp von Martius, Charles-Marie de La Condamine e tantos outros. Mais do que inventariar ou noticiar as maravilhas da nova terra, alguns estrangeiros pretenderam contar de forma “artística” as coisas do paraíso/inferno amazônico. Conan Doyle, Júlio Verne e Le Carré ambientaram histórias na Amazônia, produzindo páginas das quais não se pode afirmar que sejam o ponto alto de suas obras. O alemão Von Martius, com o material colhido em andanças pela Amazônia na primeira metade do século XIX, num momento de folga do seu trabalho de naturalista, escreveu “Frey Apolônio”, o primeiro romance ambientado no Norte do Brasil. A despeito dos defeitos de composição literária, o livro, ainda hoje, pode ser lido com interesse, pois Martius, que amava a Amazônia, era um excelente pintor de paisagens e costumes. Todavia, tais peças literárias fracassaram em seu intento de revelar ao velho mundo a fantástica realidade da nova terra, abrindo-se um abismo entre a imagem e a sua expressão. É que, nessas obras, o contexto invadiu o texto; a portentosa natureza amazônica fez o alienígena perder o ritmo e o fio da narrativa – talvez a única exceção à mediocridade dos textos escritos por europeus sobre a Amazônia seja a “Carta sobre o Tocantins” (1654), do padre Antônio Vieira.
“A Muhraida”, escrita em 1785 pelo tenente português João Wilkens, epopéia dos índios Muras do alto Amazonas, forjada nos moldes de “Uraguai” de Basílio da Gama e “Caramuru” de Santa Rita Durão, e publicada na mesma época, apresentando mais ou menos as mesmas virtudes e defeitos, não obteve, ao contrário das duas últimas obras, sucesso ou “fortuna crítica”. Mais sorte teve Ferreira de Castro, outro português, que escreveu, a partir de sua experiência de seringueiro no rio Madeira, o romance “A Selva” (1930), que se tornou repentinamente um “clássico”.
Depois dos estrangeiros, a Amazônia foi descrita por brasileiros de fora da região. O pernambucano Alberto Rangel escreveu o célebre “Inferno Verde” (1908, contos), com prefácio de Euclides da Cunha. O próprio Euclides, carioca, a exemplo do que já fizera com o Nordeste ao escrever “Os Sertões” (1902), legou-nos páginas inesquecíveis sobre a Amazônia, em “À Margem da História” (1909). O potiguar Peregrino Júnior escreveu “Matupá” (1933, contos), “Histórias da Amazônia” (1936, contos) e “Puçanga” (1930, contos). O carioca Gastão Cruls escreveu “A Amazônia Misteriosa” (1925, romance). O mineiro Oswaldo França Júnior - “De Ouro e de Amazônia” (1989, romance). Outro mineiro, Antonio Olinto - “Sangue na Floresta” (1992, romance). Partindo do mito amazônico de Macunaíma, referido por Koch-Grünberg num dos 5 volumes da obra “De Roraima a Orinoco”, o paulista Mário de Andrade escreveu a rapsódia de mesmo nome, onde fixa, de modo impressionante (embora questionável), a índole do homem Brasileiro, na face do “herói sem nenhum caráter”. Mais recentemente, o mineiro Aricy Curvello deixou-se enfeitiçar pelas coisas do Grande Vale; quando trabalhava para a Mineração Rio do Norte, que explora bauxita no rio Trombetas, escreveu o magnífico “O Acampamento” (1975), um dos melhores poemas do livro “Mais que os Nomes do Nada”.
A Amazônia, todavia, já pode se orgulhar dos seus próprios escritores, desde que Tenreiro Aranha (1769-1811), o mais antigo poeta autóctone, escreveu seus versos, a maioria extraviados no tempo. Alguns alcançaram até projeção nacional, como José Veríssimo, com “Cenas da Vida Amazônica” (1886), primeiro livro de contos amazônicos de que se tem notícia; Inglez de Souza, autor do clássico romance “O Missionário” (1891); Dalcídio Jurandir - “Chove nos Campos de Cachoeira” (1940); Benedicto Monteiro - “Verde Vagomundo” (1972, romance); Haroldo Maranhão - “Rios de Raiva” (1987, romance); Ildefonso Guimarães - “Senda Bruta” (1965, contos); Sant’Ana Pereira - “Invenção de Onira” (1988, romance) e Alfredo Garcia - “O Livro de Eros” (1998, contos). Mas é “Cobra Norato” (1931), do gaúcho Raul Bopp, o poema “amazônico” por excelência, a ele se ombreando apenas o “Repertório Selvagem” (1998, poemas) e “Berço Esplêndido” (2001, poemas), ambos de Olga Savary, e “Viagem a Andara, o Livro Invisível”, monumental obra ficcional e poética que Vicente Franz Cecim vem edificando há 23 anos.

M.J.C. – Achas que a política cultural dos dois países caminha no sentido de favorecer o intercâmbio cultural?

N.S. – Noto uma distância muito grande entre os dois países. A literatura portuguesa contemporânea é quase completamente desconhecida dos leitores brasileiros. No Brasil se fala muito de Fernando Pessoa e José Saramago, não apenas pela grandeza de suas obras, mas também porque outros, do mesmo porte, aqui não são editados. A distribuição das edições portuguesas é bem limitada. Desconfio que o governo português não tem desempenhado um grande papel no campo da divulgação da cultura e das artes portuguesas no Brasil. Os governos brasileiros, até onde eu sei, também pouco ou nada têm feito para levar a cultura e as artes brasileiras aos portugueses. Tem-se a impressão de que os dois países viraram de costas um para o outro. Ou será que estou enganado? Se pensarmos nos outros países de língua portuguesa, a coisa fica ainda mais complicada. Não contentes em não promover o necessário intercâmbio cultural, obstáculos absurdos à integração são criados, como, por exemplo, a recíproca cobrança de impostos sobre a entrada de livros em seus territórios, o que eleva o preço final do livro e inviabiliza a sua comercialização. A conseqüência principal dessa situação é o enfraquecimento da língua portuguesa, o nosso instrumento cultural mais importante.

Fontes:
http://www.releituras.com
http://www.storm-magazine.com

H P LOVECRAFT (O NAVIO BRANCO)



The White Ship
Tradução de Marianna C. de Carvalho

Eu sou Basil Elton, responsável pelo farol de North Point, o mesmo deixado aos cuidados de meu pai e meu avô antes de mim. Distante da costa e acima de rochas escorregadias e submersas que podem ser vistas quando a maré está baixa, mas são imperceptíveis quando ela está alta se encontra o farol cinzento. Por ele passaram navios majestosos vindos dos sete mares. No tempo de meu avô eles eram muitos, no tempo de meu pai nem tantos, e agora eles são tão poucos que às vezes sinto-me estranhamente sozinho, como se eu fosse o último homem na Terra.

De terras distantes vinham aqueles antigos navios mercantes de velas brancas; de terras Orientais distantes onde sóis quentes brilham e doces aromas se perpetuam em estranhos jardins e graciosos templos. Os velhos capitães do mar geralmente vinham até meu avô e contavam-lhe sobre essas coisas que por sua vez ele contou ao meu pai, e meu pai contou-me nas longas tardes de outono quando o vento vindo do Leste soprava de forma assustadora. E eu lia mais sobre essas coisas, e sobre muitas outras também, nos livros que os homens me davam quando eu era jovem e maravilhado com elas.

Porém mais maravilhosa que a sabedoria de velhos homens e a sabedoria dos livros é a sabedoria secreta do mar. Azul, verde, cinza, escuro ou límpido; calmo, agitado ou turbulento; o mar não é silencioso. Durante toda a minha vida eu o observei e o escutei, e eu o conheço bem. De início ele me contou somente histórias simples e pequenas sobre praias tranqüilas e portos vizinhos, mas com o passar dos anos ele ficou mais amistoso e falou-me sobre outras coisas; sobre coisas mais estranhas e mais distantes no tempo e no espaço. Às vezes, no crepúsculo, os vapores acinzentados do horizonte começavam a me oferecer visões de caminhos distantes; e às vezes à noite as águas profundas do mar ficavam cada vez mais claras e fosforescentes, concedendo-me visões de seus caminhos. E essas visões eram tantas quanto os caminhos eram, podiam ser ou ainda são; pois o mar é mais velho que as montanhas, e repleto de memórias e sonhos de muitas Eras.

Do longínquo Sul era de onde o Navio Branco costumava vir quando a lua estava cheia e alta nos céus. Do longínquo Sul ele deslizava bem suave e silenciosamente sobre o mar. E o mar estando calmo ou agitado, ou o com o vento amistoso ou desfavorável, ele sempre conseguia deslizar suave e silenciosamente; com suas velas estáticas e suas longas e estranhas fileiras de remos movendo em perfeito ritmo. Uma noite eu espiei um homem sobre o convés, barbas e túnica longas, e ele pareceu acenar para que eu embarcasse rumo a terras longínquas e desconhecidas. Muitas vezes depois eu o vi sob a lua cheia, e ele não mais voltou a me acenar.

A lua brilhava profundamente na noite em que eu respondi ao chamado, e caminhei sobre as águas em direção ao Navio Branco sobre uma ponte de luar. O homem que me convidara agora me dava as boas vindas em uma língua suave que eu parecia conhecer bem, e as horas foram preenchidas por doces cantigas dos remadores à medida que deslizávamos rumo ao misterioso Sul, dourado pelo brilho daquela delicada lua cheia.

E quando o dia amanheceu cor de rosa e radiante, eu avistei as verdes planícies das terras distantes, ensolaradas e belas e desconhecidas para mim. Acima do oceano surgiam gigantescas fileiras de vegetação, ornadas com árvores, e mostrando aqui e lá telhados de um branco brilhante e colunas de templos estranhos. Ao nos aproximarmos da verde planície o homem de longas barbas contou-me sobre aquela terra, a terra de Zar, onde habitavam todos os sonhos e pensamentos belos que vêem aos homens e depois são esquecidos. E olhamos para a vegetação novamente e vi que o que ele disse era verdade, pois entre a paisagem diante de mim estavam muitas coisas que eu vira apenas através das brumas, além do horizonte e dos abismos fosforescentes do oceano. Havia também formas e fantasias mais esplêndidas que qualquer homem já conhecera; as visões de jovens poetas que morreram antes que o mundo pudesse aprender o que eles haviam sonhado ou visto. Mas nós não colocamos nossos pés sobre as encostas verdes de Zar, pois se diz que aquele que nelas pisa talvez nunca mais retorne a sua terra natal.

À medida que o Navio Branco se distanciava silenciosamente da planície repleta de templos de Zar, observamos no horizonte, a nossa frente, as torres de uma imponente cidade; o homem de longas barbas me disse “Esta é Thalarion, a Cidade das Mil Maravilhas, onde residem todos aqueles mistérios que o homem tem tentado, em vão, compreender”. E eu olhei novamente, a uma distância menor, e vi que a cidade era maior que qualquer cidade com a qual eu sonhara ou já vira. As torres de seus templos alcançavam os céus, assim nenhum homem seria capaz de alcançar as suas pontas; e bem distante, além do horizonte, estendia-se uma muralha cinza e lúgubre sobre a qual se poderiam espiar somente alguns telhados, estranhos e sinistros, adornados com ricos beirais e esculturas. Eu estava ainda mais ansioso para entrar nessa fascinante ainda que repelente cidade e implorei ao homem de barbas longas que me deixasse aportar naquele píer de pedra próximo ao enorme portal esculpido de Akariel; mas ele gentilmente negou o meu pedido dizendo, “Em Thalarion, a Cidade das Mil Maravilhas, muitos entraram, mas ninguém retornou. Em seu interior somente caminham demônios e criaturas loucas que há muito deixaram de ser humanas, e as ruas ficaram brancas com os ossos não-sepultados daqueles que olharam sobre o espectro de Lathi, aquele que reina sobre a cidade”. Assim o Navio Branco continuou sua viagem navegando ao lado da muralha de Thalarion, e seguiu por muitos dias um pássaro que voava rumo ao sul, cuja lustrosa plumagem se confundia com o céu de onde ele surgira.

Chegamos então a uma agradável costa que se mostrava atraente com suas flores de todas as tonalidades possíveis; tanto quanto nossa vista permitia alcançar seu interior podíamos ver bosques adoráveis e árvores radiantes repousando sob o sol do meridiano. À sombra além de nossa vista vinham trechos de música e canções líricas, entrecortados por gargalhadas tão deliciosas que eu instiguei os remadores a seguirem adiante no meu afã de alcançar aquela cena. E o homem de barbas longas não disse uma palavra, mas observou-me à medida que nos aproximamos da margem de terra ladeada por lírios. De repente um vento soprou vindo do prado e dos bosques frondosos trazendo um cheiro que me fez estremecer. O vento ficou mais forte, e o ar foi tomado pelo odor letal e pútrido de cidades devastadas pela peste e cemitérios descobertos. E quando navegamos como loucos para nos afastar daquela costa amaldiçoada o homem de barbas longas finalmente se pronunciou, dizendo: “Esta é Xura, a Terra dos Prazeres Inalcançados”.

Então mais uma vez o Navio Branco seguiu o pássaro do céu, sobre os mares quentes e abençoados, embalados por brisas aromáticas e acariciantes. Dia após dia, noite após noite navegamos, e quando a lua ficava cheia ouvíamos as suaves cantigas dos remadores, doces como naquela noite distante quando partimos para longe da nossa terra natal. E foi sob a luz do luar que ancoramos finalmente no porto de Sona-Nyl, que é protegida por dois promontórios de cristal que surgem do oceano e se encontram em um esplêndido arco. Essa é a Terra da Imaginação e nós seguimos a sua costa verdejante sob uma ponte dourada de luz do luar.

Em Sona-Nyl não há nem tempo nem espaço, nem sofrimento nem morte, e lá eu fiquei por muitíssimo tempo. Verdes são os bosques e pastos, brilhantes e perfumadas as flores, azuis e musicais os riachos, límpidas e frescas as fontes, e impressionantes e maravilhosos os templos, castelos e cidades de Sona-Nyl. Naquela terra não há fronteira, pois para cada visão bela surge uma outra ainda mais bela. Por toda a paisagem campestre e em meio ao esplendor das cidades o povo pode se locomover à vontade, de quem tudo é ofertado com uma graça intocada e uma felicidade genuína. Durante o longo tempo em que lá permaneci, perambulei extasiado por jardins onde pagodes pitorescos nos observam por de trás de agradáveis arbustos, e onde as calçadas brancas são ladeadas por flores delicadas. Escalei suaves colinas de cujos cumes eu podia ver paisagens extasiastes, com cidades verticais como torres de igrejas aconchegando-se em vales verdejantes, e as abóbadas douradas das cidades brilhando no horizonte infinitamente distante. E eu vi sob a luz do luar o mar cintilante, os promontórios de cristal, e o porto tranqüilo onde ficava ancorado o Navio Branco.

Foi numa noite, contra a lua cheia no imemorável ano do Tharp que eu vi a silhueta do pássaro celestial, e senti os primeiros indícios de inquietação. Falei então para o homem de barbas longas, e contei-lhe sobre a minha nova ânsia em partir rumo à remota Cathuria, aquela que nenhum homem jamais vira, mas que todos acreditavam encontrar-se além dos pilares de basalto do Oeste. Trata-se da Terra da Esperança, e nela brilha os ideais perfeitos de tudo que se conhece em todos os lugares, ou pelo menos é o que dizem. Mas o homem de barbas longas me disse: “Seja cauteloso com aqueles oceanos perigosos onde os homens dizem se encontrar Cathuria. Em Sona-Nyl não há nem dor nem morte, mas quem pode dizer o que jaz além dos pilares de basalto do Oeste?” Todavia, na lua cheia seguinte eu embarquei no Navio Branco, e com o relutante homem de barbas longas, eu deixei com alegria o porto para viajar por mares desconhecidos.

E o pássaro dos céus voou a nossa frente, e nos guiou em direção ao pilares de basalto do Oeste, mas desta vez os remadores não cantaram melodias doces sob a lua cheia. Na minha cabeça eu geralmente desenhava a Terra de Cathuria com seus palácios e caminhos esplêndidos, e me perguntava que novos deleites me aguardavam. “Cathuria” eu dizia a mim mesmo “é a morada dos deuses e terra das inumeráveis cidades de ouro. Suas florestas são de aloé e sândalo, mesmo os bosques de Camorin, e entre as árvores voam pássaros alegres cantando doces canções. Nas verdes e floridas montanhas de Cathuria encontram-se templos de mármore róseo, adornados com entalhes e pinturas que representam glórias, e em seus pátios há fontes de prata, onde as águas perfumadas que vem do rio Narg, cuja nascente se encontra em uma gruta, bramem encantadoras canções. E as cidades de Cathuria são cercadas por muralhas douradas, e seu calçamento também é de ouro. Nos jardins dessas cidades encontram-se estranhas orquídeas, e lagos perfumados cujos leitos são de coral e âmbar. À noite as ruas e os jardins são iluminados com lanternas vistosas feitas com casco de tartarugas de três cores, e lá ecoam as doces notas de um cantor e um tocador de alaúdes. E todas as casas das cidades de Cathuria são palácios, cada um deles construído sobre um perfumado canal que conduz as águas do sagrado Narg. De mármore e alabastro são feitas as casas, e cobertas com telhados de ouro brilhante que refletem os raios de sol e aumentam o esplendor das cidades como se os deuses jubilosos as observassem dos picos distantes. O mais belo de todos é o palácio do grande monarca Dorieb, aquele que alguns afirmam ser um semi-deus enquanto outros um deus. Sublime é o palácio de Dorieb, e muitas são as pequenas torres de mármore sobre suas muralhas. Em seus amplos salões multidões se reúnem, e lá pendem troféus conquistados há eras. E o teto é inteiramente feito de ouro, sustentado por altos pilares de rubi e lápis-lazúli, entalhados com imagens de deuses e heróis que faz com que aquele os fita tenha a impressão de estar contemplando o próprio Olimpo. E o piso do palácio é feito de vidro, sob o qual corre as iluminadas águas do Nargh, alegre com os pomposos peixes por ninguém conhecidos além da fronteira da amável Cathuria.”

Assim eu falava para mim mesmo sobre Cathuria, mas o homem de barbas longas sempre me alertava para voltarmos à afortunada Sona-Nyl; pois Sona-Nyl é conhecida pelos homens, enquanto ninguém conseguira chegar a Cathuria. E no trigésimo primeiro dia, guiados pelo pássaro alcançamos os pilares de basalto do Oeste. Envolvidos pela neblina estavam eles, assim nenhum homem podia espiar além ou ver o seu ponto mais alto – que na verdade alguns dizem chegar aos céus. E o homem de barbas longas mais uma vez implorou-me que voltássemos, mas eu não lhe dei atenção; pois da neblina além dos pilares de basalto eu imaginei que viriam as notas dos cantores e tocadores de alaúdes; mais doces que as mais doces canções de Sona-Nyl, e parecendo-se com meus próprios louvores; eu que viajara para longe da lua cheia e morara na Terra da Fantasia. Assim ao som da melodia o Navio Branco navegou pela neblina entre os pilares de basalto do Oeste. Então quando a música cessou e a neblina se dissipou, vimos que não havíamos chegado a Terra de Cathuria, mas sim a um mar revoltoso e indominável, sobre o qual nosso navio já sem esperanças era levado rumo a algum objetivo desconhecido. Logo chegaram aos nossos ouvidos o trovejar distante de quedas d’água, e aos nossos olhos apareceu, no horizonte distante a nossa frente, a rajada titânica de uma catarata monstruosa, onde os oceanos do mundo se encontram e deságuam em um abismo do nada. Então o homem de barbas longas me disse, com as lágrimas escorrendo pelo rosto, “Nós rejeitamos a bela Terra de Sona-Nyl, à qual jamais retornaremos. Os deuses são maiores que os homens, e eles venceram.” E eu fechei meus olhos antes da queda que eu sabia que viria, impedindo a visão do pássaro celestial que batia suas asas azuis e orgulhosas sobre a correnteza.

Com a queda veio a escuridão, e eu ouvi os gritos de homens e de coisas que não eram humanas. Dos ventos tempestuosos do Leste eles surgiram, e deram-me calafrios como se eu me curvasse sobre uma laje de pedra que surgira sobre meus pés. Então eu ouvi mais uma batida e abri os olhos e me encontrei sobre a plataforma daquele farol de onde eu partira há muitos e muitos anos. Na escuridão abaixo surgiam os vastos contornos embaçados de um navio despedaçado sobre as rochas cruéis, e quando fitei os destroços vi que a luz havia se extinguido pela primeira vez desde que meu avô assumira o seu posto.

E nas tardes horas noturnas, quando eu fui para o interior da torre, vi que no calendário pregado na parede continuava lá como eu deixara na hora em que partira. Com o amanhecer eu desci a torre e olhei para os destroços sobre o rochedo, mas o que encontrei foi somente o seguinte: um estranho pássaro morto cujo tom era de um azul celeste, e um único mastro, de uma brancura maior que a da espuma do mar ou de uma montanha de neve.

E desde então o mar nunca mais me contou seus segredos; e embora muitas vezes a lua cheia tenha brilhado e se erguido nos céus, o Navio Branco do Sul nunca mais voltou.

Fontes:
Primeiras Traduções.
http://www.ichs.ufop.br/tradufop/?cat=1
Imagem = http://
www.monsores.net

Machado de Assis (O Lince)

Em uma crônica publicada em 11 de novembro de 1897, ele confessava: "Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto". Se você quiser encarar esses olhos, é imperativo que entenda essa confissão.

A essência da obra de Joaquim Maria Machado de Assis não se encontra na sua macro-estrutura, mas na micro-estrutura.

Os detalhes, como um gesto, um olhar, uma palavra aparentemente dita à toa, esparzidos ao longo de suas narrativas têm de ser devidamente "pescados" e colecionados, porque eles darão a chave para o entendimento de seus textos. Neles há um permanente jogo entre essência e aparência. A "história" de superfície é só um pretexto para discussões e denúncias de maior calibre. Existem o filosófico e a análise psicológica profunda que anteciparam conceitos que mais tarde Sigmund Freud teorizaria.

Machado não fez apenas a anatomia da sociedade patriarcal escravocrata de seu tempo, mas a do psiquismo humano com seus infinitos prismas.

Foi um esgrimista da palavra. Empunhando um estilo elegante e requintado, ele desfere golpes fulminantes e precisos contra a hipocrisia, a mediocridade, a vaidade, o egoísmo e a superficialidade que regem as relações humanas. Uma das características mais obsessivas de sua obra é o desvendamento da precariedade de nossa condição. As ridicularias cotidianas, alimentadas pela arrogância e pela pretensão, contrastam com a crueza da passagem do tempo e a iminência da morte. Exemplo disso é Marcela, a linda cortesã que manipulava e extorquia homens, como fez com o ainda adolescente Brás Cubas, em suas Memórias Póstumas. Ela se transformou numa mulher de meia idade com o rosto desfigurado pelas seqüelas da varíola, e chegou à velhice morrendo na indigência num leito miserável de hospital. Não restara nem uma centelha do fausto da época de juventude; nem uma pérola das muitas jóias que teve lhe valeu contra o avanço inexorável do tempo.

Mas a "dedicatória/bofetada" que abre as mesmas Memórias Póstumas de Brás Cubas, tecida de humor cáustico, formatada de modo a imitar o tom leve, casual e familiar que costumam ter as dedicatórias, apresenta um conteúdo ainda mais devastador:


Ao verme que primeiro roeu as frias
carnes do meu cadáver dedico como
saudosa lembrança estas
memórias póstumas.

O narrador escancara nossa condição de seres mortais e putrescíveis. A morte nivela; portanto todas as presunções de ordem material que constroem as diferenças de classe e de hierarquia são circunstanciais, vulgares, transitórias. Especialmente aquelas calcadas nas aparências e no poder econômico. Vivemos num mundo em que somos desencorajados a cultivar um repertório de virtudes duradouro e inabalável que arquitete um caráter, não irretocável, dado o limite do humano, mas positivo, no balanço final. Se houvesse tal encorajamento, o espaço entre nascer e morrer estaria justificado, e o viver teria alguma dignidade.

Mas Machado de Assis não concede a suas criaturas o poder de gerir, conduzir, transformar a própria vida ou a alheia. A existência naufraga numa lama gelada de equívocos, adiamentos, preguiças, vaidades, covardias, egoísmo, futilidades e acomodações.

Os personagens cometem sempre o terrível equívoco de tornar o essencial secundário e vice-versa. Isso promove a anulação da existência.

Suas obras não apresentam heróis. A esmagadora maioria, pode-se dizer que quase a totalidade de seus personagens, não apresenta caracteres, ainda que incidentais, exemplarmente positivos. Os personagens masculinos são, em geral, medíocres, de inteligência estreita, valores rasos, e a aceitação social de que desfrutam decorre do status que têm. É o caso de Brás Cubas (Memórias Póstumas de Brás Cubas), de Rubião (Quincas Borba) e de Bentinho (Dom Casmurro), afora muitos outros presentes em seus demais romances e contos. As personagens femininas não são melhores: frívolas e vaidosas, com interesses superficiais, detêm o domínio do jogo amoroso e da manipulação do outro. Há poucas imagens de sedução mais contundentes do que a passagem do conto “A Cartomante", em que Camilo torna-se amante de Rita, a esposa de Vilela, seu melhor amigo.

(...) Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado.

Pequenos detalhes ou incidentes podem sintetizar psicologicamente uma personagem. Veja-se no romance Esaú e Jacó o caso de Natividade, esposa do Santos, com quem casara aos 20 anos. Belíssima, afeita aos encontros sociais, ela passou dez anos casada sem filhos e sem evitá-los. Mas aos 30 anos foi surpreendida por uma gravidez. Ela reagiu assim:

(...) Lá se iam bailes e festas, lá ia a liberdade e a folga. Natividade andava já na alta roda do tempo; acabou de entrar por ela, com tal arte que parecia haver ali nascido. Carteava-se com grandes damas, era familiar de muitas, tuteava algumas. Nem tinha só esta casa de Botafogo, mas também outra em Petrópolis; nem só carro, mas também camarote no Teatro Lírico, não contando os bailes do Cassino Fluminense, os das amigas e os seus; todo o repertório, em suma, da vida elegante. Era nomeada nas gazetas. Pertencia àquela dúzia de nomes planetários que figuram no meio da plebe de estrelas. O marido era capitalista e diretor de um banco.

No meio disso, a que vinha agora uma criança deformá-Ia por meses, obrigá-Ia a recolher-se, pedir-lhe as noites, adoecer dos dentes e o resto? Tal foi a primeira sensação da mãe, e o primeiro ímpeto foi esmagar o gérmen. Criou raiva ao marido. A segunda sensação foi melhor. A maternidade, chegando ao meio-dia, era como uma aurora nova e fresca. Natividade viu a figura do filho ou filha brincando na relva da chácara ou no regaço da aia, com três anos de idade, e este quadro daria aos trinta e quatro anos que teria então um aspecto de vinte e poucos...
Foi o que a reconciliou com o marido.

Nenhuma mulher é obrigada a reagir bem à notícia de uma gravidez, ainda que seja responsável por ela. Mas note-lhe os motivos: perda de liberdade, deformação do corpo, enfim, frivolidades que a levaram a embirrar com o esposo. Repare, sobretudo, no que promoveu sua reconciliação com ele: ter filhos ao "meio-dia" da vida, aos 30 anos, a rejuvenesceria! Em nenhum momento ela considera o fato em si: ter filhos, e a gravidade e conseqüências do acontecimento, como a responsabilidade de tê-los, por exemplo; é mais um evento social, só que de maior duração. Perceba também que ela imagina os inconvenientes de ter a criança (noites mal dormidas, nascimento dos dentes), mas quando percebe que o filho poderia rejuvenescê-la, procura enquadrar essa possibilidade numa cena aprazível em que o personagem "bebê" está no colo da ama, não no dela, a mãe. Ela delega-o à criada, transferindo de antemão à serviçal os cuidados que ele acarretaria. Pois ela os teve, foram gêmeos e brigaram desde o seu ventre até depois de sua morte.

Quanto ao marido, o Santos, já tinha sido pobre. Quando se casaram não tinham nada, mas amealharam fortuna e desfrutavam de excelente condição social. Veja a ironia fina com que demonstra a mesquinhez do personagem e o gosto que ele tem pelo poder que ser rico acarreta, sobretudo o de se colocar acima dos familiares que não tiveram a mesma sorte que eles.

Dos dous parentes pobres de Natividade morreu o pai em 1866, restava-lhe uma irmã. Santos tinha alguns em Maricá, a quem nunca mandou dinheiro, fosse mesquinhez, fosse habilidade. Mesquinhez não creio, ele gastava largo e dava muitas esmolas. Habilidade seria; tirava-lhes o gosto de vir cá pedir-lhe mais.

Os exemplos são numerosos e dariam um livro (ou uma coleção deles), mas existem muitos outros aspectos relevantes em sua produção. O anticlímax é um deles. O anticlímax consiste na técnica de se criar um conflito com possibilidades de resolução aparentemente previsíveis e frustrar essa previsibilidade, ou esfriando o conflito, ou dando a ele uma solução imprevista, surpreendente. Importa lembrar que Machado de Assis herdou um público leitor com expectativas extraídas da literatura romântica com seus sentimentalismos e idealidades. A estrutura narrativa dos romances e novelas do período que antecedeu o autor era, até certo ponto, previsível, especialmente a finalização dos conflitos: ou se tinha o clássico "final feliz", ou o trágico, que freqüentemente envolvia a loucura e/ou a morte. A opção por um desses dois extremos era determinada, em geral, pela solução do conflito amoroso que era nuclear no Romantismo: se houvesse conciliação amorosa, o final era positivo; caso contrário, negativo.

Machado pertence cronologicamente ao Realismo, movimento que se opõe ao Romantismo. Assim, o anticlímax era um dos modos de neutralizar o olhar viciado no binômio "felicidade ou desgraça" dos leitores que herdou e de estabelecer os princípios da nova escola, especialmente no que se refere ao combate ao idealismo romântico. É de fundamental importância ressaltar que a tarefa de contextualizar esteticamente o autor é delicada. Além de sua inclusão cronológica no Realismo, não se pode ignorar que ele antecipou vários aspectos do Modernismo. E há que se considerar, sobretudo, seu estilo personalíssimo. Tudo isso o torna único, tão único que ele não teve discípulos diretos. Machado de Assis fez mais, ele inaugurou perspectivas sobre o seu tempo e lugar, bem como sobre o que é universal. A partir dele, temos muitos autores que lhe emprestaram o olhar e o adaptaram incorporando-o às suas obras, muitas vezes com talento e competência próprios, mas nenhum com sua agudeza, sua finura.

Quando se lê Machado de Assis, é possível imaginá-lo desde o alto de seu ver, assistindo ao terrível espetáculo do mundo; rindo-se dos esquetes ilusórios de fugaz alegria que permitem ao ser humano tolerar o estar em cena.

Foca, implacável, com seu poderoso telescópio a degeneração moral daqueles que são a gente que manda, ou que é invejada; a subserviência ora ressentida, ora conformada que apequena ainda mais aqueles que obedecem. Machado fulmina o maniqueísmo, ou seja, aquela visão de mundo que divide os seres humanos entre bons e maus, sem categorias intermediárias. Prova disso é o escravo Prudêncio, que servia a Brás Cubas desde a infância de ambos. O pequeno era vítima constante da tirania de seu senhor; mas quando cresceu e ganhou a alforria, teve ele mesmo seu escravo, e o tratava com os mesmos requintes de crueldade com que fora tratado. Não para vingar-se dos maus-tratos passados, mas porque a truculência não é um triste privilégio de classe ou de etnia: ela é humana.

A perspectiva literária desse escritor, quer narre em primeira pessoa (além de narrador, personagem) ou em terceira (apenas narrador), é suprema; e em qualquer das duas hipóteses, pode-se sentir sua enérgica presença, pois ele conversa com o leitor, instiga-o, ironiza-o, sacode-o, mas jamais o adula.

Mas não pense que Machado de Assis, adepto do niilismo, filosofia da negação total de tudo, do pessimismo absoluto cósmico, era só fel. O humor é seu principal recurso crítico. No conto "A Sereníssima República", por exemplo, ele fabula uma república de aranhas, e a partir daí faz uma crítica sarcástica às fraudes eleitorais e políticas de um modo geral. Aquela república resolveu fazer um sistema de eleições. Para tanto, as aranhas teceram um saco para colocar as bolas com os nomes dos candidatos a serem sorteados.

A eleição fez-se a princípio com muita regularidade; mas, logo depois, um dos legisladores declarou que ela fora viciada, por terem entrado no saco duas bolas com o nome do mesmo candidato. A assembléta verificou a exatidão da denúncia, e decretou que o saco, até ali de três polegadas de largura, tivesse agora duas; limitando-se a capacidade do saco, restringia-se o espaço à fraude, era o mesmo que suprimi-la. Aconteceu, porém, que na eleição seguinte, um candidato deixou de ser inscrito na competente bola, não se sabe se por descuido ou intenção do oficial público. Este declarou que não se lembrava de ter visto o ilustre candidato, mas acrescentou nobremente que não era impossível que ele lhe tivesse dado o nome; neste caso não houve exclusão, mas distração. A assembléia, diante de um fenômeno psicológico inelutável, como é a distração, não pôde castigar o oficial; mas, considerando que a estreiteza do saco podia dar lugar a exclusões odiosas, revogou a lei anterior e restaurou as três polegadas. (ASSIS, Machado de. A Desejada das Gentes e Outros Contos. São Paulo, Moderna, 1997).

A habilidade narrativa do autor é tamanha que gerou obras até hoje polêmicas, como é o caso de Dom Casmurro, a principal delas. Até hoje acadêmicos, estudantes e leitores comuns batem-se pela questão: Capitu traiu ou não traiu Bentinho, como ele afirma no romance que o tem como foco narrativo? Consta que houve até a simulação de um julgamento da personagem promovido pelos estudantes de Direito da Faculdade de São Francisco, ligada à Universidade de São Paulo. Ela foi absolvida por falta de provas. Os dois grupos, o dos favoráveis à idéia de que houve o adultério e o de seus opositores, discutem apaixonadamente, e também inutilmente, porque a obra é um duplo perfeito. Ambas as possibilidades são defensáveis, mas nenhuma delas cabais. De fato, essa nem é a principal questão do livro, e seria preciso muitas resmas de papel para se entrar nesse assunto.

Machado de Assis é uma vastidão, um cosmo, um infinito jogo de espelhos. Carlos Drummond de Andrade, em seu poema "A um Bruxo, com Amor", belíssima homenagem ao autor, afirma: "Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro". Quem não leu Machado de Assis, não leu sequer uma linha.

Fonte:
Revista Discutindo Literatura. Edição 4. SP: Escala Educacional. p.30

Machado de Assis (Dom Casmurro)

OTELO OU ÓPERA-BUFA?

A história de Bentinho e Capitu está entre as obras mais requisitadas pelos exames do País

Publicado pela primeira vez em 1899, Dom Casmurro, de Machado de Assis (1839-1908) é objeto de acirradas discussões entre leigos, professores e críticos. Trata-se de um duplo perfeito meticulosamente calculado pelo maior romancista da Língua Portuguesa.

Ao analisar o livro, o leitor deve ter em mente que essa é uma obra passível de duas interpretações fundamentais e antagônicas. A adesão a uma ou a outra dependerá da credibilidade que se atribui ao narrador-protagonista. O famoso pomo de discórdia que alavanca as polêmicas em torno do romance é a questão do adultério: Capitu, esposa de Bentinho, teria ou não o traído com Escobar? Mas será esse o problema nuclear da obra, ou mero pretexto para verificar aspectos maiores?

Órfão de pai aos quatro anos, o narrador-protagonista, Bento Santiago – também conhecido como Bentinho –, vivia sob a tutela da mãe.A viúva, dona Glória, embora moça e bonita, optou pelo luto fechado, disfarçando suas formas em vestidos escuros e sem enfeites, um xale preto e os cabelos presos num coque, ou cobertos por uma touca. Após vender a fazenda em Itaguaí e alguns escravos, mudou-se para a casa da rua de Matacavalos, de onde raramente saía, a não ser para ir à missa.

Para ter companhia, chamou seu irmão, Cosme, e sua prima Justina, ambos viúvos, para viverem com ela. Além deles morava em Matacavalos o agregado José Dias, um dos mais interessantes personagens do universo machadiano. Dias era membro honorário da família desde a época em que era vivo o pai de Bentinho, Pedro Santiago. Chegara durante uma onda de febres dizendo-se homeopata e curou com ajuda de seus livros o feitor e uma escrava. Pedro Santiago, assim, convidou Dias para morar na fazenda mediante um pequeno salário.

Logo depois, Pedro foi eleito deputado, e os Santiago mudaramse para a então capital do Império, Rio de Janeiro. Dias os acompanhou. Convocado para examinar os escravos num segundo surto de febre que abateu Itaguaí, confessou que jamais fora médico. O charlatão, porém, já havia conquistado a família. Quando Pedro Santiago morreu, Dias aprontou suas malas, mas dona Glória pediu-lhe que ficasse. Com um “– Obedeço, minha senhora”, concordou, e desde então permaneceu na casa. Assim, Bentinho vivia entre adultos.

Superprotetora, dona Glória criara o filho sob estreita vigilância. O menino nem sequer ia à escola; tomava lições particulares em casa, com o padre Cabral. Seu único contato estreito extrafa--miliar era Maria Capitolina, a Capitu, menina da casa vizinha, filha
do Pádua e de dona Fortunata. A família da amiga era digna, todavia menos abastada que a de dona Glória. Prova disso é a bela descrição que o narrador faz de Capitu:

Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor, não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos.

Capitu chegara à vida de Bentinho ainda criança, por volta dos cinco anos. Companheiros de brincadeiras, ele “batizava” as bonecas dela. Mas os anos passaram, e chegou o tempo do amor. Além disso, Bentinho, foco de convergência de sua casa, e até certo ponto seiva para os que desejavam a vitalidade apesar da falta de objetivos, tinha seu futuro neutralizado por uma promessa. Sua mãe, mulher devota, após a perda do primeiro filho, que nascera morto, prometera que, se o próximo fosse homem e vingasse, seria padre.

Na cena que inicia a ação propriamente dita, Bentinho ouviu da varanda o agregado José Dias lembrando à dona Glória que já era época de mandar o garoto, então com 15 anos, para o seminário. Disse-lhe que Capitu, “a filha do Pádua”, por quem nutria mal disfarçado rancor, andava com o menino “pelos cantos”, “em segredinhos”, e que se começassem a namorar seria difícil separá-los. Estupefata, dona Glória negou veemente essa possibilidade, argumentando que eles mal tinham saído das fraldas.Mesmo relutando, a mãe de Bentinho acabou por concordar com o agregado.

Ao ouvir a conversa, o menino, já amadurecido, concluiu que José Dias o denunciara a si mesmo, e da varanda seguiu para a casa da vizinha, que nesse momento já estava escrevendo os nomes de ambos com um prego. Flagrada por ele, tentou encostar-se contra o muro, entretanto Bentinho a tirou dali e leu comovido que no momento seguinte em que pensou amar, era amado.

Bento então contou a Capitu sobre a conversa ouvida. A reação da doce companheira de infância é colérica: “– Beata! Carola! Papa-Missas!”, vociferou para horror silencioso do garoto. E num repente de uma inspiração certamente decantada por tudo o que seus olhos agudos viram ao longo dos anos sob a anestesia daquela gente, Capitu concebeu um plano para livrar o namorado do celibato.

A menina lembrou Bentinho da precariedade financeira de José Dias, já que seu amado seria dono da casa quando crescesse. Lembrou também que o agregado gostava muito de ser elogiado por sua cultura de almanaque e por seus superlativos absolutos sintéticos, que acreditava darem certa dignidade ao seu discurso. Depois de sugerir ao companheiro fazer esses dois preâmbulos, recomendou que pedisse o apoio de José Dias na luta contra o seminário.

Após várias peripécias, que incluíram o primeiro beijo, Bento foi ao seminário. José Dias, porém, estava convencido de que se o menino não ingressasse na carreira eclesiástica iria certamente estudar na Europa, o que a seu ver implicaria acompanhar o futuro acadêmico. Assim conseguiu a promessa de que, se Bento não tivesse sua vocação manifesta em um ano, estaria livre para ser o que desejasse, e sua mãe se livraria da obrigação com Deus, mantendo financeiramente um garoto pobre que almejasse ser padre.

O período de seminário – ao qual, aliás, o temperamento pacato de Bentinho se acostumava – trouxe-lhe o amigo Ezequiel Escobar. Pouco mais velho e também pouco disposto aos votos, Escobar tinha um projeto que não envolvia amores: sua vocação era o comércio. Ambos conseguiram livrar-se do celibato: Bento foi a São Paulo estudar Direito, enquanto Escobar se estabeleceu como próspero comerciante. Em suas muitas viagens levava e trazia a correspondência entre Bento e Capitu, a quem chamava “cunhadinha”. Nesse meio tempo, Escobar conheceu a melhor amiga de Capitu, Sancha.

Os encontros resultaram em dois casamentos: Bento e Capitu; Escobar e Sancha. Estes logo tiveram uma filha, Capituzinha, em homenagem à madrinha. Os protagonistas retribuíram a consideração dos amigos dando o nome Ezequiel ao filho. Logo que Ezequiel nasceu, Escobar sugeriu a Bentinho que trabalhassem pelo casamento de seus filhos.

Os casais se freqüentavam, os pequenos se entendiam. Até que numa noite, depois de anos de convívio – Ezequiel tinha cerca de seis anos e Capituzinha nove –, Bento notou Sancha como não havia notado antes. O mar, onde todas as manhãs Escobar costumava nadar, estava em ressaca. Da janela da casa do amigo, na escuridão da noite, sentia o bramir do oceano; excitado pelo perigo que o aguardava na manhã seguinte ele estava certo de que mais uma vez venceria os caprichos das ondas.

Nessa noite, após o jantar, todos conversavam. Escobar sugeriu que tinha algo a dizer a Bentinho, mas que ficaria para outra ocasião. Este, então, sondou Sancha, que lhe parecia extraordinariamente bonita e acolhedora na ocasião. Ela lhe contou em segredo que o tal projeto era uma viagem à Europa dali a dois anos, os quatro, e rogou-lhe que não contasse ao marido. Ao se despedirem, a mulher de Escobar, a seu ver, apertou-lhe a mão com mais entusiasmo e olhou-o de modo peculiar, o que agravou a atração que sentia por ela naquele momento.

A impressão de cumplicidade sensual entre Sancha e Bentinho dilui-se na manhã seguinte, quando ele acordou com a notícia de que Escobar estava morto, vencido finalmente pelo mar.

A viúva ficou tão transtornada e infeliz que nada havia que cogitar sobre seu amor e fidelidade pelo marido. Ao lado do caixão permanecia aos soluços, amparada pela amiga Capitu, que, diga-se, não chorou, exceto na hora de fechar o caixão, momento em que homens e mulheres choraram. Somente Bentinho suspendeu suas lágrimas ao ver as da mulher “poucas e caladas”, e que ela enxugou “rápido” e, a seu ver, “a furto”.

Tempos depois, após um almoço, Capitu, ainda à mesa, aludiu a uma semelhança entre o olhar do filho e os de duas pessoas que conhecera antes, um amigo de seu pai e o “defunto Escobar”. Bento ponderou para si que não haveria mais de uma dúzia de olhares no mundo, e disse à esposa que em matéria de beleza, os olhos de Ezequiel haviam saído aos dela.

Mas o que se planta no inconsciente, no consciente viceja. O narrador foi tomado pela certeza de que o grande amor de sua vida o havia traído com seu melhor amigo. O único amor, oúnico amigo. A certeza o arrebatou. A partir de então passou a distanciar-se da família. Já não acudia às festas do filho quando chegava do trabalho e costumavam brincar. Evitava a esposa, em longas saídas.

Numa delas, assistiu a Otelo, clássico de William Shakespeare (1564-1616). Como é sabido, Otelo, o mouro de Veneza, casa-se com Desdêmona, rendendo-se ao mútuo e sincero amor que os unia. Mas o falso amigo Iago persuade Otelo de que sua mulher o traía e planta um lencinho da inocente Desdêmona na casa do suposto amante. Otelo mata a esposa e depois se suicida.

No momento em que a platéia assistia ao assassinato de Desdêmona, irrompeu em aplausos. Esses aplausos tanto podem ser entendidos como entusiasmo pela atuação do elenco, quanto como um paralelo ao estado emocional do narrador: ou Capitu é Desdêmona, portanto, inocente, ou a peça pode ser um alerta para a traição de Capitu.

Ao final, Bento, definitivamente dominado pela suspeita, pensa em suicídio colocando veneno no café. Era domingo de manhã, dia de missa. O filho entrou na cozinha exatamente no momento em que Bento se preparava para ingerir a beberagem. Ao ver o garoto, porém, decidiu num lampejo que era o menino quem devia morrer, e lhe ofereceu a xícara. Ezequiel, que já tomara café, ansioso por agradar ao pai que andava tão distante, apanhou a xícara. Quando ia beber, Bento a derrubou de propósito, e começou a chorar. O menino, assustado, puxou-lhe pelas calças, chamando: “ – Papai!”. Ele disse que não era seu pai.

Nesse momento deu-se conta da presença de Capitu. Como o ponto de vista é dele, não sabemos se ela tinha ouvido tudo, ou apenas fora atraída pelo choro de ambos. Capitu pediu ao filho que a esperasse na sala. Bentinho explicou-lhe a terrível suspeita, e a mulher sabia que era a semelhança. Mas a vida, segundo o livro, tem dessas coisas esquisitas, já que a própria Capitu era extremamente parecida com a mãe já falecida de Sancha quando jovem, conforme atestou o próprio Gurgel, o viúvo.

Optaram pela farsa: Capitu e Ezequiel partiriam com Bentinho para a Suíça, com o suposto intuito de dar uma educação européia ao garoto. Ambos nunca mais voltaram. Bentinho nunca assumiu a separação perante a sociedade.

Dona Glória, tio Cosme e José Dias morreram, Capitu também morreu no exílio. Até que Bentinho, definitivamente Dom Casmurro, no tempo em que morava acompanhado de um único escravo, recebeu um dia a visita de Ezequiel, já moço. Após o impacto de ter recebido o cartão de visita, que o fez levar cerca de quinze minutos para descer e receber o rapaz, o narrador deu de cara com o velho companheiro de seminário. É bom lembrar que, para alguém tão parecido com Escobar, Ezequiel guardava diferenças importantes do falecido amigo.

Durante seis meses, dom Casmurro conviveu com Ezequiel e com a suposta semelhança. Ao cabo desses, o rapaz seguiu para Jerusalém, onde morreria de uma febre. O narrador, ao receber a conta do funeral e a cópia do que se escreveu na lápide, diz que custou caro, mas que pagaria o dobro apenas para nunca mais ter de ver Ezequiel.

O arremate da obra é intrigante: citando o capítulo IX, versículo 1, de Jesus, filho de Sirach: “Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti”.

Entre Dois Pólos

Entre o princípio e o fim dessa síntese do enredo de um cosmo, interpõem-se episódios de grande duplicidade interpretativa. Um dos mais celebrados é a ocasião em que Bento Santiago vai sozinho ao teatro, deixando Capitu em casa. Esta alegara estar indisposta. Não tendo gostado da peça, Santiago retirou-se entre o primeiro e o segundo atos e chegando em casa, deparou com Escobar saindo. O amigo disse ter pendências jurídicas a tratar, pendências, no parecer de Bentinho, que poderiam ser resolvidas no dia seguinte. Mais tarde, Capitu alegou que o mal-estar na verdade era uma indisposição a saídas.

Em qualquer hipótese, a obra é bipolar: ou Capitu e Escobar são realmente inocentes da suspeita do narrador, ou são não apenas culpados, mas também cínicos, e não só por ocultarem o caso, mas também pelas repetidas atitudes de dissimulação. Ela é a primeira a aludir à semelhança de olhares entre o do filho e o de Escobar; este, pelo fato de ter proposto o casamento entre Capituzinha e Ezequiel; ambos por terem sido traídos pela genética: o menino indiscutivelmente se parecia com Escobar.

Uma das características marcantes da obra de Machado de Assis é a análise psicológica. O autor chegou até mesmo a antecipar conceitos que mais tarde o próprio Sigmund Freud (1856-1939) formalizaria, como é o caso do complexo de Édipo, claramente prefigurado no romance.

As muitas possibilidades interpretativas da obra merecem um livro. Mas, considerando-se as duas interpretações fundamentais,
evidencia-se que tanto faz optar por uma ou por outra. Se Capitu efetivamente havia traído Bentinho, ele fez o que sabia fazer numa ocasião extrema como essa: mandou a família para a Europa, não assumiu sua separação perante a sociedade, fingiu ir visitá-los todo ano, coisa que na verdade não fazia, deixou o tempo passar, e este se encarregou do resto: a morte dos familiares e da esposa, o retorno imprevisto de Ezequiel.

Caso não tenha sido traído, ele pensou que foi. Então agiu da mesma maneira: mandou a família para a Europa, não assumiu sua separação, etc. Isso nos leva a concluir que tanto faz, e que discutiremos o fato ad aeternum enquanto o velho bruxo do Cosme Velho ri de nós lá do infinito, em sua eterna superação de
tudo quanto é humano.

Fonte:
Revista Discutindo a Literatura. Edicao 13. SP: Editora Escala Educacional. p.22.